sexta-feira, 27 de março de 2020

Diálogos sem sentido dentro de um bar. A inutilidade da coerência nas situações e um telefonema com resultado terrível

Bar simples de subúrbio. Fórmica desbotada, latão dos balcões necessitando polimento, prateleiras semivazias, máquina de café desmontada, poeira. Azulejos formando painéis com panoramas. Remanescentes da Interessante Época do Domínio Português sobre Cafés e Padarias.
Eram os bares que existiam antes da instituição das Lanchonetes Mundiais, padronizadas pelas Multis, para a implantação da fast-food. Eficiência, asseio, rapidez no atendimento. Adolescentes, apelidamos as lanchonetes de Pé na Bunda. Entrar, comer e cair fora depressa.
As Mundiais tomaram os bairros classe alta e média, dominaram os pontos passíveis de lucro, onde a população tinha capacidade aquisitiva. Desprezaram os subúrbios populares, onde os antigos bares-fórmica-colorida-latão-painéis continuaram funcionando em bases precárias.
Esses bares sobreviveram só Deus sabe como. Lutaram contra os serviços domiciliares feitos pelas Mundiais. Ou pelas agências de entregas que proliferaram a partir da instauração do Grande Medo de Sair à Rua, um ciclo que foi penoso a todos nós. Funcionou como Prisão.
Quem se atrevia a colocar a cara na janela, o pé fora da porta? Grades, sistemas de tevê, fechaduras, vigilantes, alarmes. Segurança relativa em casa. E fora? As pessoas deixaram de aparecer no trabalho, a produção começou a cair. O Esquema se deu conta. Preocupou-se.
Ou surgia um sistema de segurança, ou seria a calamidade. Foi diferente da grande crise provocada no fim dos Abertos Oitenta, quando o povo deixou de consumir. O comércio faliu, a indústria entrou em recesso, veio a onda de demissões. O Casuísmo Econômico fez milagres.
Criaram as famigeradas OC, ou Obrigações de Compra. Cada um era obrigado a manter uma cota mensal de consumo. A cota variava conforme classificações determinadas pela Receita Federal a partir dos níveis salariais dos contribuintes. Estabeleceu-se um limite mínimo.
Pudesse ou não, tinha-se de arcar com a OC. Sem ela, carimbada e reajustada de acordo com índices nacionais de preços, a vida nem valia a pena. Não se podia viajar, manter o emprego, a conta bancária, a cota de água, a renovação da matrícula dos filhos nas escolas.
Não se lacravam bicicletas, não podíamos retirar os carnês de álcool combustível. Foi assim que as OCs salvaram o comércio, reabilitaram a indústria. Naquele tempo deixei definitivamente de tentar entender economia. Era cada vez mais privilégio de um grupo reduzido, isolado.
De que maneira o país não estourou? Não me perguntem. Eu olhava a ampliação das operações de crédito, a extensão dos financiamentos, a liberação de taxas de juros, os limites de cheques especiais, o florescimento de consórcios para todos os tipos de transação comercial.
O sistema de cartões, ou dinheiro plástico, como o povo chamava, elevou-se a proporções infinitas. Não havia uma só pessoa sem dívida, empenhada nos bancos, nas financeiras, nos agiotas. O lema era: Se o país não estourou em oitenta com a dívida externa, ninguém mais estoura.
Claro, havia quem perdesse alguns bens. A casa, os móveis, os terrenos. Hipotecados. Pessoas sem liquidez que não sabiam manobrar dentro do Esquema. O carro sempre foi a última coisa entregue. Combatia-se por ele até o fim. Era uma coisa admirável de se ver essa luta.
Que bravura, quanto idealismo, quanta força. Era necessário mais que coragem. Precisava-se de fé, esperança. Bem ou mal, a grande crise econômica foi contornada. O governo subsidiava consumidores e estes devolviam ao governo. E o Esquema se manteve, oscilante, porém inabalável.
Não me peçam coerência. O que significa isso? O que sei é que o problema foi diferente quando se tratou da própria vida. O medo prendeu as pessoas em casa. Apenas segurança poderia devolvê-las de volta às ruas. Segurança a qualquer custo, a qualquer preço. Total.
Das gavetas do Esquema surgiram, por etapas, organizações tipo você-não-sabe-mas-sou-policial-e-estou-na-tua-vigilância-o-tempo-todo-se-acautele-e-também-tem-um-sujeito-do-meu-lado-que-pode-ser-policial-igualmente-a-me-espreitar-e-vamos-todos-para-o-Isolamento.
Inventaram os Agentes Desconfiados pela Própria Natureza. Nasceram os fiscais, as permissões para matar, os confinamentos. Intensa Propaganda Oficial contribuiu para montar o clima de insegurança: se-você-é-marginal-fique-prevenido-a-qualquer-momento-poderá-desaparecer.
