O
velho Kirschblum foi muito decente; como presente de casamento
ofereceu a Mayer sociedade na loja, Premido pelas responsabilidades
da vida de casado, Mayer aceitou, embora não tivesse nenhuma vontade
de continuar trabalhando no balcão. Leia, porém, tinha seus planos
para a loja. Começou fazendo uma boa limpeza, durante a qual foram
trucidados, a golpe de vassoura, o Companheiro Inseto e o Companheiro
Aranha. O Companheiro Rato teve uma sorte ainda mais triste; Leia
arrumava as prateleiras, quando o Companheiro Rato resolveu pôr a
cabeça para fora da toca; ela soltou um berro e fugiu. Mais tarde,
quando Mayer achou o Camarada Rato morto, não teve dúvida que o
coração do animalzinho acabara por liquidá-lo; afinal, pensou com
tristeza, o Camarada Rato já não era moço e a emoção fora
demasiada. Enterrou-o no fundo do pequeno pátio, sob caixas velhas,
pedaços de madeira e latas enferrujadas.
Com
novo estoque, a vitrina arrumada, e a porta sempre aberta, os
fregueses começaram a aparecer. Mayer ficava atrás da caixa, sempre
alerta: “Pronto, senhor! Leia! Leia!” Logo pôde comprar a parte
do velho Kirschblum; e assim avançava, pouco temendo a concorrência;
ia vendendo, com um sorriso amargo nos lábios.
Havia,
contudo, um obstáculo no caminho da fortuna: a ameaça constante de
um fiscal do imposto de consumo. Este homem mal-encarado aparecia nas
horas mais imprevistas. Pedia para examinar os livros, os talões de
notas; multou Mayer várias vezes e de maneira impiedosa. Mayer logo
aprendeu a enganá-lo; e o fazia de rosto impassível,
tranquilizando-se: “São as classes dominantes. Devem ser
derrotadas. E quando o fizermos, iniciaremos a construção de uma
nova sociedade.” Leia tornara-se grande e maciça. Ajudava na loja
e ainda dirigia a casa — com energia, segundo suas próprias
palavras. Cutucava o marido quando este, em meio ao trabalho, fixava
os olhos num ponto sobre o balcão e movia os lábios fazendo gestos
— contidos, mas veementes.
O
tempo fluía. O tempo, como um rio, fluía. Aos domingos pela manhã
Mayer Guinzburg descia lentamente a Rua Felipe Camarão como um
tronco levado pela correnteza. Este rio, Felipe Camarão, desaguava
no mar — o Bom Fim. No mar Mayer Guinzburg flutuava meio afogado.
Da praia, os amigos Leib Kirschblum, Avram Guinzburg e seus filhos,
José Goldman — cumprimentavam-no. Mayer respondia. Sua voz soava
distante, porque suas orelhas estavam imersas na água, enquanto a
boca falava na superfície.
Muitos
anos se passaram assim.
Moacyr
Scliar, in O Exército de um Homem Só
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