Claro!
É simples, é porque eu queria botar um título, mas é claro! Eu
sou como dizem que Buñuel era: meu método de exposição é a
digressão. Eu sei que estou muito longe de estar senil. Evidente que
eu delirei um pouco, mas eu sempre delirei e São Gonçalo me
fascina, eu tinha razão em lembrar o sonho. Claro, é por causa do
título. Tire isso da gravação. Aliás, não, depois você tira
tudo da gravação, a gravação inicial só começa quando eu
disser. Não tire nada agora. Deixa que eu tiro, quando você passar
tudo para o papel. É melhor, vamos deixar fluir, depois eu faço a
triagem, boto ordem etc. Calma, calma. Não sei nem por que este...
Como é o nome disto, disto que nós estamos produzindo? Vamos dizer,
um depoimento sócio-histórico-lítero-pornô, ha-ha. Ou
sociohistoricoliteropornô, tudo grudado, deve ficar lindo em alemão.
Sim, não. Sim, não sei nem por que este depoimento tem que ter
título, mas por que não? Esses dois Budas... Depois eu falo sobre
esses dois Budas, agora não é o caso. Me lembre, é uma história
muito interessante. Mas no momento eles me interessam por causa do
título. Eu acho bonitinho, com um som meio aliterante — a
ca-sa-dos-Budas-ditosos —, acho simpático. Este depoimento hereby
se chama a “A casa dos Budas ditosos”. É bom, até porque não
quer dizer nada, como todo bom título de qualidade literária. O
sujeito vai ler e pergunta por que esses Budas, é capaz das
explicações mais desvairadas. Quanta gente vai ler este depoimento,
como será que ele vai ficar, será que alguém vai ler? Vai, sim,
armei um esquema mais sofisticado do que os dos filmes de espionagem.
Você faz parte, mas não vou lhe contar como, não tem importância.
Você transcreve as fitas aqui, deixa as fitas aqui, tudo o que vai
restar é a sua palavra. Que pode vir a ser útil, nunca se sabe.
Conte a história, minta bastante se quiser, diga que é tudo
verdade, e é mesmo. No começo, achei que ia escrever só para mim e
deixar para algum morador de Fulânia, Sicrânia ou Beltrânia, com
grande escândalo e engasgos pudicos, tentar explicar tudo de acordo
com seus padrões empedrados — ô espécie esculhambada que nós
somos, que tempo nós perdemos, quando há tanta coisa a descobrir!
Fulânia, Beltrânia e Sicrânia eram os países fundados por uma
grande amiga minha, Norma Lúcia — depois vou falar mais nela, é
imprescindível —, todos habitados por velhacos como o velho
Pedrão, professor de Direito Romano, depois eu falo nele, que
moravam em outros países, moravam em outros mundos. Fulânia,
Beltrânia e Sicrânia, bons patifes, eles moram lá e eu cá. Mas
não vou deixar isso a cargo deles, não confio na posteridade. O
título que eu ia botar era “Memórias de uma libertina”, mas não
vou mais botar, é bom gosto demais para esse povo que nunca leu
Choderlos de Laclos, não vou desperdiçar, jogar pérolas aos
porcos. Em Fulânia, Sicrânia e Beltrânia, não se pode ser
realmente fino, com um título fino desses; tem que ser pseudofino
como eles, pronto, a casa dos Budas ditosos, satisfaz, satisfaz, é
mais tranqüilo, me garante contra irritações geradas pela burrice
e pela ignorância. Claro que no fundo odeio esse título de bom
gosto ao qual acabo de ceder, mas cedo, de resto vão todos pastar,
em verdade vos digo. Não cheguei ao ponto ótimo como meu avô, não
tenho coragem de fazer o que ele fazia em público, ainda estou
amarrada a uma porção de penduricalhos absurdos. É uma pena,
porque memórias de uma libertina seria tão melhor do que essa
bichice dos Budas ditosos, mas não se pode ter tudo neste mundo,
tome-lhe Budas misteriosos. Quem é burro pede a Deus que o mate e ao
diabo que o carregue. No começo, achei que ia deixar estas delusões
— como dizia meu professor de Medicina Legal — para serem
publicadas depois de minha morte. Mas num instante vi que era
burrice, nada vale a pena depois da morte, eu quero é passar na rua
e ver as caras das pessoas que leram, todo mundo fingindo que não é
nada com eles. Nada desse negócio pequeno-burguês de depois da
morte. Antes da morte, tudo antes da morte, é ou não é? E, por
outro lado, me arriscaria a eles darem um jeito de destruir os
originais, não me pergunte como, eles são diabólicos.
A
casa dos Budas ditosos. One, two, three, tudo bem? A casa dos
Budas ditosos. Prefácio, introdução, nota preliminar, qualquer
coisa assim. Decidi dar este depoimento oralmente, em lugar de
escrevê-lo, por várias razões, a principal das quais é artrite.
