quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Vinhos


Já se disse mais bobagem sobre vinhos do que sobre qualquer outro assunto, com a possível exceção do orgasmo feminino e da vida eterna. Isto porque é impossível transformar em palavras as qualidades ou defeitos de um vinho ou as sensações que ele provoca, assim como é impossível, por exemplo, descrever um cheiro ou um gosto. Tente descrever o sabor de uma amora. Além de amplas e vagas categorias como “doce”, “amargo”, “ácido” etc., não existem palavras para interpretar as impressões do paladar. Estamos condenados à imprecisão ou ao perigoso terreno das metáforas. Tudo é literatura.
Mmmm, este vinho... Reticente, algo contido. Mas nota-se uma clara disposição para romper os grilhões. Não dou um ano para ele descobrir a vida e a vida descobri-lo.
Certo. Mas ou muito me engano ou detecto uma certa presunção...
Que poderá derrotá-lo, no fim.
Certo. Você diria que ele é de esquerda?
Hmmm. Deixa ver. Social-democrata. Definitivamente social-democrata.
Mas a literatura, às vezes, é melhor do que o vinho. No livro Brideshead Revisisted de Evelyn Waugh, o narrador descreve um jantar num restaurante francês — sopa de oseille, filé de peixe em vinho branco, caneton à la presse , suflê de limão — com Rex, um canadense insuportável que só fala de doença e dívidas. Waugh fala do vinho: “Durante séculos, todos os idiomas se esforçavam em definir sua beleza e produziram apenas conceitos destemperados ou os epítetos tradicionais do ramo. Este borgonha me parecia sereno e triunfante, uma lembrança de que o mundo era um lugar mais antigo e melhor do que Rex sabia, que a humanidade na sua longa paixão conquistara outra sabe doria que não a sua.”
Perfeito. Um gole de vinho extraordinário nos dá um gosto desta sabedoria acumulada no mundo, tão profunda que a linguagem não a alcança, tão completa que não precisa de metáforas, e mais antiga e melhor do que as pobres aflições do cotidiano. O borgonha a que se refere é um Clos de Bère de 20 anos.
No mesmo livro, na mesma cena, Waugh escreve que Rex insistia em falar na sua própria vida, mas que isto podia esperar “pela hora da tolerância e da repleção, pelo conhaque. Podia esperar até que a atenção estivesse entorpecida e se ouvisse com apenas metade da mente. Agora, no momento crucial em que o maître virava os blinis na panela e, ao fundo, dois homens mais humildes preparavam a prensa para o caneton, falaríamos de mim”.
A hora do conhaque é a hora da satisfação tão plena que qualquer assunto é aceitável, até a vida dos outros. Na hora do aperitivo fala-se em trivialidades, como o fim provável do mundo por estes dias ou a cotação do ouro. Com o vinho branco devemos ser brilhantes sem que isto ofusque o peixe. Frases rarefeitas que se desmanchem antes de chegar ao teto. Com o vinho tinto, sim, devemos chegar à essência das coisas, às definições, aos ossos da existência, cuidando para não manchar a camisa. Isto é, falarmos de Deus e de nós mesmos como se a distinção fosse obscura.
Um dos prazeres da meia-idade — diz ele, fazendo girar o borgonha no copo — é que podemos assumir todos os nossos preconceitos sem medo de cair de moda.
Eu também — diz o outro. — Eu...
Espere. Estamos falando de mim. Depois, seguindo uma hierarquia natural, falaremos de você.
A hora do conhaque é a hora do semicoma, que passa por generosidade. Tolerância e repleção. Um homem em paz com o universo e com a sua barriga está disposto a tudo, até a ouvir. Porque não ouve mais nada.
No último parágrafo deste capítulo exemplar, Waugh escreve: “Ele acendeu seu charuto e sentou para trás, em paz com o mundo; eu também estava em paz, com outro mundo. Ambos estávamos satisfeitos. Ele falou s obre Júlia e eu ouvi sua voz, ininteligível, a uma grande distância, como um cachorro latindo a milhas dali numa noite silenciosa.”
Experimente este rosé...
Você sabe o que dizem os franceses?
O quê?
O tinto para os franceses, o branco para os americanos, o rosé para os idiotas.
Suponho que você esteja me chamando de idiota.
Suponho que sim.
Então...
Metaforicamente, é claro.
À sua saúde. Metaforicamente.
À sua.
Que você tenha só filhos homens, e todos sejam costureiros.
Que a pomba da paz lance suas dádivas sobre sua cabeça e sua roupa nova...
Que o senhor o leve bem cedo para o Seu lado.
Que você tenha muito dinheiro e tempo para aplicá-lo numa financeira paulista, e que o Banco Central feche a financeira no dia seguinte.
Noto que você não está bebendo seu rosé. Isto é um insulto.
Proponho que se discuta isto sobre o conhaque.
Território neutro...
Isso.
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

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