Bar
simples de subúrbio. Fórmica desbotada, latão dos balcões
necessitando polimento, prateleiras semivazias, máquina de café
desmontada, poeira. Azulejos formando painéis com panoramas.
Remanescentes da Interessante Época do Domínio Português sobre
Cafés e Padarias.
Eram
os bares que existiam antes da instituição das Lanchonetes
Mundiais, padronizadas pelas Multis, para a implantação da
fast-food. Eficiência, asseio, rapidez no atendimento. Adolescentes,
apelidamos as lanchonetes de Pé na Bunda. Entrar, comer e cair fora
depressa.
As
Mundiais tomaram os bairros classe alta e média, dominaram os pontos
passíveis de lucro, onde a população tinha capacidade aquisitiva.
Desprezaram os subúrbios populares, onde os antigos
bares-fórmica-colorida-latão-painéis continuaram funcionando em
bases precárias.
Esses
bares sobreviveram só Deus sabe como. Lutaram contra os serviços
domiciliares feitos pelas Mundiais. Ou pelas agências de entregas
que proliferaram a partir da instauração do Grande Medo de Sair à
Rua, um ciclo que foi penoso a todos nós. Funcionou como Prisão.
Quem
se atrevia a colocar a cara na janela, o pé fora da porta? Grades,
sistemas de tevê, fechaduras, vigilantes, alarmes. Segurança
relativa em casa. E fora? As pessoas deixaram de aparecer no
trabalho, a produção começou a cair. O Esquema se deu conta.
Preocupou-se.
Ou
surgia um sistema de segurança, ou seria a calamidade. Foi diferente
da grande crise provocada no fim dos Abertos Oitenta, quando o povo
deixou de consumir. O comércio faliu, a indústria entrou em
recesso, veio a onda de demissões. O Casuísmo Econômico fez
milagres.
Criaram
as famigeradas OC, ou Obrigações de Compra. Cada um era obrigado a
manter uma cota mensal de consumo. A cota variava conforme
classificações determinadas pela Receita Federal a partir dos
níveis salariais dos contribuintes. Estabeleceu-se um limite mínimo.
Pudesse
ou não, tinha-se de arcar com a OC. Sem ela, carimbada e reajustada
de acordo com índices nacionais de preços, a vida nem valia a pena.
Não se podia viajar, manter o emprego, a conta bancária, a cota de
água, a renovação da matrícula dos filhos nas escolas.
Não
se lacravam bicicletas, não podíamos retirar os carnês de álcool
combustível. Foi assim que as OCs salvaram o comércio, reabilitaram
a indústria. Naquele tempo deixei definitivamente de tentar entender
economia. Era cada vez mais privilégio de um grupo reduzido,
isolado.
De
que maneira o país não estourou? Não me perguntem. Eu olhava a
ampliação das operações de crédito, a extensão dos
financiamentos, a liberação de taxas de juros, os limites de
cheques especiais, o florescimento de consórcios para todos os tipos
de transação comercial.
O
sistema de cartões, ou dinheiro plástico, como o povo chamava,
elevou-se a proporções infinitas. Não havia uma só pessoa sem
dívida, empenhada nos bancos, nas financeiras, nos agiotas. O lema
era: Se o país não estourou em oitenta com a dívida externa,
ninguém mais estoura.
Claro,
havia quem perdesse alguns bens. A casa, os móveis, os terrenos.
Hipotecados. Pessoas sem liquidez que não sabiam manobrar dentro do
Esquema. O carro sempre foi a última coisa entregue. Combatia-se por
ele até o fim. Era uma coisa admirável de se ver essa luta.
Que
bravura, quanto idealismo, quanta força. Era necessário mais que
coragem. Precisava-se de fé, esperança. Bem ou mal, a grande crise
econômica foi contornada. O governo subsidiava consumidores e estes
devolviam ao governo. E o Esquema se manteve, oscilante, porém
inabalável.
Não
me peçam coerência. O que significa isso? O que sei é que o
problema foi diferente quando se tratou da própria vida. O medo
prendeu as pessoas em casa. Apenas segurança poderia devolvê-las de
volta às ruas. Segurança a qualquer custo, a qualquer preço.
Total.
Das
gavetas do Esquema surgiram, por etapas, organizações tipo
você-não-sabe-mas-sou-policial-e-estou-na-tua-vigilância-o-tempo-todo-se-acautele-e-também-tem-um-sujeito-do-meu-lado-que-pode-ser-policial-igualmente-a-me-espreitar-e-vamos-todos-para-o-Isolamento.
Inventaram
os Agentes Desconfiados pela Própria Natureza. Nasceram os fiscais,
as permissões para matar, os confinamentos. Intensa Propaganda
Oficial contribuiu para montar o clima de insegurança:
se-você-é-marginal-fique-prevenido-a-qualquer-momento-poderá-desaparecer.
Conceberam
as balas catalépticas. Estavam o tempo inteiro forjando novas formas
de proteção. Até que chegou a sofisticação máxima, com a
tranquilidade total. Vieram os aditivos calmantes, fazendo parte da
Comida Mundial, presentes em todos os alimentos. Foi um sossego.
