terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

A toca


Ao longo de dois dias, a loba e Caolho andaram perto do acampamento indígena. Ele estava preocupado e apreensivo, porém o acampamento atraía a companheira, que não queria saber de partir. Mas quando, certa manhã, o ar foi rasgado com o estampido de um rifle ali bem perto e uma bala esmagou-se contra o tronco de uma árvore a vários centímetros da cabeça de Caolho, eles não hesitaram mais e partiram num longo e balouçante galope que interpôs rápidos quilômetros entre eles e o perigo.
Não foram longe – uma viagem de alguns dias. A necessidade da loba de achar o que procurava tinha se tornado imperiosa. Ela estava ficando muito pesada, e só conseguia correr lentamente. Certa vez, na perseguição a um coelho, que comumente teria pego com facilidade, ela desistiu, deitou-se e descansou. Caolho aproximou-se, mas quando roçou gentilmente o pescoço dela com o focinho, a loba tentou mordê-lo com tal rapidez e ferocidade que ele rolou para trás e fez má figura nos seus esforços para escapar dos dentes da companheira. O pavio da loba estava mais curto do que nunca, mas ele tinha se tornado mais paciente do que nunca, e mais solícito.
E então ela encontrou o que procurava. Ficava alguns quilômetros acima de uma pequena corrente que no verão corria para o Mackenzie, mas que estava então congelada até o seu fundo rochoso – uma corrente morta de uma brancura sólida da nascente até a foz. A loba estava caminhando cansada, o companheiro bem à frente, quando se viu diante do alto e pendente barranco de barro. Ela virou-se para o lado e aproximou-se do local. As tempestades da primavera e as neves derretidas tinham provocado uma erosão por baixo do barranco e, num certo lugar, formara uma pequena caverna numa fissura estreita.
Ela parou na boca da caverna e examinou a parede do barranco com muito cuidado. Depois, num e noutro lado, correu ao longo da base da parede até o ponto em que seu volume abrupto se fundia na paisagem de linhas mais suaves. Retornando à caverna, entrou pela boca estreita. Ao longo de quase um metro foi compelida a se agachar, depois as paredes se alargaram e se tornaram mais elevadas, formando uma pequena câmara redonda com um diâmetro de quase dois metros. O teto mal ultrapassava a sua cabeça. Era um lugar seco e abrigado. Ela o inspecionou com um cuidado laborioso, enquanto Caolho, que tinha retornado, esperava na entrada, observando-a pacientemente. Ela baixou a cabeça, colou o focinho ao chão apontado para um ponto perto de suas patas amontoadas, e ao redor desse ponto circulou várias vezes; depois, com um suspiro de cansaço que era quase um rosnado, enroscou o corpo, relaxou as patas e deixou-se cair, a cabeça virada para a entrada. Caolho, com as orelhas atentas em pé, riu da companheira, e ao longe, delineado contra a luz branca, ela podia ver o roçar da sua cauda balançando afavelmente. Suas próprias orelhas, com um movimento de aconchego, por um momento deitaram as pontas agudas para trás e para baixo contra a cabeça, enquanto a boca se abria e a língua pendia pacificamente para fora. Dessa maneira, ela expressava que estava contente e satisfeita.
Caolho sentia fome. Embora tivesse deitado na entrada e dormido, o seu sono era inquieto. Estava sempre acordando e erguendo as orelhas para o mundo brilhante lá fora, onde o sol de abril resplandecia na neve. Quando cochilava, chegavam aos seus ouvidos os tênues sussurros de fios de água corrente escondidos, e ele se acordava e escutava com atenção. O sol voltara e, ao despertar, o mundo do norte o chamava. A vida se agitava. A sensação de primavera estava no ar, a sensação de vida crescendo sob a neve, de seiva subindo pelas árvores, de brotos rebentando os grilhões da geada.
Ele lançou olhares ansiosos para a companheira, mas ela não demonstrou desejo de se levantar. Ele olhou para fora, e meia dúzia de emberizas das neves esvoaçaram pelo seu campo de visão. Começou a se levantar, depois olhou de novo para a companheira, acomodou-se e cochilou. Um canto agudo e fino se insinuou nos seus ouvidos. Uma, duas vezes, esfregou sonolentamente o focinho com a pata. Foi então que acordou. Ali, zumbindo no ar na ponta de seu focinho, estava um mosquito solitário. Era um mosquito adulto, um inseto que permanecera congelado numa tora seca durante todo o inverno, e que agora fora derretido e liberado pelo sol. Ele não pôde mais resistir ao chamado do mundo. Além disso, estava com fome.
