Fragmentos
de pedra de uma coluna erguida em Meerut, Uttar Pradesh, Índia, por
volta de 238 A.C.
Há
mais ou menos dois mil anos, as grandes potências da Europa e da
Ásia estabeleceram legados que até hoje se fazem presentes. Elas
lançaram as ideias fundamentais sobre como os líderes devem
governar e como governantes constroem uma imagem e projetam poder.
Mostraram também que um governante pode mudar de fato o modo de
pensar das pessoas. O líder indiano Ashoka, o Grande, tomou posse de
um vasto império e, pela força de suas ideias, iniciou uma tradição
que leva diretamente aos ideais de Mahatma Gandhi e até hoje
florescem: uma tradição de estadismo pluralista, humano e não
violento. Tais ideias estão incorporadas neste objeto. É um
fragmento de pedra — de arenito, para sermos exatos — do tamanho
de um grande tijolo recurvado; não enche os olhos, mas revela a
trajetória de uma das grandes figuras da história mundial. Na pedra
há duas linhas de texto, grafado em letras redondas, esticadas —
descritas, certa vez, como “escrita pin-man”. As duas linhas são
o que resta de um texto muito mais longo, gravado originalmente numa
grande coluna circular, de cerca de nove metros de altura e pouco
menos de um metro de diâmetro.
Ashoka
mandou fazer colunas como esta por todo o império. Eram grandes
proezas arquitetônicas e ficavam às margens das estradas ou no
centro das cidades — como as esculturas públicas nas praças de
nossas cidades hoje. Mas esses pilares são diferentes das colunas
clássicas que a maioria dos europeus conhece: não têm base e são
coroados com um capitel em forma de pétalas de lótus. No topo da
mais famosa das colunas de Ashoka há quatro leões virados para fora
— ainda hoje emblemas da Índia. Nosso fragmento vem de uma coluna
que foi erguida originalmente em Meerut, cidade localizada ao norte
de Délhi, e destruída no palácio de um governante mongol por uma
explosão no começo do século XVIII. Contudo, muitas colunas
parecidas sobreviveram e estão espalhadas por todo o império de
Ashoka, que compreendia a maior parte do subcontinente.
Essas
colunas eram uma espécie de sistema público de comunicação. Seu
objetivo era transmitir proclamações ou éditos de Ashoka, que
podiam então ser promulgados por toda a Índia e mais além. Sabemos
hoje que há sete importantes éditos gravados em colunas, e nosso
fragmento é daquele que ficou conhecido como o “édito da sexta
coluna”; ele declara a política benévola do imperador Ashoka para
com todas as seitas e todas as classes em seu império:
Penso
em como dar felicidade ao povo, não apenas a meus parentes ou a quem
mora na minha capital, mas também àqueles que estão longe de mim.
Ajo da mesma forma em relação a todos. Preocupo-me igualmente com
todas as classes. Além disso, tratei com reverência todas as seitas
religiosas, fazendo-lhes várias oferendas. Porém considero meu
principal dever visitar as pessoas.
Devia
haver alguém encarregado de ler essas palavras para os cidadãos, na
maioria analfabetos, que provavelmente as recebiam não apenas com
prazer, mas com grande alívio, pois Ashoka nem sempre se preocupara
tanto com seu bem-estar. Ele começara não como um filósofo suave e
generoso, mas como um jovem cruel e brutal, seguindo os passos
militares do avô, Chandragupta, que subira ao trono depois de uma
campanha militar que criara um imenso império que se estendia de
Kandahar, no atual Afeganistão, a oeste, até Bangladesh, a leste.
Ele tomava a maior parte da Índia moderna e foi o maior império da
história indiana.
Em
268 a.C. Ashoka subiu ao trono, mas não sem considerável luta.
Escritos budistas nos contam que para tanto ele matou “99 irmãos
seus” — supostamente irmãos tanto no sentido metafórico quanto
no literal. Os mesmos escritos criam a lenda dos tempos pré-budistas
de Ashoka como dias de frivolidade egoísta e muita crueldade. Quando
se tornou imperador, ele decidiu completar a ocupação de todo o
subcontinente e atacou o Estado independente de Kalinga, hoje Orissa,
na costa leste. Foi um ataque feroz e brutal, que mais tarde parece
ter mergulhado Ashoka num remorso terrível. Ele mudou todo o seu
estilo de vida, adotando o conceito do darma, o caminho virtuoso que
guia os seguidores através de uma vida de desprendimento, piedade,
dever, boa conduta e decência. O darma é aplicado em muitas
religiões, incluindo o siquismo, o jainismo e, é claro, o hinduísmo
— mas a ideia de darma de Ashoka passou pelo filtro da fé budista.
