quinta-feira, 12 de março de 2020

A Coluna de Ashoka

Fragmentos de pedra de uma coluna erguida em Meerut, Uttar Pradesh, Índia, por volta de 238 A.C.

Há mais ou menos dois mil anos, as grandes potências da Europa e da Ásia estabeleceram legados que até hoje se fazem presentes. Elas lançaram as ideias fundamentais sobre como os líderes devem governar e como governantes constroem uma imagem e projetam poder. Mostraram também que um governante pode mudar de fato o modo de pensar das pessoas. O líder indiano Ashoka, o Grande, tomou posse de um vasto império e, pela força de suas ideias, iniciou uma tradição que leva diretamente aos ideais de Mahatma Gandhi e até hoje florescem: uma tradição de estadismo pluralista, humano e não violento. Tais ideias estão incorporadas neste objeto. É um fragmento de pedra — de arenito, para sermos exatos — do tamanho de um grande tijolo recurvado; não enche os olhos, mas revela a trajetória de uma das grandes figuras da história mundial. Na pedra há duas linhas de texto, grafado em letras redondas, esticadas — descritas, certa vez, como “escrita pin-man”. As duas linhas são o que resta de um texto muito mais longo, gravado originalmente numa grande coluna circular, de cerca de nove metros de altura e pouco menos de um metro de diâmetro.
Ashoka mandou fazer colunas como esta por todo o império. Eram grandes proezas arquitetônicas e ficavam às margens das estradas ou no centro das cidades — como as esculturas públicas nas praças de nossas cidades hoje. Mas esses pilares são diferentes das colunas clássicas que a maioria dos europeus conhece: não têm base e são coroados com um capitel em forma de pétalas de lótus. No topo da mais famosa das colunas de Ashoka há quatro leões virados para fora — ainda hoje emblemas da Índia. Nosso fragmento vem de uma coluna que foi erguida originalmente em Meerut, cidade localizada ao norte de Délhi, e destruída no palácio de um governante mongol por uma explosão no começo do século XVIII. Contudo, muitas colunas parecidas sobreviveram e estão espalhadas por todo o império de Ashoka, que compreendia a maior parte do subcontinente.
Essas colunas eram uma espécie de sistema público de comunicação. Seu objetivo era transmitir proclamações ou éditos de Ashoka, que podiam então ser promulgados por toda a Índia e mais além. Sabemos hoje que há sete importantes éditos gravados em colunas, e nosso fragmento é daquele que ficou conhecido como o “édito da sexta coluna”; ele declara a política benévola do imperador Ashoka para com todas as seitas e todas as classes em seu império:

Penso em como dar felicidade ao povo, não apenas a meus parentes ou a quem mora na minha capital, mas também àqueles que estão longe de mim. Ajo da mesma forma em relação a todos. Preocupo-me igualmente com todas as classes. Além disso, tratei com reverência todas as seitas religiosas, fazendo-lhes várias oferendas. Porém considero meu principal dever visitar as pessoas.

Devia haver alguém encarregado de ler essas palavras para os cidadãos, na maioria analfabetos, que provavelmente as recebiam não apenas com prazer, mas com grande alívio, pois Ashoka nem sempre se preocupara tanto com seu bem-estar. Ele começara não como um filósofo suave e generoso, mas como um jovem cruel e brutal, seguindo os passos militares do avô, Chandragupta, que subira ao trono depois de uma campanha militar que criara um imenso império que se estendia de Kandahar, no atual Afeganistão, a oeste, até Bangladesh, a leste. Ele tomava a maior parte da Índia moderna e foi o maior império da história indiana.
Em 268 a.C. Ashoka subiu ao trono, mas não sem considerável luta. Escritos budistas nos contam que para tanto ele matou “99 irmãos seus” — supostamente irmãos tanto no sentido metafórico quanto no literal. Os mesmos escritos criam a lenda dos tempos pré-budistas de Ashoka como dias de frivolidade egoísta e muita crueldade. Quando se tornou imperador, ele decidiu completar a ocupação de todo o subcontinente e atacou o Estado independente de Kalinga, hoje Orissa, na costa leste. Foi um ataque feroz e brutal, que mais tarde parece ter mergulhado Ashoka num remorso terrível. Ele mudou todo o seu estilo de vida, adotando o conceito do darma, o caminho virtuoso que guia os seguidores através de uma vida de desprendimento, piedade, dever, boa conduta e decência. O darma é aplicado em muitas religiões, incluindo o siquismo, o jainismo e, é claro, o hinduísmo — mas a ideia de darma de Ashoka passou pelo filtro da fé budista. Ele descreveu seu remorso e anunciou a conversão ao povo por meio de um édito:

O território de Kalinga foi conquistado pelo rei, Amado pelos Deuses, no oitavo ano do seu reino. Cento e cinquenta mil pessoas foram capturadas, cem mil foram assassinadas, e um número muito maior morreu. Logo após a conquista desse povo, o rei passou a se dedicar intensamente ao estudo do darma…
O Amado pelos Deuses, conquistador de Kalinga, agora está tomado de remorso. Pois sentiu grande tristeza e arrependimento, porque a conquista de um povo nunca antes conquistado envolve massacre, morte e deportação.