Arrastou-se até a companheira e tentou persuadi-la a se levantar. Mas ela apenas rosnou, e ele partiu sozinho à luz brilhante do sol para descobrir a superfície da neve macia sob as patas e o caminhar difícil. Subiu o leito congelado da corrente, onde a neve, coberta pela sombra das árvores, ainda estava dura e cristalina. Ausentou-se por oito horas, e voltou pela escuridão mais faminto do que quando partira. Tinha encontrado caça, mas não a pegara. Ao caminhar, quebrava a crosta de neve já meio derretida e chafurdava, enquanto os coelhos deslizavam pela neve mais leves do que nunca.
Parou na boca da caverna com um choque repentino de suspeita. Sons fracos e estranhos vinham lá de dentro. Não eram sons produzidos pela sua companheira, mas ainda assim eram remotamente familiares. Arrastando a barriga no chão, ele entrou cautelosamente e foi recebido com um rosnado de alerta da loba. Isso ele recebeu sem perturbação, embora obedecesse o aviso mantendo-se à distância, mas continuou interessado nos outros sons – soluços molhados de saliva, fracos, amortecidos.
A companheira irritada mandou que se afastasse, e ele se enroscou e dormiu na entrada. Quando chegou a manhã e uma luz vaga impregnou o ar, ele procurou de novo a fonte dos sons remotamente familiares. Havia um novo tom no rosnado de alerta da companheira. Era de ciúme, e ele cuidou para manter uma distância respeitosa. Ainda assim, descobriu, abrigados entre as patas da loba e encostados ao longo de seu corpo, cinco estranhos pequenos feixes de vida, muito frágeis, muito desamparados, fazendo uns barulhos muito fracos de choro, com uns olhos que ainda não se abriam para a luz. Ele estava surpreso. Não era a primeira vez na sua longa e bem-sucedida vida que isso lhe acontecia. Já acontecera muitas vezes, mas cada vez era sempre a mesma surpresa.
A companheira olhou para ele ansiosa. De vez em quando emitia um grunhido baixo, e às vezes, quando lhe parecia que ele se aproximava demais, o grunhido disparava na sua garganta para se transformar num rosnado agudo. Na sua experiência, não constava nenhuma lembrança de acontecimento ruim, mas no seu instinto, que era a experiência de todas as mães de lobos, aparecia furtivamente a memória de pais que tinham devorado a prole recém-nascida e indefesa. Essa memória se manifestava como um medo forte, o que a levava a não deixar que Caolho inspecionasse mais de perto os filhotes que tinha gerado.
Mas não havia perigo. O velho Caolho sentia a premência de um impulso, que era, por sua vez, um instinto que lhe fora legado por todos os pais de lobos. Ele não o questionava, nem se intrigava sobre o que sentia. Estava ali, na fibra de seu ser, e era a coisa mais natural do mundo que o obedecesse, virando as costas para a sua família recém-nascida e afastando-se pela trilha da carne que lhe dava o sustento.
A oito ou dez quilômetros da toca, a corrente se dividia, os seus braços diminuindo entre as montanhas em ângulo reto. Ali, dirigindo-se ao braço esquerdo, ele encontrou um rastro fresco. Farejou-o e achou-o tão recente que se agachou rapidamente e olhou na direção em que desaparecia. Depois virou-se deliberadamente e tomou a direção do braço direito. A pegada era muito maior do que a de suas patas, e ele sabia que na esteira dessa trilha havia pouca carne para ele.
Depois de percorrer uns oitocentos metros pelo braço direito, seus ouvidos rápidos captaram o som de dentes roendo. Espreitou a caça e descobriu que se tratava de um porco-espinho ereto contra uma árvore e experimentando os dentes na casca. Caolho aproximou-se cuidadosamente, mas sem esperanças. Ele conhecia a espécie, embora nunca a tivesse encontrado numa região tão ao norte, e jamais na sua vida o porco-espinho lhe servira de refeição. Mas aprendera há muito tempo que havia algo chamado Acaso, ou Oportunidade, e ele continuava a se aproximar. Impossível dizer o que poderia acontecer, pois com os seres vivos os acontecimentos estavam sempre ocorrendo de maneira diferente.
