Quando
surgiram na porta do quarto, Pé-de-Vento adiantou a mão em cuja
palma estendida estava pousada a jia de olhos saltados. Ficaram
parados na porta, uns por detrás dos outros, Negro Pastinha avançava
a cabeçorra para ver. Pé-de-Vento, envergonhado, guardou o animal
no bolso.
A
família suspendeu a animada conversa, quatro pares de olhos hostis
fitaram o grupo escabroso. Só faltava aquilo, pensou Vanda. Cabo
Martim, que em matéria de educação só perdia para o próprio
Quincas, retirou da cabeça o surrado chapéu, cumprimentou os
presentes:
– Boa
tarde, damas e cavalheiros. A gente queria ver ele...
Deu
um passo para dentro, os outros o acompanharam. A família
afastou-se, eles rodearam o caixão. Curió chegou a pensar num
engano, aquele morto não era Quincas Berro Dágua. Só o reconheceu
pelo sorriso. Estavam surpreendidos os quatro, nunca poderiam
imaginar Quincas tão limpo e elegante, tão bem vestido. Perderam
num instante a segurança, diluiu-se como por encanto a bebedeira. A
presença da família – sobretudo das mulheres – deixava-os
amedrontados e tímidos, sem saber como agir, onde pousar as mãos,
como comportar-se ante o morto.
Curió
fitou os outros três, ridículo com seu rosto pintado de vermelhão
e seu fraque roçado, a pedir que se fossem dali o mais depressa
possível. Cabo Martim vacilava, como um general em véspera de
batalha, enxergando o poderio inimigo. Pé-de-Vento chegou a dar um
passo em direção à porta. Só Negro Pastinha, sempre por detrás
dos outros, a cabeçona estirada para ver, não vacilou sequer um
segundo. Quincas estava sorrindo para ele, o negro sorriu também.
Não haveria força humana capaz de arrancá-lo dali, de perto do
paizinho Quincas. Segurou Pé-de-Vento pelo braço, respondia com os
olhos ao pedido de Curió. Cabo Martim compreendeu, um militar não
foge do campo de luta. Afastaram-se os quatro de perto do caixão,
para o fundo do quarto.
Agora
estavam ali em silêncio, de um lado a família de Joaquim Soares da
Cunha, filha, genro e irmãos, de outro lado os amigos de Quincas
Berro Dágua. Pé-de-Vento metia a mão no bolso, tocava na jia
amedrontada, como gostaria de mostrá-la a Quincas! Como se
executassem um movimento de balé, ao afastarem-se do caixão os
amigos, aproximaram-se os parentes. Vanda lançava um olhar de
desprezo e reproche ao pai. Mesmo depois de morto, ele preferia a
sociedade daqueles maltrapilhos.
Por
eles estivera Quincas esperando, sua inquietação no fim da tarde
devia-se apenas à demora, ao atraso da chegada dos vagabundos.
Quando Vanda começava a acreditar o pai vencido, disposto finalmente
a entregar-se, a silenciar os lábios de sujas palavras, derrotado
pela resistência silenciosa e cheia de dignidade por ela oposta a
todas as suas provocações, de novo resplandecia o sorriso na face
morta, mais do que nunca era de Quincas Berro Dágua o cadáver em
sua frente. Não fosse a lembrança ultrajada de Otacília e ela
abandonaria a luta, largaria no Tabuão o corpo indigno, restituiria
o esquife de tão pouco uso à empresa funerária, venderia as roupas
novas por metade do preço a um mascate qualquer. O silêncio
fazia-se insuportável.
Leonardo
voltou-se para a esposa e a tia:
– Acho
que é hora de vocês irem indo. Daqui a pouco fica tarde. Minutos
antes, tudo quanto Vanda desejava era ir para casa, descansar.
Apertou os dentes, não era mulher para deixar-se vencer, respondeu:
– Daqui
a pouco.
Negro
Pastinha sentou-se no chão, encostou a cabeça na parede.
Pé-de-Vento cutucava-o com o pé, não ficava bem acomodar-se assim
diante da família do morto. Curió queria retirar-se, cabo Martim
fitava, repreensivo, o negro. Pastinha empurrou com a mão o pé
incômodo do amigo, sua voz soluçou:
– Ele
era o pai da gente! Paizinho Quincas...
Foi
como um soco no peito de Vanda, uma bofetada em Leonardo, uma
cusparada em Eduardo. Só tia Marocas riu, sacudindo as banhas,
sentada na cadeira única e disputada.
– Que
engraçado!
Negro
Pastinha passou do choro ao riso, encantado com Marocas. Mais
assustadora ainda que os seus soluços era a gargalhada do negro. Foi
uma trovoada no quarto e Vanda ouvia um outro riso por detrás do
riso de Pastinha: Quincas divertia-se uma enormidade.