Cortar isso, gracinha boba, eu não tenho artrite, nem faço planos
de ter. Muito bem, prefácio. Decidi fazer este depoimento
inicialmente de forma oral, em vez de escrita, pela razão principal
de que é impossível escrever sobre sexo, pelo menos em português,
sem parecer recém-saído de uma sinuca no baixo meretrício ou então
escrever “vulva”, “vagina”, “gruta do prazer”, “sexo
túmido” e “penetrou-a bruscamente”. Falando, fica mais
natural, não sei bem por quê. Que mais? Gostaria de ter jeito para
falar inanidades labirínticas como certos psicanalistas ou
sociólogos, ou um desses pensadores franceses, desses que costumam
aparecer nos cadernos de cultura dos jornais, para, na maior parte
dos casos, sumir imediatamente após, e que não dizem nada, mas
intimidam as pessoas com seus relambórios. Mas não sei fazer isso,
é uma das minhas deficiências. Esquecer.
Sim,
mas que mais? Sempre achei chique — deve ser subproduto de algum
trauma de infância — botar no frontispício “qualquer semelhança
etc. etc.”, mas, no caso, o contrário. Atenção. Qualquer
semelhança estará bem inferida. Não, não, muito pernóstico,
qualquer semelhança não é coincidência, nenhuma semelhança é
coincidência. Nomes trocados para proteger culpados. Quem puser a
carapuça pode ter certeza de que está bem posta. Não, não, estou
achando isto um pouco metido a engraçado. Vou reditar tudo, quero um
prefácio decente. Vamos anotar uns tópicos, depois eu desenvolvo.
Um, tópico um. Ser mulher, ser coroa? Não. Não, não, não! Depois
eu arremato este prefácio, ou não faço prefácio. Meu avô — o
outro avô, o alemão, um prussiano insuportável, nazista de
nascença como todo alemão, embora tenha morrido se proclamando
antinazista, como também todo alemão — dizia que tudo o que
precisava de prefácio, inclusive emprego e mulher, nesta ordem de
precedência, não valia nada. Principalmente mulher, acho eu, porque
a livro ele não dava muita importância, a não ser para esculhambar
e querer queimar todos. Ele só não gostava de Hitler porque Hitler
era bávaro e malnascido, não por causa do nazismo. Dava churrascos,
ficava bêbedo e queimava livros. Comprava muito, para depois
queimá-lo nos braseiros do churrasco, um livro de Eduardo Prado,
muito famoso na época. E fazia discursos, afirmando que os
brasileiros eram estúpidos, os únicos inteligentes eram os
antropófagos, não sei bem o que ele queria dizer com isso. Minha
mãe contava que Eduardo Prado era lindíssimo, de cabelos revoltos e
farfalhantes, ao vento do viaduto do Chá. Uma senhora o viu uma vez,
contava minha mãe, não se conteve e exclamou: “Mas que homem
bonito!”. E ele respondeu: “É do ar do prado, minha senhora”.
Ha-ha. Meu pai tinha um terror patológico de ser corno e minha mãe
sabia disso e então, muito sacanamente, genialmente sacanamente,
minha mãe era uma enciclopédia do sacanismo, fazia ares sutilmente
ambíguos e então falava em Eduardo Prado, falava em Douglas
Fairbanks, Rodolfo Valentino, Ramón Navarro, imitava Mae West,
recitava Byron e Castro Alves com caras e vozes de orgasmo, chamava
Castro Alves de Cecéu como se houvesse ido para a cama com ele no
dia anterior, era um martírio a que o velho tinha de se submeter
calado, por uma questão de coerência entre o que professava e o que
realmente sentia, ele era muito liberal de boca, coitado de meu
velho, morreu moço, mais moço do que eu hoje, 66 anos. Pronto, não
faço prefácio. Depois eu vejo, decisions, decisions. De
qualquer maneira, fica aí o registro. Depoimento oral, tatatá,
tatatá, já falei isso, porque é mais fácil dizer palavrão do que
escrever palavrão, há exigência de passaporte para as palavras
passarem do falado ao escrito, algumas não conseguem nunca, a
humanidade é muito estranha. Que mais? Explicar que sou um grande
homem e não digo que sou uma grande mulher pela mesma razão por que
não existe onço, só onça, nem foco, só foca, tudo isso é um
bobajol de quem não tem o que fazer ou fica preso a idiossincrasias
da língua, como aquelas cretinas feministas americanas que queriam
mudar history para herstory, como se o his do começo
da palavra fosse a mesma coisa que um pronome possessivo do gênero
masculino, a imbecilidade humana não tem limites. Sou um grande
homem fêmea, da mesma forma que os grandes homens machos são
grandes homens machos, fica-se catando picuinha porque o nome da
espécie é por acaso masculino e não neutro, como é possível que
seja em alguma outra língua, como se a gramática resolvesse alguma
coisa nesse caso. Explicar isso, não existem grandes homens e
grandes mulheres, existem grandes homens machos e grandes homens
fêmeas. Não há nada mais ridículo do que galeria de grandes
mulheres isso e aquilo, fico morta de vergonha. A espécie é humana,
como Panther uncius, Panthera leo, um onça, no feminino por
acaso, outro leão, no masculino por acaso, questão de língua,
exclusivamente. Explicar isso como quem explica a um marciano. A um
terráqueo. Escuta aqui, terráqueo, deixa de ser débil mental. Bem,
ambições inúteis, vamos ao trabalho. Que mais? Nada, estou em
grande dúvida quanto a este prefácio. Rever necessidade de
prefácio.
João
Ubaldo Ribeiro, in A casa dos budas ditosos – Luxúria
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