O porco-espinho enrolou-se como uma bola, irradiando em todas as direções espinhos longos e agudos que desafiavam para um ataque. Certa vez, na sua juventude, Caolho farejara de perto uma bola semelhante de espinhos aparentemente inerte, e recebera no focinho um safanão repentino do rabo. Um dos espinhos ele levara junto no focinho, onde tinha permanecido por semanas uma flama ulcerada, até finalmente se extinguir. Por isso ele se deitou numa confortável posição agachada, o focinho a uns bons trinta centímetros de distância e fora da linha de ação do rabo. Assim esperou, mantendo-se bem quieto. Não havia como saber. Algo poderia acontecer. O porco-espinho poderia se desenrolar. Talvez surgisse a oportunidade de enfiar uma pata ágil e dilacerante na barriga macia e desprotegida.
Mas ao cabo de meia hora levantou-se, rosnou com raiva para a bola sem movimento e seguiu adiante. Muitas vezes já esperara em vão que os porcos-espinhos se desenrolassem, não ia perder mais tempo. Continuou a subir o braço direito. O dia passou, e nada recompensou a sua caçada.
O instinto de paternidade despertado no seu interior era forte. Devia encontrar alguma carne. À tarde, encontrou por acaso uma perdiz. Saiu de um matagal e deu de cara com o pássaro de raciocínio lento. Estava pousado sobre uma tora, a menos de trinta centímetros da ponta do seu focinho. Cada um viu o outro. O pássaro levantou voo sobressaltado, mas ele o golpeou com a pata, esmagou-o no chão, depois pulou em cima e pegou-o entre os dentes enquanto corria pela neve tentando subir novamente no ar. Quando os dentes mastigaram com ruído a carne macia e os ossos frágeis, ele começou naturalmente a comer. Mas então lembrou-se e, tomando a trilha de volta, partiu rumo à toca, levando a perdiz na boca.
Um quilômetro e meio acima dos braços da corrente, correndo com patas de veludo como era seu costume, uma sombra deslizante que explorava cautelosamente cada nova vista da trilha, deparou-se com marcas mais recentes das grandes pegadas que tinha descoberto de manhã cedo. Com o rastro indicando o caminho, seguiu preparado para encontrar o dono das pegadas a cada curva da corrente.
Enfiou a cabeça sob um canto de rocha, no ponto em que começava uma curva inusitadamente longa na corrente, e seus olhos vivos descobriram algo que o fez abaixar-se rapidamente. Era o dono do rastro, um grande lince fêmea. Estava agachada, assim como ele já tinha se agachado naquele dia, e na sua frente estava a bola de espinhos muito bem enrolada. Se ele fora uma sombra deslizante antes, agora se tornara o fantasma daquela sombra, enquanto se movia furtivamente e ao redor, arrastando-se bem para sotavento do par silencioso e imóvel.
Deitou-se na neve, depositando a perdiz ao seu lado, e, com os olhos espiando entre as folhas pontudas de um abeto baixo, observou o jogo da vida à sua frente – o lince à espera e o porco-espinho à espera, cada um concentrado na vida. E essa era a curiosidade do jogo, o modo de vida de um consistia em comer o outro, e o modo de vida do outro consistia em não ser comido. Enquanto o velho Caolho, o lobo, agachado na moita, também desempenhava o seu papel, esperando algum estranho capricho do Acaso, que o ajudaria na trilha da carne, que era seu modo de vida.
Meia hora se passou, uma hora, e nada acontecia. A bola de espinhos poderia ser uma pedra pela ausência de movimentos, o lince poderia estar congelado em mármore, e o velho Caolho poderia estar morto. No entanto, todos os três animais estavam ligados numa tensão de vida que era quase dolorosa, e jamais lhes ocorreria estar mais vivos do que então estavam na sua aparente petrificação.
Caolho moveu-se de leve e espiou com maior ansiedade. Algo estava acontecendo. O porco-espinho finalmente decidira que o seu inimigo se fora. Lenta, cautelosamente, estava desenrolando a sua armadura inexpugnável. Nenhum pressentimento o agitava. Lenta, muito lentamente, a bola ouriçada se endireitava e se alongava. Observando, Caolho sentiu uma repentina umidade na boca e uma baba de saliva, involuntária, provocada pelo cheiro da carne viva que se espalhava como um repasto à sua frente.
