Tínhamos
feito uma estação na vila, para bem dizer estávamos ali
hospedados, com grande economia e sem nenhum conforto. Vivíamos como
retirantes que se fixam algum tempo e ganham forças para seguir
caminho. Meu pai, educado no balcão, aceitara os conselhos da sogra,
metera-se em pecuária nos cafundós de Pernambuco. Arruinando-se na
seca usara os restos do capital e o crédito, mercadejava com o fim
de obter meios para regressar às Alagoas e à mata.
A
situação transitória lhe fornecia desculpa ao recusar negócios
inconvenientes. Era passageiro, não queria imóveis nem vendia
fiado. Mas adquiriu e lavrou o cercadinho próximo ao cemitério. E
acontecia deixar-se vencer pelo medo. Assustava-se diante de um
ferrabrás, largava-lhe a mercadoria exposta. Diligenciava
escondê-la, exibia-lhe os defeitos, amunhecava faturando-a,
embrulhando-a e no borrador ficava o sinal do prejuízo, a
amargurá-lo. Quantias módicas ampliavam-se, apavoravam-no.
De
tempos a tempos esses fregueses indesejáveis lhe causavam surpresas
boas, como Seu Antônio Vale, fazendeiro, de família considerada e
reimoso.
Seu
Antônio Vale comprava regularmente, a dinheiro, sem regatear. Um
dia, ao ver a conta, esvaziou os bolsos e concluiu que as notas, os
níqueis e as pratas escasseavam. O jeito que tinha era deixar alguns
artigos. Chegara o momento infeliz, esperado com ânsia. Meu pai se
preparara e utilizou a franqueza e a ingenuidade precisas: conhecia a
má reputação do homem, os outros negociantes diziam dele cobras e
lagartos e não lhe fiavam duas patacas. Maledicência, calúnias.
Podia levar os panos. Via-se bem que era pessoa direita. A loja ia
acabar, mas, enquanto estivesse com as portas abertas, ele mandava.
Sem dúvida. Seu Antônio Vale engrossou o papo, avermelhou-se, bateu
o pé na calçada e gritou para o largo que os bodegueiros todos eram
umas pestes, magote de safados. Mostraria que não passavam de uns
mentirosos.
Mostrou.
Em numerosas transações foi pontual demais: com certeza maquinava
um calote rijo. Sobre a derradeira meu pai se manifestou na sala de
jantar, à ceia, com aquele modo vago de falar como se não se
dirigisse a ninguém. De fato não se dirigia. Minha mãe espalhava o
pensamento curto em assuntos mais fáceis, e o monólogo servia para
ele arrumar as ideias.
— Afinal
podia ser pior. Engana, e claro, desta vez engana. Sabe que estou de
muda e escapole-se. Natural. Não me queixo: procedeu com decência
três anos e deu lucro. Felizmente deve pouco.
Algum
tempo depois Seu Antônio Vale veio informar se da viagem e prometeu
voltar. Na véspera ainda não tinha aparecido.
— Eu
sabia, gemeu o credor. Não esperava outra coisa.
Mas
de madrugada, quando os almocreves inqueriam as últimas cargas e
minha mãe fiscalizava a cana deserta, embaraçando-se na enorme saia
de montar, Seu Antônio Vale surgiu num cavalo esquipador, a carona
pejada, os alforjes cheios, resolvido a acompanhar-nos. Trazia um
rolo de cédulas e pagou a dívida.
Graciliano
Ramos, in Infância
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