Conceberam as balas catalépticas. Estavam o tempo inteiro forjando novas formas de proteção. Até que chegou a sofisticação máxima, com a tranquilidade total. Vieram os aditivos calmantes, fazendo parte da Comida Mundial, presentes em todos os alimentos. Foi um sossego.
Nossa vida hoje até que transcorre agradável, perto do que já passamos. Como é que nos salvamos, de que modo atravessamos todos esses tempos é outra pergunta que não desejo que me façam. Atravessamos. Às vezes, é mais simples do que se pensa, o medo é fruto da imaginação.
As vitrines do bar estão vazias, empoeiradas. Compridas lâmpadas fluorescentes apagadas. Alguns fregueses sonolentos, cabeças caídas diante dos copos de pinga. Não pensem que é pinga de cana, não. Purinha, mas factícia, gosto idêntico, raspa garganta e não deixa cheiro.
Três garçons, o que é demais para um frege desses. No entanto, se o dono quiser autorização de funcionamento, tem de garantir emprego para determinado número de pessoas. Os salários devem ser nulos, ficam à espera de gorjetas, comem por aqui, levam as sobras.
Sujo, melado, suando, fedendo, com nojo de mim, me encosto ao balcão. O garçom chega, andar arrastado. Espirra muito, tem o nariz vermelho, olhos lacrimejam. A figura é deplorável, mas ele também me deve achar um trapo. Numa bolsa de valores nossas ações são zero.
Tem catálogo?
Só quer o catálogo?
Não sei ainda.
Precisa gastar um pouco.
Quero uma água.
Água? Tem permissão para esta lanchonete?
Não.
Então?
Me empresta o catálogo, depois a gente conversa.
Precisa ser boa conversa. Conveniente.
Só tem esse catálogo? De que ano é?
E eu sei? Não tem mais capa.
Só capa? Por sorte meu amigo está na letra P. Se fosse A, ou B, ou W, eu estava perdido. Esta lista não tem começo nem fim.
Dois Tadeus Pereiras. Gastar uma ficha com cada um? Checo os endereços. O primeiro é na zona norte, bairro popular. O segundo, no setor dos Funcionários Privilegiados, junto aos lagos secos do horto florestal. Tem de ser o outro. E se não for? Já pensou? Ah, filho da mãe.
Ocupado, vai falar assim no inferno. Tento o outro número por desencargo de consciência. Não responde. Volto ao balcão, o garçom espirrento me olha, faz um sinal, surge o que, presumo, seja o patrão do boteco. Arqueado, costeletas de cantor de bolero, fala sussurrada, ciciante.
Zeca Brocha me disse que o senhor não tem permissão.
E precisa nesta biboca? Estamos nos quintos dos infernos.
Precisa. Não posso servir.
Nem uma água? O Zeca Brocha deu a entender que com uma conversa conveniente.
Se for bastante conveniente podemos dar um jeito.
Jeito?
Se arranja. O que vai tomar?
Uma Cola Mundial, bem gelada.
Nem sonhando, nossos bares são quatro estrelas. E somente lanchonete estrela dourada pode servir Cola Mundial.
E água?
Reciclada.
Mijo?
Ora essa, todo mundo bebe. Puríssima.
Ele abriu o freezer, mostrou o copinho plástico, transparente. Um psicólogo das vendas, este desgraçado. Minha boca se encheu de água. Nada, ficou na vontade de encher de água. Ando tão seco que nem salivo. Eu queria apenas refrescar o rosto, nem ia tomar mijo reciclado.
No entanto, vendo o copo atraente, pouco me importa. Vai ver tenho engolido muita urina por aí sem saber. Que venha. Ele faz um gesto, desaparece atrás de uma cortina plástica de tiras vermelhas. Olho pelas paredes, nenhuma câmera de tevê, nada que me observe.
Precisa o mistério?
Pode entrar um fiscal de consumo.
Manhã dessas, com um calor de rachar?
Um desses bêbados do balcão pode ser fiscal.
Fico com a água, já fiz boquinha. Se não beber, me desidrato. O bar está abafado, o mormaço pesa uma tonelada. Saborear pequenos golinhos, o fundo do copo virou gelo, o freezer é bom de verdade. Ligo outra vez para Tadeu, tenho de alcançá-lo de qualquer maneira.
Alô! Casa do Tadeu Pereira?
Sim (voz de mulher do outro lado).
Tadeu Pereira, o ascensorista?
Sim (a voz era reticente).
Ele está?
Não (a voz era dolorida).
Saiu?
Saiu.
Volta?
Não.
Como não volta? Mudou-se?
Não. Morreu.
Morreu? Morreu como?
Tadeu suicidou-se ontem.
Suicidou-se? Então não era meu amigo. Era outro. Não era?
Não sei. Tadeu vai ser cremado hoje à tarde.
Onde?
Acaso depois que entregamos os cadáveres sabemos o que fazem com eles?
Ignácio de Loyola Brandão, in Não Verás País Nenhum

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