Ele descreveu seu remorso e anunciou a conversão ao povo por meio de
um édito:
O
território de Kalinga foi conquistado pelo rei, Amado pelos Deuses,
no oitavo ano do seu reino. Cento e cinquenta mil pessoas foram
capturadas, cem mil foram assassinadas, e um número muito maior
morreu. Logo após a conquista desse povo, o rei passou a se dedicar
intensamente ao estudo do darma…
O
Amado pelos Deuses, conquistador de Kalinga, agora está tomado de
remorso. Pois sentiu grande tristeza e arrependimento, porque a
conquista de um povo nunca antes conquistado envolve massacre, morte
e deportação.
A
partir de então, Ashoka decidiu redimir-se — estender a mão a seu
povo. Para isso, escrevia seus éditos não em sânscrito, a língua
clássica antiga que depois se tornaria idioma oficial do Estado, mas
em dialetos locais repletos de fala cotidiana.
Convertido,
Ashoka renunciou à guerra como instrumento de política de Estado e
adotou a bondade humana como solução para os problemas do mundo.
Apesar de inspirar-se nos ensinamentos do Buda — e seu filho foi o
primeiro missionário budista no Sri Lanka —, ele não impôs o
budismo ao império. O Estado de Ashoka era, num sentido muito
especial, um Estado secular. Amartya Sen, economista e filósofo
indiano e ganhador do Prêmio Nobel, comenta:
O
Estado precisa manter distância de todas as religiões. O budismo
não se torna religião oficial. Todas as outras religiões precisam
ser toleradas e tratadas com respeito. Portanto, o secularismo, na
versão indiana, não significa “ausência de religião em questões
governamentais”, mas “ausência de favoritismo de qualquer
religião em detrimento de outras”.
A
liberdade religiosa, a conquista do eu, a necessidade de todos os
cidadãos e líderes ouvirem uns aos outros e debaterem ideias,
direitos humanos para todos, tanto homens como mulheres, e a
importância atribuída à educação e à saúde — ideias que
Ashoka promulgou em seu império — continuam fundamentais para o
pensamento budista. Ainda hoje existe no subcontinente indiano um
país governado de acordo com princípios budistas: o pequeno reino
do Butão, espremido entre a Índia setentrional e a China. Michael
Rutland é um cidadão butanês e cônsul honorário do Butão no
Reino Unido. Ele também foi tutor do antigo rei, e lhe perguntei que
papel as ideias de Ashoka poderiam desempenhar num Estado budista
moderno. Ele começou me apresentando uma citação:
“Em
todo o meu reino, jamais mandarei em você como um rei. Protegê-lo-ei
como pai, cuidarei de você como irmão e servi-lo-ei como filho.”
Isso poderia ter sido escrito pelo imperador Ashoka. Mas não foi. É
um trecho do discurso de coroação pronunciado em 2008 pelo quinto
rei do Butão, de 27 anos. O quarto rei, o que tive o grande
privilégio de ensinar, viveu e continua a viver numa pequena cabana
de madeira. Não há ostentação para a monarquia. Ele talvez seja o
único exemplo de monarca absoluto que voluntariamente convenceu o
povo a destituí-lo de seus poderes e instituir uma democracia
eletiva. O quarto rei também introduziu a frase “felicidade
nacional bruta” — em contraste com o conceito de “produto
nacional bruto”. Além disso, como teria pensado Ashoka, a
felicidade e o contentamento do povo eram mais importantes do que a
conquista de outras terras. O quinto rei tem seguido praticamente à
risca os preceitos budistas de monarquia.
A
filosofia política e moral de Ashoka, tal como está expressa em
suas inscrições imperiais, iniciou uma tradição de tolerância
religiosa, de debate não violento e de compromisso com a ideia de
felicidade que desde então anima a filosofia política indiana.
Porém — e é um grande porém —, seu benévolo império durou
pouco mais do que ele próprio. E isso nos deixa com a desconfortável
questão: ideais tão elevados podem sobreviver às realidades do
poder político? Ainda assim, esse governante de fato mudou o modo de
pensar de súditos e sucessores. Era admirado por Gandhi, assim como
por Nehru, e a mensagem de Ashoka foi parar no dinheiro moderno: em
todas as cédulas indianas vemos Gandhi de frente para os quatro
leões da coluna de Ashoka. Os arquitetos da independência indiana
sempre pensavam nele. Mas, como diz Amartya Sen, sua influência vai
muito mais longe, e toda a região tem nele uma inspiração e um
modelo:
As
partes de seus ensinamentos com que os indianos particularmente se
identificaram na época da independência foram o secularismo e a
democracia. Contudo, Ashoka é também uma grande figura na China, no
Japão, na Coreia, na Tailândia, no Sri Lanka; é uma figura
pan-asiática.
Neil
MacGregor, in A história do mundo em 100 objetos
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