A partir de então, Ashoka decidiu redimir-se — estender a mão a seu povo. Para isso, escrevia seus éditos não em sânscrito, a língua clássica antiga que depois se tornaria idioma oficial do Estado, mas em dialetos locais repletos de fala cotidiana.
Convertido, Ashoka renunciou à guerra como instrumento de política de Estado e adotou a bondade humana como solução para os problemas do mundo. Apesar de inspirar-se nos ensinamentos do Buda — e seu filho foi o primeiro missionário budista no Sri Lanka —, ele não impôs o budismo ao império. O Estado de Ashoka era, num sentido muito especial, um Estado secular. Amartya Sen, economista e filósofo indiano e ganhador do Prêmio Nobel, comenta:

O Estado precisa manter distância de todas as religiões. O budismo não se torna religião oficial. Todas as outras religiões precisam ser toleradas e tratadas com respeito. Portanto, o secularismo, na versão indiana, não significa “ausência de religião em questões governamentais”, mas “ausência de favoritismo de qualquer religião em detrimento de outras”.

A liberdade religiosa, a conquista do eu, a necessidade de todos os cidadãos e líderes ouvirem uns aos outros e debaterem ideias, direitos humanos para todos, tanto homens como mulheres, e a importância atribuída à educação e à saúde — ideias que Ashoka promulgou em seu império — continuam fundamentais para o pensamento budista. Ainda hoje existe no subcontinente indiano um país governado de acordo com princípios budistas: o pequeno reino do Butão, espremido entre a Índia setentrional e a China. Michael Rutland é um cidadão butanês e cônsul honorário do Butão no Reino Unido. Ele também foi tutor do antigo rei, e lhe perguntei que papel as ideias de Ashoka poderiam desempenhar num Estado budista moderno. Ele começou me apresentando uma citação:

Em todo o meu reino, jamais mandarei em você como um rei. Protegê-lo-ei como pai, cuidarei de você como irmão e servi-lo-ei como filho.” Isso poderia ter sido escrito pelo imperador Ashoka. Mas não foi. É um trecho do discurso de coroação pronunciado em 2008 pelo quinto rei do Butão, de 27 anos. O quarto rei, o que tive o grande privilégio de ensinar, viveu e continua a viver numa pequena cabana de madeira. Não há ostentação para a monarquia. Ele talvez seja o único exemplo de monarca absoluto que voluntariamente convenceu o povo a destituí-lo de seus poderes e instituir uma democracia eletiva. O quarto rei também introduziu a frase “felicidade nacional bruta” — em contraste com o conceito de “produto nacional bruto”. Além disso, como teria pensado Ashoka, a felicidade e o contentamento do povo eram mais importantes do que a conquista de outras terras. O quinto rei tem seguido praticamente à risca os preceitos budistas de monarquia.

A filosofia política e moral de Ashoka, tal como está expressa em suas inscrições imperiais, iniciou uma tradição de tolerância religiosa, de debate não violento e de compromisso com a ideia de felicidade que desde então anima a filosofia política indiana. Porém — e é um grande porém —, seu benévolo império durou pouco mais do que ele próprio. E isso nos deixa com a desconfortável questão: ideais tão elevados podem sobreviver às realidades do poder político? Ainda assim, esse governante de fato mudou o modo de pensar de súditos e sucessores. Era admirado por Gandhi, assim como por Nehru, e a mensagem de Ashoka foi parar no dinheiro moderno: em todas as cédulas indianas vemos Gandhi de frente para os quatro leões da coluna de Ashoka. Os arquitetos da independência indiana sempre pensavam nele. Mas, como diz Amartya Sen, sua influência vai muito mais longe, e toda a região tem nele uma inspiração e um modelo:

As partes de seus ensinamentos com que os indianos particularmente se identificaram na época da independência foram o secularismo e a democracia. Contudo, Ashoka é também uma grande figura na China, no Japão, na Coreia, na Tailândia, no Sri Lanka; é uma figura pan-asiática.
Neil MacGregor, in A história do mundo em 100 objetos

Nenhum comentário:

Postar um comentário