domingo, 8 de março de 2020

Fulânia, Sicrânia ou Beltrânia

Claro! É simples, é porque eu queria botar um título, mas é claro! Eu sou como dizem que Buñuel era: meu método de exposição é a digressão. Eu sei que estou muito longe de estar senil. Evidente que eu delirei um pouco, mas eu sempre delirei e São Gonçalo me fascina, eu tinha razão em lembrar o sonho. Claro, é por causa do título. Tire isso da gravação. Aliás, não, depois você tira tudo da gravação, a gravação inicial só começa quando eu disser. Não tire nada agora. Deixa que eu tiro, quando você passar tudo para o papel. É melhor, vamos deixar fluir, depois eu faço a triagem, boto ordem etc. Calma, calma. Não sei nem por que este... Como é o nome disto, disto que nós estamos produzindo? Vamos dizer, um depoimento sócio-histórico-lítero-pornô, ha-ha. Ou sociohistoricoliteropornô, tudo grudado, deve ficar lindo em alemão. Sim, não. Sim, não sei nem por que este depoimento tem que ter título, mas por que não? Esses dois Budas... Depois eu falo sobre esses dois Budas, agora não é o caso. Me lembre, é uma história muito interessante. Mas no momento eles me interessam por causa do título. Eu acho bonitinho, com um som meio aliterante — a ca-sa-dos-Budas-ditosos —, acho simpático. Este depoimento hereby se chama a “A casa dos Budas ditosos”. É bom, até porque não quer dizer nada, como todo bom título de qualidade literária. O sujeito vai ler e pergunta por que esses Budas, é capaz das explicações mais desvairadas. Quanta gente vai ler este depoimento, como será que ele vai ficar, será que alguém vai ler? Vai, sim, armei um esquema mais sofisticado do que os dos filmes de espionagem. Você faz parte, mas não vou lhe contar como, não tem importância. Você transcreve as fitas aqui, deixa as fitas aqui, tudo o que vai restar é a sua palavra. Que pode vir a ser útil, nunca se sabe. Conte a história, minta bastante se quiser, diga que é tudo verdade, e é mesmo. No começo, achei que ia escrever só para mim e deixar para algum morador de Fulânia, Sicrânia ou Beltrânia, com grande escândalo e engasgos pudicos, tentar explicar tudo de acordo com seus padrões empedrados — ô espécie esculhambada que nós somos, que tempo nós perdemos, quando há tanta coisa a descobrir! Fulânia, Beltrânia e Sicrânia eram os países fundados por uma grande amiga minha, Norma Lúcia — depois vou falar mais nela, é imprescindível —, todos habitados por velhacos como o velho Pedrão, professor de Direito Romano, depois eu falo nele, que moravam em outros países, moravam em outros mundos. Fulânia, Beltrânia e Sicrânia, bons patifes, eles moram lá e eu cá. Mas não vou deixar isso a cargo deles, não confio na posteridade. O título que eu ia botar era “Memórias de uma libertina”, mas não vou mais botar, é bom gosto demais para esse povo que nunca leu Choderlos de Laclos, não vou desperdiçar, jogar pérolas aos porcos. Em Fulânia, Sicrânia e Beltrânia, não se pode ser realmente fino, com um título fino desses; tem que ser pseudofino como eles, pronto, a casa dos Budas ditosos, satisfaz, satisfaz, é mais tranqüilo, me garante contra irritações geradas pela burrice e pela ignorância. Claro que no fundo odeio esse título de bom gosto ao qual acabo de ceder, mas cedo, de resto vão todos pastar, em verdade vos digo. Não cheguei ao ponto ótimo como meu avô, não tenho coragem de fazer o que ele fazia em público, ainda estou amarrada a uma porção de penduricalhos absurdos. É uma pena, porque memórias de uma libertina seria tão melhor do que essa bichice dos Budas ditosos, mas não se pode ter tudo neste mundo, tome-lhe Budas misteriosos. Quem é burro pede a Deus que o mate e ao diabo que o carregue. No começo, achei que ia deixar estas delusões — como dizia meu professor de Medicina Legal — para serem publicadas depois de minha morte. Mas num instante vi que era burrice, nada vale a pena depois da morte, eu quero é passar na rua e ver as caras das pessoas que leram, todo mundo fingindo que não é nada com eles. Nada desse negócio pequeno-burguês de depois da morte. Antes da morte, tudo antes da morte, é ou não é? E, por outro lado, me arriscaria a eles darem um jeito de destruir os originais, não me pergunte como, eles são diabólicos.
A casa dos Budas ditosos. One, two, three, tudo bem? A casa dos Budas ditosos. Prefácio, introdução, nota preliminar, qualquer coisa assim. Decidi dar este depoimento oralmente, em lugar de escrevê-lo, por várias razões, a principal das quais é artrite. Cortar isso, gracinha boba, eu não tenho artrite, nem faço planos de ter. Muito bem, prefácio. Decidi fazer este depoimento inicialmente de forma oral, em vez de escrita, pela razão principal de que é impossível escrever sobre sexo, pelo menos em português, sem parecer recém-saído de uma sinuca no baixo meretrício ou então escrever “vulva”, “vagina”, “gruta do prazer”, “sexo túmido” e “penetrou-a bruscamente”. Falando, fica mais natural, não sei bem por quê. Que mais? Gostaria de ter jeito para falar inanidades labirínticas como certos psicanalistas ou sociólogos, ou um desses pensadores franceses, desses que costumam aparecer nos cadernos de cultura dos jornais, para, na maior parte dos casos, sumir imediatamente após, e que não dizem nada, mas intimidam as pessoas com seus relambórios. Mas não sei fazer isso, é uma das minhas deficiências. Esquecer.