Nossa
vida hoje até que transcorre agradável, perto do que já passamos.
Como é que nos salvamos, de que modo atravessamos todos esses tempos
é outra pergunta que não desejo que me façam. Atravessamos. Às
vezes, é mais simples do que se pensa, o medo é fruto da
imaginação.
As
vitrines do bar estão vazias, empoeiradas. Compridas lâmpadas
fluorescentes apagadas. Alguns fregueses sonolentos, cabeças caídas
diante dos copos de pinga. Não pensem que é pinga de cana, não.
Purinha, mas factícia, gosto idêntico, raspa garganta e não deixa
cheiro.
Três
garçons, o que é demais para um frege desses. No entanto, se o dono
quiser autorização de funcionamento, tem de garantir emprego para
determinado número de pessoas. Os salários devem ser nulos, ficam à
espera de gorjetas, comem por aqui, levam as sobras.
Sujo,
melado, suando, fedendo, com nojo de mim, me encosto ao balcão. O
garçom chega, andar arrastado. Espirra muito, tem o nariz vermelho,
olhos lacrimejam. A figura é deplorável, mas ele também me deve
achar um trapo. Numa bolsa de valores nossas ações são zero.
– Tem
catálogo?
– Só
quer o catálogo?
– Não
sei ainda.
– Precisa
gastar um pouco.
– Quero
uma água.
– Água?
Tem permissão para esta lanchonete?
– Não.
– Então?
– Me
empresta o catálogo, depois a gente conversa.
– Precisa
ser boa conversa. Conveniente.
– Só
tem esse catálogo? De que ano é?
– E
eu sei? Não tem mais capa.
– Só
capa? Por sorte meu amigo está na letra P. Se fosse A, ou B, ou W,
eu estava perdido. Esta lista não tem começo nem fim.
Dois
Tadeus Pereiras. Gastar uma ficha com cada um? Checo os endereços. O
primeiro é na zona norte, bairro popular. O segundo, no setor dos
Funcionários Privilegiados, junto aos lagos secos do horto
florestal. Tem de ser o outro. E se não for? Já pensou? Ah, filho
da mãe.
Ocupado,
vai falar assim no inferno. Tento o outro número por desencargo de
consciência. Não responde. Volto ao balcão, o garçom espirrento
me olha, faz um sinal, surge o que, presumo, seja o patrão do
boteco. Arqueado, costeletas de cantor de bolero, fala sussurrada,
ciciante.
– Zeca
Brocha me disse que o senhor não tem permissão.
– E
precisa nesta biboca? Estamos nos quintos dos infernos.
– Precisa.
Não posso servir.
– Nem
uma água? O Zeca Brocha deu a entender que com uma conversa
conveniente.
– Se
for bastante conveniente podemos dar um jeito.
– Jeito?
– Se
arranja. O que vai tomar?
– Uma
Cola Mundial, bem gelada.
– Nem
sonhando, nossos bares são quatro estrelas. E somente lanchonete
estrela dourada pode servir Cola Mundial.
E
água?
– Reciclada.
– Mijo?
– Ora
essa, todo mundo bebe. Puríssima.
Ele
abriu o freezer, mostrou o copinho plástico, transparente. Um
psicólogo das vendas, este desgraçado. Minha boca se encheu de
água. Nada, ficou na vontade de encher de água. Ando tão seco que
nem salivo. Eu queria apenas refrescar o rosto, nem ia tomar mijo
reciclado.
No
entanto, vendo o copo atraente, pouco me importa. Vai ver tenho
engolido muita urina por aí sem saber. Que venha. Ele faz um gesto,
desaparece atrás de uma cortina plástica de tiras vermelhas. Olho
pelas paredes, nenhuma câmera de tevê, nada que me observe.
– Precisa
o mistério?
– Pode
entrar um fiscal de consumo.
– Manhã
dessas, com um calor de rachar?
– Um
desses bêbados do balcão pode ser fiscal.
Fico
com a água, já fiz boquinha. Se não beber, me desidrato. O bar
está abafado, o mormaço pesa uma tonelada. Saborear pequenos
golinhos, o fundo do copo virou gelo, o freezer é bom de verdade.
Ligo outra vez para Tadeu, tenho de alcançá-lo de qualquer maneira.
– Alô!
Casa do Tadeu Pereira?
– Sim
(voz de mulher do outro lado).
– Tadeu
Pereira, o ascensorista?
– Sim
(a voz era reticente).
– Ele
está?
– Não
(a voz era dolorida).
– Saiu?
– Saiu.
– Volta?
– Não.
– Como
não volta? Mudou-se?
– Não.
Morreu.
– Morreu?
Morreu como?
– Tadeu
suicidou-se ontem.
– Suicidou-se?
Então não era meu amigo. Era outro. Não era?
– Não
sei. Tadeu vai ser cremado hoje à tarde.
– Onde?
– Acaso
depois que entregamos os cadáveres sabemos o que fazem com eles?
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não Verás País Nenhum
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