Ilustração: Darcy Penteado
Afastou-me
da escola, atrasou-me, enquanto os filhos de Seu José Galvão se
internavam em grandes volumes coloridos, a doença de olhos que me
perseguiu na meninice. Torturava-me semanas e semanas, eu vivia na
treva, o rosto oculto num pano escuro, tropeçando nos móveis,
guiando-me às apalpadelas, ao longo das paredes. As pálpebras
inflamadas colavam-se.
Para
descerrá-las, eu ficava tempo sem fim mergulhando a cara na bacia de
água, lavando-me vagarosamente, pois o contacto dos dedos era
doloroso em excesso. Finda a operação extensa, o espelho da sala de
visitas mostrava-me dois bugalhos sangrentos, que se molhavam
depressa e queriam esconder-se. Os objetos surgiam empastados e
brumosos. Voltava a abrigar-me sob o pano escuro, mas isto não
atenuava o padecimento. Qualquer luz me deslumbrava, feria-me como
pontas de agulhas. E as lágrimas corriam, engrossavam,
solidificavam-se na pele vermelha e crestada. Necessário mexer-me à
toa, em busca da bacia de água.
Sem
dúvida o meu aspecto era desagradável, inspirava repugnância. E a
gente da casa se impacientava. Minha mãe tinha a franqueza de
manifestar-me viva antipatia. Dava-me dois apelidos:
bezerro-encourado e cabra-cega. Bezerro-encourado é um intruso.
Quando uma cria morre, tiram-lhe o couro, vestem com ele um órfão,
que, neste disfarce, é amamentado. A vaca sente o cheiro do filho,
engana-se e adota o animal. Devo o apodo ao meu desarranjo, à
feiúra, ao desengonço. Não havia roupa que me assentasse no corpo:
a camisa tufava na barriga, as mangas se encurtavam ou alongavam, o
paletó se alargava nas costas, enchia-se, como um balão. Na verdade
o traje fora composto pela costureira módica, atarefada, pouco
atenta às medidas. Todos os meninos, porém, usavam na vila fatiotas
iguais, e conseguiam modificá-las, ajeitá-las. Eu aparentava
pendurar nos ombros um casaco alheio. Bezerro-encourado. Mas não me
fazia tolerar. Essa injúria revelou muito cedo a minha condição na
família: comparado ao bicho infeliz, considerei-me um pupilo
enfadonho, aceito a custo. Zanguei-me, permanecendo exteriormente
calmo, depois serenei. Ninguém tinha culpa do meu desalinho,
daqueles modos horríveis de cambembe. Censurando-me a inferioridade,
talvez quisessem corrigir-me.
A
outra alcunha era mais insultuosa que a primeira. Lembrava-me do jogo
infantil e arreliava-me:
— Cabra-cega!
— Inhô.
— Donde
vem?
— Do
mundéu.
— Traz
ouro ou prata?
— Ouro.
Largavam
em seguida uma porcaria que tinha besouro como rima; se a
resposta fosse prata, a indecência terminava, em barata. Eu
abominava os nomes sujos, a brincadeira imunda enojava-me. Não sabia
por que me balizavam daquela forma. Se se referissem a uni cavalo
cego, não me ofenderiam tanto.
Com
certeza pensavam no diálogo, lançavam-me indiretamente as
grosserias ligadas ao besouro e à barata. Aperreava-me, não
esquecia o folguedo mortificante:
— Cabra-cega!
— Inhô.
— Donde
vem?
— Do
mundéu.
Ia
até o fim, repisava mentalmente a safadeza que não ousava dizer em
voz alta. Aquilo não era comigo, convencia-me de que minha mãe não
tivera a idéia de juntar-me ao besouro e à barata. Se a oftalmia
desaparecesse, a expressão vexatória desapareceria também, eu
regressaria ao catecismo, às histórias do Barão de Macaúbas.
A
doença estirava-se — e eu sofria duplamente os efeitos dela.
Parece que se aborreciam por meu organismo teimar em conservar-se
achacado e mofino.
De
fato não havia medicação, mas punham-me às vezes nos olhos uma
camada pegajosa de clara de ovo batida, imobilizavam-me na cama de
lona. Isolavam o órgão deteriorado: a clara transformava-se numa
espécie de resina, grudava as pestanas. Não me queixava nem gemia.
Debaixo daquela máscara, as feridas resguardavam-se dos mosquitos,
mas as dores eram atrozes, o calor imenso. Picadas multiplicavam-se:
mãos invisíveis metiam-me pregos finos na cabeça. Tentava
distrair-me ouvindo os sapos do açude da Penha. Os sapos só se
explicavam de noite: durante o dia as vozes deles misturavam-se a
outros rumores. Quando me permitiriam levantar-me, chegar ao
lavatório de ferro, diluir a pasta seca pregada na minha cara? Lá
iria capengando, tateando as paredes. Livre do terrível medicamento,
voltaria à cama, o choro cairia manso.
Na
escuridão percebi o valor enorme das palavras. Em dias de claridade
e movimento entretinha-me a observar a loja e o armazém, percorria
alguns metros do largo e alguns metros da Rua da Palha, de casa para
a escola, da escola para casa. Não conhecia a vila, mas certos
pontos e certas figuras me despertavam a atenção, ganhavam relevo:
a torre da igreja, residência de corujas, o quartel da polícia, o
jardim e as mulheres que podavam roseiras, a maravilhosa frontaria de
azulejos, Filipe Benício, Teotoninho Sabiá, José da Luz, D. Maria,
Padre João Inácio. Nos arames bambos do telégrafo pousavam
lavadeiras, enganchavam-se rabos de papagaios de papel. O portão,
sempre fechado, nos separava do beco. No muro de tijolo vermelho
passeavam lagartixas.
