W.
H. Auden escreveu (mais ou menos): “O pecado da Gula está
classificado entre os Sete Mortais, mas numa história policial
pode-se ter certeza de que o gourmet não é o culpado.” Por quê?
O poeta não explica. Os poetas nunca explicam, a não-explicação é
o poema. Talvez quisesse dizer que no gosto por comer bem
pressupõe-se uma certa delicadeza de espírito, ou que para o
gourmet nenhum crime compensa uma refeição ou uma digestão
interrompidas.
Os
vilões vorazes da história e da ficção — Henrique VIII, que
destrinchava frangos fritos com o mesmo entusiasmo com que mandava
decapitar suas mulheres, a sucessão de bichos-papões que
aterrorizam a humanidade — não são gourmets. Você não
tinha dúvidas de que o monstro embaixo da sua cama queria comer o
seu pé, mas você não o imaginava saboreando o seu pé, fazendo
“mmm” a cada cartilagem. Ele queria o seu pé só por maldade.
Mas
alguns assassinos da literatura policial foram notórios gastrônomos.
Na verdade, com exceção do Nero Wolf de Rex Stout, até aparecer o
James Bond, uma das distinções entre mocinhos e bandidos era que os
bandidos comiam melhor, e havia até uma sutil relação entre
sofisticação à mesa e requinte no crime: você podia confiar num
gourmet para ser um calhorda completo. Nestes casos,
delicadeza de espírito significava matar com o dedo mindinho
metaforicamente levantado.
Auden
talvez excluísse os gourmets do elenco de suspeitos em
qualquer história policial porque, sendo gulosos, eles já teriam
escolhido o pecado mais abrangente e exigente, o pecado que torna
todos os outros supérfluos. Um gourmet não cometeria nenhum
crime por absoluto desinteresse em pecados adicionais, pois a gula é
um pecado que se sacia no ato. A luxúria é uma condição de
insaciedade permanente, leva ao alívio passageiro, mas nunca à
plenitude. A preguiça não chega a nenhum estado de saciedade porque
nem sai do lugar. Todos os outros pecados (ira, inveja etc.) dependem
do seu objeto, o próximo, para existirem. Só a gula se basta. O
gourmet do Auden tem o álibi perfeito, porque é o único que
não precisa ser criminoso. Será isso?
Enfim,
um pouco de poesia entre as refeições.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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