domingo, 23 de fevereiro de 2020

1934

O velho Kirschblum foi muito decente; como presente de casamento ofereceu a Mayer sociedade na loja, Premido pelas responsabilidades da vida de casado, Mayer aceitou, embora não tivesse nenhuma vontade de continuar trabalhando no balcão. Leia, porém, tinha seus planos para a loja. Começou fazendo uma boa limpeza, durante a qual foram trucidados, a golpe de vassoura, o Companheiro Inseto e o Companheiro Aranha. O Companheiro Rato teve uma sorte ainda mais triste; Leia arrumava as prateleiras, quando o Companheiro Rato resolveu pôr a cabeça para fora da toca; ela soltou um berro e fugiu. Mais tarde, quando Mayer achou o Camarada Rato morto, não teve dúvida que o coração do animalzinho acabara por liquidá-lo; afinal, pensou com tristeza, o Camarada Rato já não era moço e a emoção fora demasiada. Enterrou-o no fundo do pequeno pátio, sob caixas velhas, pedaços de madeira e latas enferrujadas.
Com novo estoque, a vitrina arrumada, e a porta sempre aberta, os fregueses começaram a aparecer. Mayer ficava atrás da caixa, sempre alerta: “Pronto, senhor! Leia! Leia!” Logo pôde comprar a parte do velho Kirschblum; e assim avançava, pouco temendo a concorrência; ia vendendo, com um sorriso amargo nos lábios.
Havia, contudo, um obstáculo no caminho da fortuna: a ameaça constante de um fiscal do imposto de consumo. Este homem mal-encarado aparecia nas horas mais imprevistas. Pedia para examinar os livros, os talões de notas; multou Mayer várias vezes e de maneira impiedosa. Mayer logo aprendeu a enganá-lo; e o fazia de rosto impassível, tranquilizando-se: “São as classes dominantes. Devem ser derrotadas. E quando o fizermos, iniciaremos a construção de uma nova sociedade.” Leia tornara-se grande e maciça. Ajudava na loja e ainda dirigia a casa — com energia, segundo suas próprias palavras. Cutucava o marido quando este, em meio ao trabalho, fixava os olhos num ponto sobre o balcão e movia os lábios fazendo gestos — contidos, mas veementes.
O tempo fluía. O tempo, como um rio, fluía. Aos domingos pela manhã Mayer Guinzburg descia lentamente a Rua Felipe Camarão como um tronco levado pela correnteza. Este rio, Felipe Camarão, desaguava no mar — o Bom Fim. No mar Mayer Guinzburg flutuava meio afogado. Da praia, os amigos Leib Kirschblum, Avram Guinzburg e seus filhos, José Goldman — cumprimentavam-no. Mayer respondia. Sua voz soava distante, porque suas orelhas estavam imersas na água, enquanto a boca falava na superfície.
Muitos anos se passaram assim.
Moacyr Scliar, in O Exército de um Homem Só

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