– Que
falta de respeito é essa? – sua voz seca desfez aquele princípio
de cordialidade. Ante a reprimenda, tia Marocas levantou-se, deu uns
passos pelo quarto, sempre acompanhada pela simpatia do Negro
Pastinha, a examiná-la dos pés à cabeça, achando-a uma mulher a
seu gosto, um tanto envelhecida, sem dúvida, porém grande e gorda
como ele apreciava. Não gostava dessas magricelas, cuja cintura a
gente nem podia apertar. Se Negro Pastinha encontrasse essa madama na
praia, fariam misérias os dois, bastava olhar para ela e logo se via
sua qualidade. Tia Marocas começou a dizer de seu desejo de
retirar-se, sentia-se cansada e nervosa. Vanda, tendo ocupado seu
lugar na cadeira ante o caixão, não respondia, parecia um guarda
cuidando de um tesouro.
– Cansados
estamos todos – falou Eduardo.
– Era
melhor mesmo elas irem embora... – Leonardo temia a ladeira do
Tabuão mais tarde, quando houvesse cessado completamente o movimento
do comércio e as prostitutas e os malandros a ocupassem.
Educado
como era, e querendo colaborar, cabo Martim propôs:
– Se
os distintos querem ir descansar, tirar uma pestana, a gente fica
tomando conta dele.
Eduardo
sabia não estar direito: não podiam deixar o corpo sozinho com
aquela gente, sem nenhum membro da família. Mas que gostaria de
aceitar a proposta, ah! como gostaria! O dia inteiro no armazém,
andando de um lado para outro, atendendo os fregueses, dando ordem
aos empregados, arrasava um homem. Eduardo dormia cedo e acordava com
a madrugada, horários rígidos. Ao voltar do armazém, após o banho
e o jantar, sentava-se numa espreguiçadeira, estirava as pernas,
dormia em seguida. Esse seu irmão Quincas só sabia lhe dar
aborrecimentos. Há dez anos não fazia outra coisa. Obrigava-o
naquela noite a estar ainda de pé, tendo comido apenas uns
sanduíches. Por que não deixá-lo com seus amigos, aquela caterva
de vagabundos, a gente com quem privara durante um decênio?... Que
faziam ali, naquela pocilga imunda, naquele ninho de ratos, ele e
Marocas, Vanda e Leonardo? Não tinha coragem de externar seus
pensamentos: Vanda era malcriada, bem capaz de recordar-lhe as várias
ocasiões em que ele, Eduardo, começando a vida, recorrera à bolsa
de Quincas. Olhou o cabo Martim com certa benevolência.
Pé-de-Vento,
derrotado em suas tentativas de fazer Negro Pastinha levantar-se,
sentou-se também. Tinha vontade de colocar a jia na palma da mão e
brincar com ela. Nunca tinha visto uma tão bonita. Curió, cuja
infância em parte decorrera num asilo de menores dirigido por
padres, buscava na embotada memória uma oração completa. Sempre
ouvira dizer que os mortos necessitam de orações. E de padres... Já
teria vindo o sacerdote ou viria apenas no dia seguinte? A pergunta
coçava-lhe a garganta, não resistiu:
– O
padre já veio?
– Amanhã
de manhã... – respondeu Marocas.
Vanda
repreendeu-a com os olhos: por que conversava com aquele canalha?
Mas, tendo restabelecido o respeito, Vanda sentia-se melhor.
Expulsara para um canto do quarto os vagabundos, impusera-lhes
silêncio. Afinal não lhe seria possível passar a noite ali. Nem
ela nem tia Marocas. Tivera uma vaga esperança, a começo: de que os
indecentes amigos de Quincas não demorassem, no velório não havia
nem bebida nem comida. Não sabia por que ainda estavam no quarto,
não havia de ser por amizade ao morto, essa gente não tem amizade a
ninguém. De qualquer maneira, mesmo a incômoda presença de tais
amigos não tinha importância. Desde que eles não acompanhassem o
enterro, no dia seguinte. Pela manhã, ao voltar para os funerais,
ela, Vanda, recuperaria a direção dos acontecimentos, a família
estaria outra vez a sós com o cadáver, enterrariam Joaquim Soares
da Cunha com modéstia e dignidade. Levantou-se da cadeira, chamou
Marocas:
– Vamos.
E
para Leonardo:
– Não
fique até muito tarde, você não pode perder noite. Tio Eduardo já
disse que ficaria a noite toda.
Eduardo,
apossando-se da cadeira, concordou. Leonardo foi acompanhá-las até
o bonde. Cabo Martim arriscou um boa noite, madamas, não obteve
resposta. Só a luz das velas iluminava o quarto. Negro Pastinha
dormia, um ronco medonho.
Jorge
Amado, in Quincas Berro-D’água
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