Cometa Halley. Foto: ESA/Sociedade Max Planck
Não
se sabe ainda se o mundo acabou realmente no sábado, como fora
anunciado. Pode ser que sim, e não seria a primeira vez que isso
acontece. A falta de sinais estrondosos e visíveis não é prova
bastante da continuação. Muitas vezes o mundo acaba em silêncio,
ou fazendo um barulho leve de folha. Tempos depois é que se percebe,
mas já então vivemos em outro mundo, com sua estrutura e seus
regulamentos próprios, e ninguém leva lenço aos olhos pelo
falecido.
O
mundo primitivo dos répteis, o mundo neolítico, o egípcio, o
persa, o grego, o romano, o maia… todos esses acabaram, e muitos
outros ainda. A história é cemitério de mundos, notando-se que uns
tantos acabaram de morte tão acabada que nem sequer figuram lá com
uma tabuleta; não se sabe que fim levaram as cinzas.
Pessoas
que aí estão vivas assistiram à morte do mundo em 1 o de agosto de
1914, mas estavam lendo jornal e não compreenderam no momento. Era
apenas mais uma guerra na Europa, mas acabou com a belle époque,
a douceur de vivre, a respeitabilidade vitoriana, o franco, a
supremacia da libra, os suspensórios, o rapé, os conceitos
econômicos, políticos e éticos do século XIX — mundo que
parecia eterno. Pedaços dele andam por aí, vagando, como o
colonialismo, a opressão de grupos financeiros, a servidão civil da
mulher, mas pertencem a um contexto liquidado, rabo de lagartixa
vibrando depois que o corpo foi abatido.
É
possível que a previsão dos astrólogos indianos não tivesse base,
e que o mundo atual dure muitos anos. Acredito mesmo que é cedo para
ele morrer, se apenas está nascendo, e nem se sabe ao certo como é
ou será.
Aos
sete anos de idade imaginei que ia presenciar a morte do mundo, ou
antes, que morreria com ele. Um cometa mal-humorado visitava o
espaço. Em certo dia de 1910, sua cauda tocaria a Terra; não
haveria mais aulas de aritmética, nem missa de domingo, nem
obediência aos mais velhos. Essas perspectivas eram boas. Mas também
não haveria mais geleia, Tico-Tico, a árvore de moedas que
um padrinho surrealista preparava para o afilhado que ia visitá-lo.
Ideias que aborreciam. Havia ainda a angústia da morte, o tranco
final, com a cidade inteira (e a cidade, para o menino, era o mundo)
se despedaçando — mas isso, afinal, seria um espetáculo.
Preparei-me para morrer, com terror e curiosidade.
O
que aconteceu à noite foi maravilhoso. O cometa de Halley apareceu
mais nítido, mais denso de luz e airosamente deslizou sobre nossas
cabeças sem dar confiança de exterminar-nos. No ar frio, o véu
dourado baixou ao vale, tornando irreal o contorno dos sobrados, da
igreja, das montanhas. Saíamos para a rua banhados de ouro,
magníficos e esquecidos da morte, que não houve. Nunca mais houve
cometa igual, assim terrível, desdenhoso e belo. O rabo dele media…
Como posso referir em escala métrica as proporções de uma
escultura de luz, esguia e estelar, que fosforeja sobre a infância
inteira? No dia seguinte, todos se cumprimentavam satisfeitos, a
passagem do cometa fizera a vida mais bonita. Havíamos armazenado
uma lembrança para gerações vindouras que não teriam a felicidade
de conhecer o Halley, pois ele se dá ao luxo de aparecer só uma vez
cada 76 anos.
Nem
todas as concepções de fim material do mundo terão a magnificência
desta que liga a desintegração da Terra ao choque com a cabeleira
luminosa de um astro. Concepção antiquada, concordo. Admitia a
liquidação do nosso planeta como uma tragédia cósmica que o homem
não tinha poder de evitar. Hoje, o excitante é imaginar a
possibilidade dessa destruição por obra e graça do homem. A Terra
e os cometas devem ter medo de nós.
Carlos
Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida

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