Não
faz muito que temos esta nova TV com controle remoto, mas devo dizer
que se trata agora de um instrumento sem o qual eu não saberia
viver. Passo os dias sentado na velha poltrona, mudando de um canal
para outro — uma tarefa que antes exigia certa movimentação, mas
que agora ficou muito fácil. Estou num canal, não gosto — zap,
mudo para outro. Não gosto de novo — zap, mudo de novo. Eu
gostaria de ganhar em dólar num mês o número de vezes que você
troca de canal em uma hora, diz minha mãe. Trata-se de uma pretensão
fantasiosa, mas pelo menos indica disposição para o humor,
admirável nessa mulher.
Sofre,
minha mãe. Sempre sofreu: infância carente, pai cruel etc. Mas o
seu sofrimento aumentou muito quando meu pai a deixou. Já faz tempo;
foi logo depois que nasci, e estou agora com treze anos. Uma idade em
que se vê muita televisão, e em que se muda de canal
constantemente, ainda que minha mãe ache isso um absurdo. Da tela,
uma moça sorridente pergunta se o caro telespectador já conhece
certo novo sabão em pó. Não conheço nem quero conhecer, de modo
que — zap — mudo de canal. “Não me abandone, Mariana, não me
abandone!” Abandono, sim. Não tenho o menor remorso, em se
tratando de novelas: zap, e agora é um desenho, que eu já vi
duzentas vezes, e — zap — um homem falando. Um homem, abraçado à
guitarra elétrica, fala a uma entrevistadora. É um roqueiro. Aliás,
é o que está dizendo, que é um roqueiro, que sempre foi e sempre
será um roqueiro. Tal veemência se justifica, porque ele não
parece um roqueiro. É meio velho, tem cabelos grisalhos, rugas,
falta-lhe um dente. É o meu pai. É sobre mim que fala. Você tem um
filho, não tem?, pergunta a apresentadora, e ele, meio constrangido
— situação pouco admissível para um roqueiro de verdade —, diz
que sim, que tem um filho, só que não o vê há muito tempo. Hesita
um pouco e acrescenta: você sabe, eu tinha de fazer uma opção, era
a família ou o rock. A entrevistadora, porém, insiste (é chata,
ela): mas o seu filho gosta de rock? Que você saiba, seu filho gosta
de rock? Ele se mexe na cadeira; o microfone, preso à desbotada
camisa, roça-lhe o peito, produzindo um desagradável e bem audível
rascar. Sua angústia é compreensível; aí está, num programa
local e de baixíssima audiência — e ainda tem de passar pelo
vexame de uma pergunta que o embaraça e à qual não sabe responder.
E então ele me olha. Vocês dirão que não, que é para a câmera
que ele olha; aparentemente é isso, aparentemente ele está olhando
para a câmera, como lhe disseram para fazer; mas na realidade é a
mim que ele olha, sabe que em algum lugar, diante de uma tevê, estou
a fitar seu rosto atormentado, as lágrimas me correndo pelo rosto; e
no meu olhar ele procura a resposta à pergunta da apresentadora:
você gosta de rock? Você gosta de mim? Você me perdoa? — mas aí
comete um erro, um engano mortal: insensivelmente, automaticamente,
seus dedos começam a dedilhar as cordas da guitarra, é o vício do
velho roqueiro, do qual ele não pode se livrar nunca, nunca. Seu
rosto se ilumina — refletores que se acendem? — e ele vai dizer
que sim, que seu filho ama o rock tanto quanto ele, mas nesse momento
— zap — aciono o controle remoto e ele some. Em seu lugar, uma
bela e sorridente jovem que está — à exceção do pequeno relógio
que usa no pulso — nua, completamente nua.
Moacyr
Scliar, in Os cem melhores contos brasileiros do século
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