O
que mais me desagradava naqueles dias de cegueira periódica era a
fala de Seu Chico Brabo, o vizinho da direita. A minha cama de lona,
encostada à parede que nos separava do beco, estava perto da família
Sabiá. A casa de Seu Chico Brabo distanciava-se: havia de permeio a
sala de jantar e a despensa. Mas quando ele falava, o bendito de D.
Conceição esmorecia, findavam as conversas, os cochichos dos
moleques na cozinha, o rumor do abano, o crepitar das labaredas que
lambiam o angico no fogão. Era como se o homem tivesse atravessado
muros e portas, estivesse ali junto de mim. Surpreendia-me o vozeirão
tremendo, quase irreconhecível despido das gentilezas macias que o
abrandavam na calçada e na rua.
Seu
Chico Brabo era solteiro, de meia-idade, grosso, baixo, na cara
balofa e amarelenta uma barba ruiva, olhos miúdos e de porco. Não
me lembro de tê-lo visto nas cavaqueiras de proprietários e
negociantes, que, depois do Vigário e do Juiz, formavam a
aristocracia do lugar e marcavam a distinção usando capotes e
cache-nez de lã no inverno. Vivia modestamente, aparecia em mangas
de camisa, no peito descoberto uma grenha vermelhaça. Ignoro que
ofício tinha. Arredio, isentava-se dos deveres sociais com sorrisos
tímidos, cumprimentos, alguma frase obsequiosa.
Manipulava,
drogas, possuía uma farmácia caseira, chegava se aos doentes e
medicava-os de graça. Fazia festas às crianças, acariciava-as
passando-lhes nos cabelos os dedos curtos e gordos. Interessou-se
vivamente pela asma de Leonor. Debruçado à janela, conversou com
minha mãe, pedindo notícias e dando conselhos. No dia seguinte
ofereceu-lhe uns pacotinhos de pó branco. Seguindo as prescrições
dele, minha irmã curou-se.
Na
casa de Seu Chico Brabo não havia saias: todo o serviço estava a
cargo de João, um garoto de dez anos, estabanado, alegre, a alma se
espelhando em duas filas de dentes largos, sempre expostos. João
preparava a comida, trazia da feira os mantimentos, ia buscar água
na cacimba da Intendência. Da minha cama de inválido, eu notava
pedaços do trabalho dele: móveis deslocados, o chiar da vassoura no
tijolo. De repente tudo se sumia, dominado pelo grito rouco e
poderoso de Seu Chico Brabo:
— João!
Ô João!
O
rapaz se esquivava, o chamado persistia, enérgico:
— João!
Ô João!
Eu
desejava que o menino acorresse, findasse o brado longo, a
repreensão, o castigo. Se ele tardasse, o amo se zangaria, agravaria
a punição. Engano. Seu Chico Brabo não se zangava: prosseguia do
mesmo jeito, até que o pequeno se desentocasse e fosse receber as
pancadas. Essa falta de pressa nas duas partes me alarmava, dava-me
suores frios. Como podia alguém conservar tranquilidade em
semelhante situação? Quando me acontecia, uma desgraça como
aquela, mexia-me, na tremura e no medo, a tentar uma defesa
improvável, a condenar-me.
Realmente
eu não sabia se Seu Chico Brabo estava tranquilo. Talvez houvesse
nele uma cólera maciça, inalterável. O objeto dela ficaria
escondido muitas horas, sem aumentá-la, sem diminuí-la. A ausência
de gradação enchia-me de pasmo, de mal-estar novo. As cinco sílabas
caíam pesadas, as duas primeiras juntas, as últimas depois de uma
pausa. Arrepiava-me, cobria as orelhas com as palmas das mãos
úmidas, torcia-me Com desespero, mentalmente me dirigia a um
esconderijo:
— Sai,
João. Vai logo.
Certamente
aquilo era pior que todas as chicotadas. Um instante de silêncio,
resfôlego encatarroado, tosse, gorgolejo de bicho frio. Na minha
imaginação um corpo lento se desenroscava, o toicinho da papada
tomava consistência, a brancura e a moleza se coloriam. Dedos curtos
se alongavam, transformavam-se em garras. E o apelo tornava, rouco,
formidável grunhido paciente de animal forte que nunca deixa o
sossego.
Bem.