Agora
a sombra espessa cobria tudo. O muro se desmoronava, como o outro se
desmoronara anos atrás. De novo surgiam as plantas meio esvaídas, o
descaroçador do Cavalo-Morto, nuvens de algodão esvoaçando. A
igreja, os postes e os arames do telégrafo, aves e flores, a fachada
luminosa, transeuntes, dissipavam-se, vagos e distantes: no rigor do
verão envolviam-se numa densa garoa de inverno.
Mas
os ruídos avultavam, todos os sons adquiriam sentido. Os passos
revelavam as criaturas, quase se confundiam com elas: para bem dizer
tinham forma, feições, e era-me possível saber de longe se estavam
zangados ou satisfeitos. D. Conceição rezava o bendito na casa
próxima: certamente calejava o espírito e os joelhos, adorando as
litografias do oratório. Pedras de gamão estalavam à distância,
dados chocalhavam, os parceiros gritavam números, excitados ou
deprimidos. Ao ramerrão externo associava-se o caseiro: pedaços de
conversas, lamúrias de criança, o chiar da água a ferver na
chaleira, o crepitar das labaredas, a vibração do abano, o cochicho
dos moleques. Os meus ouvidos aguçavam-se, reconstituíam frases
indistintas, supriam lacunas — e isto encurtava ou alongava o
tempo. Aos dois epítetos injuriosos uniam-se falas ásperas, que me
atormentavam, agravavam as ferroadas dos mosquitos. Num sussurro, a
voz de minha irmã feia e boa tinha ação entorpecente, deslizava
branda pelas feridas, como penugem. As dores esmoreciam, as horas
passavam rápidas.
Em
falta desse enlevo, procurava anestesiar-me ouvindo as cantigas de
minha mãe, duas cantigas desafinadas que a divertiam na fazenda.
Provavelmente
surgiram antes, mas foi lá que me inteirei delas. Continuaram na
vila, durante alguns anos. Depois, quando nos mudamos para a cidade e
melhoraram as condições econômicas, sumiram-se, porque o
sentimento artístico de minha mãe se embotou ou porque se tornou
mais exigente. Uma das poesias começava assim:
A
letra A quer dizer — amaria minha;
A
letra B quer dizer — bela adoraria;
A
letra C quer dizer — casta mulher;
A
letra D quer dizer — donzela amada;
A
letra E quer dizer — és uma imagem;
A
letra F quer dizer — formosa deusa.
Em
vez de efe, minha mãe pronunciava fê, o que decerto
convinha ao último verso, e rematava-o com formosa deus, pois não
admitia divindade fêmea além da Virgem Maria. Insinuei-lhe mais
tarde que também se podia usar efe. E a donzela amada era uma
deusa, na opinião do poeta. Enjoou-se, considerou as novidades
impertinências. A lengalenga se arrastava por todo o alfabeto. Quase
todo o alfabeto: impossível encaixar a bela adorada no K e no Y.
A
segunda composição referia-se a episódios da chegança, briga de
mouros e crentes verdadeiros, mas tinha o nome de marujada e
encerrava diversas interpolações. Acomodara-se a epopéia à
cantiga.
Mestre
piloto,
Onde
está o seu juízo?
Por
causa de sua cachaça
Todos
nós estamos perdidos.
A
cantora se interrompia, descrevia a cena: oficiais indignados, mestre
piloto aos bordos, levando à boca o gargalo de uma garrafa. A
agitação diminuía. Agora os marinheiros se esgoelavam:
O
capitão cheira a cravo;
O
mar-e-guerra, a canela;
O
pobre do cozinheiro
Fede
a tisna de panela.
Aí
havia uma deturpação: mar-de-guerra. Eu tinha ideia de mar, açude
infinito, e imaginava guerra, barulho multiplicado, mas não chegava
a perceber uma guerra dona do mar. Esquisito. Na comprida noite
esforçava-me por decifrar esse desconchavo. O pensamento divagava,
escorregava de um assunto a outro, buscava segurar-se a paredes
negras.
Na
Rua da Palha, meninos cantavam a tabuada, adquiriam as virtudes
teologais, fugiam dos inimigos da alma, detinham-se em bonitas
estampas coloridas, recitavam o caso de uma ferradura achada,
vendida, substituída por um cacho de cerejas. Quando a réstia
chegasse ao risco do lápis que marcava duas horas, todos se
levantariam, sairiam pelas ruas em algazarra. Nunca me agitaria
assim.
Um
dia as trevas se adelgaçavam, pedaços do mundo apareciam-me
confusos na madrugada nebulosa. Queria fixar-me neles, cheio de
alegria louca, a pestanejar furiosamente. Voltava às ocupações
miúdas, às brincadeiras mornas e tranqüilas. Já não era
cabra-cega. Mas permanecia bezerro-encourado. Em silêncio, resvalava
na tristeza e no desânimo. Osório e Cecília falavam com segurança
e clareza, liam depressa, distanciavam-se. Os meus desgraçados olhos
vagueavam na página amarelada, molhavam os contos execráveis do
Barão de Macaúbas. Os dedos emperrados manchavam-se de tinta,
sujavam o papel, traçavam garranchos ilegíveis fora das linhas. Não
havia meio de ir para diante.
E
meses depois, nova pausa, novo mergulho na sombra. Movia-me
penosamente pelos cantos, infeliz e cabra-cega, contentando-me com
migalhas de sons, farrapos de imagens, dolorosos.
Graciliano
Ramos, in Infância
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