“Era
Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome” explodi de repente num
momento alto, expelindo num só jato violento meu carnegão maduro e
pestilento, “era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela
o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio
impertinente dos meus testículos” gritei de boca escancarada,
expondo a textura da minha língua exuberante, indiferente ao
guardião escondido entre meus dentes, espargindo coágulos de
sangue, liberando a palavra de nojo trancada sempre em silêncio,
“era eu o irmão acometido, eu, o irmão exasperado, eu, o irmão
de cheiro virulento, eu, que tinha na pele a gosma de tantas lesmas,
a baba derramada do demo, e ácaros nos meus poros, e confusas
formigas nas minhas axilas, e profusas drosófilas festejando meu
corpo imundo; me traga logo, Pedro, me traga logo a bacia dos nossos
banhos de meninos, a água morna, o sabão de cinza, a bucha crespa,
a toalha branca e felpuda, me enrole nela, me enrole nos teus braços,
enxugue meus cabelos transtornados, corra depois com tua mão grave a
minha nuca, componha depressa este ritual de ternura, é isso o que
te compete, a você, Pedro, a você que abriu primeiro a mãe, a você
que foi brindado com a santidade da primogenitura” eu disse
espumando e dolorido, me escorregando na lascívia de uma saliva
escusa, e embora caído numa sanha de possesso vi que meu irmão,
assombrado pelo impacto do meu vento, cobria o rosto com as mãos,
era impossível adivinhar que ríctus lhe trincava o tijolo
requeimado da cara, que faísca de pedra lhe partia quem sabe os
olhos, estava claro que ele tateava à procura de um bordão, buscava
com certeza a terra sólida e dura, eu podia até escutar seus
gemidos gritando por socorro, mas vendo-lhe a postura profundamente
súbita e quieta (era o meu pai) me ocorreu também que era talvez
num exercício de paciência que ele se recolhia, consultando no
escuro os textos dos mais velhos, a página nobre e ancestral, a
palma chamando à calma, mas na corrente do meu transe já não
contava a sua dor misturada ao respeito pela letra dos antigos, eu
tinha de gritar em furor que a minha loucura era mais sábia que a
sabedoria do pai, que a minha enfermidade me era mais conforme que a
saúde da família, que os meus remédios não foram jamais inscritos
nos compêndios, mas que existia uma outra medicina (a minha!), e que
fora de mim eu não reconhecia qualquer ciência, e que era tudo só
uma questão de perspectiva, e o que valia era o meu e só o meu
ponto de vista, e que era um requinte de saciados testar a virtude da
paciência com a fome de terceiros, e dizer tudo isso num acesso
verbal, espasmódico, obsessivo, virando a mesa dos sermões num
revertério, destruindo travas, ferrolhos e amarras, tirando não
obstante o nível, atento ao prumo, erguendo um outro equilíbrio, e
pondo força, subindo sempre em altura, retesando sobretudo meus
músculos clandestinos, redescobrindo sem demora em mim todo o
animal, cascos, mandíbulas e esporas, deixando que um sebo oleoso
cobrisse minha escultura enquanto eu cavalgasse fazendo minhas crinas
voarem como se fossem plumas, amassando com minhas patas sagitárias
o ventre mole deste mundo, consumindo neste pasto um grão de trigo e
uma gorda fatia de cólera embebida em vinho, eu, o epilético, o
possuído, o tomado, eu, o faminto, arrolando na minha fala convulsa
a alma de uma chama, um pano de verônica e o espirro de tanta lama,
misturando no caldo deste fluxo o nome salgado da irmã, o nome
pervertido de Ana, retirando da fímbria das palavras ternas o sumo
do meu punhal, me exaltando de carne estremecida na volúpia urgente
de uma confissão (que tremores, quantos sóis, que estertores!) até
que meu corpo lasso num momento tombasse docemente de exaustão.
Raduan
Nassar, in Lavoura Arcaica
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