Sim, mas que mais? Sempre achei chique — deve ser subproduto de algum trauma de infância — botar no frontispício “qualquer semelhança etc. etc.”, mas, no caso, o contrário. Atenção. Qualquer semelhança estará bem inferida. Não, não, muito pernóstico, qualquer semelhança não é coincidência, nenhuma semelhança é coincidência. Nomes trocados para proteger culpados. Quem puser a carapuça pode ter certeza de que está bem posta. Não, não, estou achando isto um pouco metido a engraçado. Vou reditar tudo, quero um prefácio decente. Vamos anotar uns tópicos, depois eu desenvolvo. Um, tópico um. Ser mulher, ser coroa? Não. Não, não, não! Depois eu arremato este prefácio, ou não faço prefácio. Meu avô — o outro avô, o alemão, um prussiano insuportável, nazista de nascença como todo alemão, embora tenha morrido se proclamando antinazista, como também todo alemão — dizia que tudo o que precisava de prefácio, inclusive emprego e mulher, nesta ordem de precedência, não valia nada. Principalmente mulher, acho eu, porque a livro ele não dava muita importância, a não ser para esculhambar e querer queimar todos. Ele só não gostava de Hitler porque Hitler era bávaro e malnascido, não por causa do nazismo. Dava churrascos, ficava bêbedo e queimava livros. Comprava muito, para depois queimá-lo nos braseiros do churrasco, um livro de Eduardo Prado, muito famoso na época. E fazia discursos, afirmando que os brasileiros eram estúpidos, os únicos inteligentes eram os antropófagos, não sei bem o que ele queria dizer com isso. Minha mãe contava que Eduardo Prado era lindíssimo, de cabelos revoltos e farfalhantes, ao vento do viaduto do Chá. Uma senhora o viu uma vez, contava minha mãe, não se conteve e exclamou: “Mas que homem bonito!”. E ele respondeu: “É do ar do prado, minha senhora”. Ha-ha. Meu pai tinha um terror patológico de ser corno e minha mãe sabia disso e então, muito sacanamente, genialmente sacanamente, minha mãe era uma enciclopédia do sacanismo, fazia ares sutilmente ambíguos e então falava em Eduardo Prado, falava em Douglas Fairbanks, Rodolfo Valentino, Ramón Navarro, imitava Mae West, recitava Byron e Castro Alves com caras e vozes de orgasmo, chamava Castro Alves de Cecéu como se houvesse ido para a cama com ele no dia anterior, era um martírio a que o velho tinha de se submeter calado, por uma questão de coerência entre o que professava e o que realmente sentia, ele era muito liberal de boca, coitado de meu velho, morreu moço, mais moço do que eu hoje, 66 anos. Pronto, não faço prefácio. Depois eu vejo, decisions, decisions. De qualquer maneira, fica aí o registro. Depoimento oral, tatatá, tatatá, já falei isso, porque é mais fácil dizer palavrão do que escrever palavrão, há exigência de passaporte para as palavras passarem do falado ao escrito, algumas não conseguem nunca, a humanidade é muito estranha. Que mais? Explicar que sou um grande homem e não digo que sou uma grande mulher pela mesma razão por que não existe onço, só onça, nem foco, só foca, tudo isso é um bobajol de quem não tem o que fazer ou fica preso a idiossincrasias da língua, como aquelas cretinas feministas americanas que queriam mudar history para herstory, como se o his do começo da palavra fosse a mesma coisa que um pronome possessivo do gênero masculino, a imbecilidade humana não tem limites. Sou um grande homem fêmea, da mesma forma que os grandes homens machos são grandes homens machos, fica-se catando picuinha porque o nome da espécie é por acaso masculino e não neutro, como é possível que seja em alguma outra língua, como se a gramática resolvesse alguma coisa nesse caso. Explicar isso, não existem grandes homens e grandes mulheres, existem grandes homens machos e grandes homens fêmeas. Não há nada mais ridículo do que galeria de grandes mulheres isso e aquilo, fico morta de vergonha. A espécie é humana, como Panther uncius, Panthera leo, um onça, no feminino por acaso, outro leão, no masculino por acaso, questão de língua, exclusivamente. Explicar isso como quem explica a um marciano. A um terráqueo. Escuta aqui, terráqueo, deixa de ser débil mental. Bem, ambições inúteis, vamos ao trabalho. Que mais? Nada, estou em grande dúvida quanto a este prefácio. Rever necessidade de prefácio.
João Ubaldo Ribeiro, in A casa dos budas ditosos – Luxúria

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