O porco-espinho ainda não tinha se desenrolado inteiramente quando descobriu o seu inimigo. Nesse instante, o lince atacou. O golpe foi como um lampejo de luz. A garra, com unhas rígidas curvadas como as das aves de rapina, lançou-se na parte inferior da barriga macia e voltou com um rápido movimento dilacerante. Se o porco-espinho tivesse se desenrolado completamente, ou se não tivesse descoberto o seu inimigo uma fração de segundo antes de o golpe ser desferido, a garra teria escapado incólume, mas uma pancada lateral do rabo enfiou espinhos agudos na pata no momento da retirada.
Tudo acontecera ao mesmo tempo – o golpe, o contragolpe, o guincho de agonia do porco-espinho, o grito agudo de dor e espanto repentinos do gato grande. Caolho meio que se levantou na sua excitação, as orelhas em pé, o rabo reto e trêmulo atrás de si. A má índole do lince dominou o animal. Ela pulou selvagemente sobre o que a machucara. Mas o porco-espinho, guinchando e grunhindo, com a anatomia rompida tentando fracamente enrolar-se na sua bola de proteção, deu outra pancada com o rabo, e mais uma vez o gato grande gritou de dor e espanto. Então ela passou a recuar e espirrar, o focinho cheio de espinhos como uma alfineteira monstruosa. Esfregou o focinho com as patas, tentando retirar os dardos ardentes, enfiou-o na neve, roçou-o contra galhos e ramos, sempre pulando pra lá e pra cá, para frente, para o lado, para cima e para baixo, num frenesi de dor e susto.
Ela espirrava continuamente, e o seu toco de rabo fazia o possível para chicotear, dando safanões rápidos e violentos. Depois parou com essas cabriolas e aquietou-se por um longo minuto. Caolho observava. E mesmo ele não conseguiu reprimir um sobressalto e o movimento involuntário de eriçar o pelo do lombo, quando ela de repente deu um salto para o alto, sem avisar, ao mesmo tempo que emitia um grito longo e terrível. Depois afastou-se pulando pela trilha, gritando a cada pulo que dava.
Só depois que a balbúrdia já se enfraquecera na distância e cessara, é que Caolho aventurou-se a dar uns passos para a frente. Ele caminhava tão delicadamente como se a neve estivesse atapetada de espinhos de porco-espinho, eretos e prontos a penetrar nas almofadas macias de suas patas. O porco-espinho acolheu a sua aproximação com um guincho furioso e o entrechocar-se dos longos dentes. Tinha conseguido enrolar-se numa bola de novo, mas não era bem a velha bola compacta; seus músculos estavam demasiado dilacerados para essa façanha. Ele fora rasgado quase ao meio, e ainda sangrava profusamente.
Caolho escavou com as patas bocados da neve encharcada de sangue, mastigou, sentiu o sabor e engoliu. Isso serviu como um aperitivo, e a sua fome aumentou poderosamente, mas ele era muito velho no mundo para esquecer a cautela. Esperou. Deitou-se e esperou, enquanto o porco-espinho rangia os dentes e emitia grunhidos, soluços e, de vez em quando, pequenos guinchos agudos. Em pouco tempo, Caolho observou que os espinhos pendiam e que um grande tremor tomara conta do animal. A tremedeira cessou de repente. Houve um último e desafiador entrechoque dos longos dentes. Depois todos os espinhos tombaram, e o corpo relaxou e não se moveu mais.
Com uma pata nervosa e amedrontada, Caolho espichou o porco-espinho em todo o seu comprimento e virou-o de barriga para cima. Nada aconteceu. Estava certamente morto. Examinou-o com atenção por um momento, depois pegou-o cuidadosamente com os dentes e começou a descer a corrente, em parte carregando, em parte arrastando o porco-espinho, com a cabeça virada para o lado a fim de não pisar na massa espinhosa. Lembrou-se de algo, deixou cair a carga e voltou ao lugar em que tinha abandonado a perdiz. Não hesitou nem um momento. Sabia muito bem o que devia ser feito, e o fez comendo imediatamente a perdiz. Depois retornou e pegou a sua carga.
Quando arrastou o resultado da caçada do dia para dentro da caverna, a loba inspecionou o porco-espinho, virou o focinho para o companheiro e lambeu de leve o seu pescoço. Mas no instante seguinte já o avisava para se afastar dos filhotes com um rosnado que era menos áspero do que o normal e mais apologético que ameaçador. O seu medo instintivo do pai da sua prole estava diminuindo. Ele estava se comportando como todo lobo pai devia se comportar, sem manifestar nenhum desejo perverso de devorar as novas vidas que ela tinha posto no mundo.
Jack London, in Caninos Brancos

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