Saltei
num instante para cima da laje que pesava sobre meu corpo, meus olhos
de início foram de espanto, redondos e parados, olhos de lagarto que
abandonando a água imensa tivesse deslizado a barriga numa rocha
firme; fechei minhas pálpebras de couro para proteger-me da luz que
me queimava, e meu verbo foi um princípio de mundo: musgo, charcos e
lodo; e meu primeiro pensamento foi em relação ao espaço, e minha
primeira saliva revestiu-se do emprego do tempo; todo espaço existe
para um passeio, passei a dizer, e a dizer o que nunca havia sequer
suspeitado antes, nenhum espaço existe se não for fecundado, como
quem entra na mata virgem e se aloja no interior, como quem penetra
num círculo de pessoas em vez de circundá-lo timidamente de longe;
e na claridade ingênua e cheia de febre logo me apercebi, espiando
entre folhagens suculentas, do voo célere de um pássaro branco,
ocupando em cada instante um espaço novo; pela primeira vez senti o
fluxo da vida, seu cheiro forte de peixe, e o pássaro que voava
traçava em meu pensamento uma linha branca e arrojada, da inércia
para o eterno movimento; e mal saindo da água do meu sono, mas já
sentindo as patas de um animal forte galopando no meu peito, eu disse
cegado por tanta luz tenho dezessete anos e minha saúde é perfeita
e sobre esta pedra fundarei minha igreja particular, a igreja para o
meu uso, a igreja que frequentarei de pés descalços e corpo
desnudo, despido como vim ao mundo, e muita coisa estava acontecendo
comigo pois me senti num momento profeta da minha própria história,
não aquele que alça os olhos pro alto, antes o profeta que tomba o
olhar com segurança sobre os frutos da terra, e eu pensei e disse
sobre esta pedra me acontece de repente querer, e eu posso! vendo o
sol se enchendo com seu sangue antigo, retesando os músculos
perfeitos, lançando na atmosfera seus dardos de cobre sempre
seguidos de um vento quente zunindo nos meus ouvidos, me rondando o
sono quieto de planta, despenteando o silêncio do meu ninho, me
espicaçando o couro nas pontas da sua luz metálica, me atirando
numa súbita insônia ardente, que bolhas nos meus poros, que
correntes nos meus pelos enquanto perseguia fremente uma corça
esguia, cada palavra era uma folha seca e eu nessa carreira
pisoteando as páginas de muitos livros, colhendo entre gravetos este
alimento ácido e virulento, quantas mulheres, quantos varões,
quantos ancestrais, quanta peste acumulada, que caldo mais grosso
neste fruto da família! eu tinha simplesmente forjado o punho,
erguido a mão e decretado a hora: a impaciência também tem os seus
direitos!
Raduan
Nassar, in Lavoura Arcaica
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