Já
se disse mais bobagem sobre vinhos do que sobre qualquer outro
assunto, com a possível exceção do orgasmo feminino e da vida
eterna. Isto porque é impossível transformar em palavras as
qualidades ou defeitos de um vinho ou as sensações que ele provoca,
assim como é impossível, por exemplo, descrever um cheiro ou um
gosto. Tente descrever o sabor de uma amora. Além de amplas e vagas
categorias como “doce”, “amargo”, “ácido” etc., não
existem palavras para interpretar as impressões do paladar. Estamos
condenados à imprecisão ou ao perigoso terreno das metáforas. Tudo
é literatura.
— Mmmm,
este vinho... Reticente, algo contido. Mas nota-se uma clara
disposição para romper os grilhões. Não dou um ano para ele
descobrir a vida e a vida descobri-lo.
— Certo.
Mas ou muito me engano ou detecto uma certa presunção...
— Que
poderá derrotá-lo, no fim.
— Certo.
Você diria que ele é de esquerda?
— Hmmm.
Deixa ver. Social-democrata. Definitivamente social-democrata.
Mas
a literatura, às vezes, é melhor do que o vinho. No livro
Brideshead Revisisted de Evelyn Waugh, o narrador descreve um
jantar num restaurante francês — sopa de oseille, filé de
peixe em vinho branco, caneton à la presse , suflê de limão —
com Rex, um canadense insuportável que só fala de doença e
dívidas. Waugh fala do vinho: “Durante séculos, todos os idiomas
se esforçavam em definir sua beleza e produziram apenas conceitos
destemperados ou os epítetos tradicionais do ramo. Este borgonha me
parecia sereno e triunfante, uma lembrança de que o mundo era um
lugar mais antigo e melhor do que Rex sabia, que a humanidade na sua
longa paixão conquistara outra sabe doria que não a sua.”
Perfeito.
Um gole de vinho extraordinário nos dá um gosto desta sabedoria
acumulada no mundo, tão profunda que a linguagem não a alcança,
tão completa que não precisa de metáforas, e mais antiga e melhor
do que as pobres aflições do cotidiano. O borgonha a que se refere
é um Clos de Bère de 20 anos.
No
mesmo livro, na mesma cena, Waugh escreve que Rex insistia em falar
na sua própria vida, mas que isto podia esperar “pela hora da
tolerância e da repleção, pelo conhaque. Podia esperar até que a
atenção estivesse entorpecida e se ouvisse com apenas metade da
mente. Agora, no momento crucial em que o maître virava os
blinis na panela e, ao fundo, dois homens mais humildes
preparavam a prensa para o caneton, falaríamos de mim”.
A
hora do conhaque é a hora da satisfação tão plena que qualquer
assunto é aceitável, até a vida dos outros. Na hora do aperitivo
fala-se em trivialidades, como o fim provável do mundo por estes
dias ou a cotação do ouro. Com o vinho branco devemos ser
brilhantes sem que isto ofusque o peixe. Frases rarefeitas que se
desmanchem antes de chegar ao teto. Com o vinho tinto, sim, devemos
chegar à essência das coisas, às definições, aos ossos da
existência, cuidando para não manchar a camisa. Isto é, falarmos
de Deus e de nós mesmos como se a distinção fosse obscura.
— Um
dos prazeres da meia-idade — diz ele, fazendo girar o borgonha no
copo — é que podemos assumir todos os nossos preconceitos sem medo
de cair de moda.
— Eu
também — diz o outro. — Eu...
— Espere.
Estamos falando de mim. Depois, seguindo uma hierarquia natural,
falaremos de você.
A
hora do conhaque é a hora do semicoma, que passa por generosidade.
Tolerância e repleção. Um homem em paz com o universo e com a sua
barriga está disposto a tudo, até a ouvir. Porque não ouve mais
nada.
No
último parágrafo deste capítulo exemplar, Waugh escreve: “Ele
acendeu seu charuto e sentou para trás, em paz com o mundo; eu
também estava em paz, com outro mundo. Ambos estávamos satisfeitos.
Ele falou s obre Júlia e eu ouvi sua voz, ininteligível, a uma
grande distância, como um cachorro latindo a milhas dali numa noite
silenciosa.”
— Experimente
este rosé...
— Você
sabe o que dizem os franceses?
— O
quê?
— O
tinto para os franceses, o branco para os americanos, o rosé para os
idiotas.
— Suponho
que você esteja me chamando de idiota.
— Suponho
que sim.
— Então...
— Metaforicamente,
é claro.
— À
sua saúde. Metaforicamente.
— À
sua.
— Que
você tenha só filhos homens, e todos sejam costureiros.
— Que
a pomba da paz lance suas dádivas sobre sua cabeça e sua roupa
nova...
— Que
o senhor o leve bem cedo para o Seu lado.
— Que
você tenha muito dinheiro e tempo para aplicá-lo numa financeira
paulista, e que o Banco Central feche a financeira no dia seguinte.
— Noto
que você não está bebendo seu rosé. Isto é um insulto.
— Proponho
que se discuta isto sobre o conhaque.
— Território
neutro...
— Isso.
Luís
Fernando Veríssimo, in A mesa voadora
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