segunda-feira, 16 de março de 2020

Antônio Vale

Tínhamos feito uma estação na vila, para bem dizer estávamos ali hospedados, com grande economia e sem nenhum conforto. Vivíamos como retirantes que se fixam algum tempo e ganham forças para seguir caminho. Meu pai, educado no balcão, aceitara os conselhos da sogra, metera-se em pecuária nos cafundós de Pernambuco. Arruinando-se na seca usara os restos do capital e o crédito, mercadejava com o fim de obter meios para regressar às Alagoas e à mata.
A situação transitória lhe fornecia desculpa ao recusar negócios inconvenientes. Era passageiro, não queria imóveis nem vendia fiado. Mas adquiriu e lavrou o cercadinho próximo ao cemitério. E acontecia deixar-se vencer pelo medo. Assustava-se diante de um ferrabrás, largava-lhe a mercadoria exposta. Diligenciava escondê-la, exibia-lhe os defeitos, amunhecava faturando-a, embrulhando-a e no borrador ficava o sinal do prejuízo, a amargurá-lo. Quantias módicas ampliavam-se, apavoravam-no.
De tempos a tempos esses fregueses indesejáveis lhe causavam surpresas boas, como Seu Antônio Vale, fazendeiro, de família considerada e reimoso.
Seu Antônio Vale comprava regularmente, a dinheiro, sem regatear. Um dia, ao ver a conta, esvaziou os bolsos e concluiu que as notas, os níqueis e as pratas escasseavam. O jeito que tinha era deixar alguns artigos. Chegara o momento infeliz, esperado com ânsia. Meu pai se preparara e utilizou a franqueza e a ingenuidade precisas: conhecia a má reputação do homem, os outros negociantes diziam dele cobras e lagartos e não lhe fiavam duas patacas. Maledicência, calúnias. Podia levar os panos. Via-se bem que era pessoa direita. A loja ia acabar, mas, enquanto estivesse com as portas abertas, ele mandava. Sem dúvida. Seu Antônio Vale engrossou o papo, avermelhou-se, bateu o pé na calçada e gritou para o largo que os bodegueiros todos eram umas pestes, magote de safados. Mostraria que não passavam de uns mentirosos.
Mostrou. Em numerosas transações foi pontual demais: com certeza maquinava um calote rijo. Sobre a derradeira meu pai se manifestou na sala de jantar, à ceia, com aquele modo vago de falar como se não se dirigisse a ninguém. De fato não se dirigia. Minha mãe espalhava o pensamento curto em assuntos mais fáceis, e o monólogo servia para ele arrumar as ideias.
Afinal podia ser pior. Engana, e claro, desta vez engana. Sabe que estou de muda e escapole-se. Natural. Não me queixo: procedeu com decência três anos e deu lucro. Felizmente deve pouco.
Algum tempo depois Seu Antônio Vale veio informar se da viagem e prometeu voltar. Na véspera ainda não tinha aparecido.
Eu sabia, gemeu o credor. Não esperava outra coisa.
Mas de madrugada, quando os almocreves inqueriam as últimas cargas e minha mãe fiscalizava a cana deserta, embaraçando-se na enorme saia de montar, Seu Antônio Vale surgiu num cavalo esquipador, a carona pejada, os alforjes cheios, resolvido a acompanhar-nos. Trazia um rolo de cédulas e pagou a dívida.
Graciliano Ramos, in Infância

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