Agora João tinha resolvido largar o refúgio, confiar-se ao destino,
mas isto não abreviava a representação. Antes de lhe tombar no
cachaço, com força de malho, o punho cabeludo, havia uma extensa
arguição, um minucioso rol de culpas, dividido em capítulos
espaçados, findos na voz imutável:
— João!
Ô João!
Como
se gritava daquele modo a uma pessoa que estava ali perto, Deus do
céu? Um grito longo, interrompido, recomeçado. Na cara biliosa
haveria, sem dúvida umas gotas de sangue. Isto não precipitava o
desenlace: a tortura se aprofundava e alargava, metódica. Duas mãos
inchadas seguravam braços finos, sacudiam-nos reforçando as
objurgatórias. Suponho que Seu Chico Brabo não sentia prazer em
magoar fisicamente a criança: gostava de aperreá-la devagar,
feri-la com palavras. É possível que as palavras não ferissem,
resvalassem na alma habituada às ameaças. Afinal dois ou três
golpes fofos. Guinchos de um; sopros, respiração ofegante do outro.
Depois tudo se acalmava e os rumores comuns voltavam a embalar-me.
No
dia seguinte João estaria assobiando, cantando, arrastando as
cadeiras, varrendo o tijolo. O homem lívido espalharia as banhas de
capado no peitoril da janela, rosnaria grave e tímido à saudação
dos transeuntes, falaria às mulheres da vizinhança, ensinando-lhes
mezinhas, prestimoso, solícito.
Duas
figuras me perseguiam na doença prolongada: o sujeito amável, visto
na rua, e a criatura feroz da sala de jantar. As discrepâncias
avultavam, acumulavam-se - e era difícil admitir que alguém fosse
tão generoso e tão cruel.
A
recordação daquela doçura mole, dos papelinhos de pó branco, dos
sorrisos, trazia-me ao espírito bondade completa; os urros furiosos
e os sopapos descarregados em João exibiam-me completa maldade. Onde
estava Chico Brabo? Qual dos dois era o verdadeiro Chico Brabo?
Estarrecia-me esse desdobramento. Decerto havia nos filhos de Deus
muito desconchavo e muita rabugem. Poucos chegavam, como D. Maria, a
apresentar serenidade invariável, resistente a dores de barriga e
enxaquecas. Mas, D. Maria, a velha professora quase analfabeta,
aproximava-se da santidade. Os outros viventes possuíam virtudes e
defeitos, com desvios e oscilações.
Chico
Brabo parecia-me dois seres incompatíveis. Em vão tentei
harmonizá-los. As lembranças multiplicavam-se, exageravam-se.
Arriado na cama de lona, as pálpebras coladas, via distintamente um
deles. Os ouvidos excitados na cegueira fixavam-me na imaginação o
segundo.
Quando
a visão tornava, os dois tipos faziam as pazes, reciprocavam
concessões. Os meus olhos enchiam-se de imagens. Os meninos de
Teotoninho Sabiá esvoaçavam. José da Luz vinha contar-me
histórias. Uma porta se abria na Rua da Palha, expunha à vila a
festa permanente do jardim florido. Nos sábados o largo se povoava
de barracas; matutos, de gibão e guarda-peito, andavam na feira, aos
tropicões, as rosetas das esporas tilintando. Domingo, na missa das
dez, nuvens de incenso escureciam os altares, ramagens de chita e
véus de noivas; repiques de sinos abafavam o burburinho da multidão,
gritos de almas novas a esgoelar-se na pia, batizando-se. A vila se
agitava. E nessa agitação Chico Brabo se diluía, pedaços de Chico
Brabo se confundiam com pedaços de outros viventes. Os meus olhos
piscos divagavam, buscando andorinhas no céu ou tropeçando na
leitura.
Mas
tornavam a inutilizar-se, a esconder-se, lacrimosos e supurantes, sob
o pano escuro. E Chico Brabo novamente se desagregava. A parte boa
ficava lá fora, gastando-se em gentilezas, em obséquios às donas
de casas, aos meninos asmáticos.
A
parte ruim se concentrava na sala de jantar e demolia João. Se Chico
Brabo tivesse criados, vaqueiros, mulher, filhos, moleques na
cozinha, dividiria, subdividiria a zanga, distribuí-la-ia
equitativamente, e as parcelas nem seriam percebidas. Chico Brabo só
dispunha daquela pequena subserviência. Depositava nela o veneno que
produzia, purificava-se, voltava à sala, ia alagar as crianças,
oferecer remédio às vizinhas.
Graciliano
Ramos, in Infância
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