Dirigível Nº 3
Em
dezembro de 1903, Alberto Santos-Dumont, o pioneiro da aviação, há
11 anos residindo em Paris, ofereceu uma pequena recepção em seu
apartamento no Champs-Élysées. Louis Cartier, o joalheiro, estava
lá, bem como a princesa Isabel, filha de D. Pedro II, o último
imperador do Brasil. Como não houve uma lista impressa de
convidados, pode-se apenas conjeturar quem seriam os outros
participantes do jantar. Mas seus parceiros regulares dos jantares e
amigos próximos incluíam George Goursat, o sofisticado escritor e
cartunista que desenhava caricaturas dos ricos e famosos nas paredes
dos restaurantes da moda; Gustave Eiffel, o arquiteto da torre;
Antônio Prado Jr., filho de um embaixador brasileiro; dois ou três
Rothschilds, os primeiros a conhecer Santos-Dumont, agora com 30
anos, quando sua aeronave experimental caiu em seus jardins; a
imperatriz Eugênia, viúva reclusa de Napoleão III; e alguns reis,
rainhas, duques e duquesas, tão numerosos que é impossível
mencionar todos os seus nomes.
Quando
o mordomo de Santos-Dumont levou os convidados à sala de jantar,
eles acharam divertido subir numa escada portátil para se sentarem
em cadeiras com longos pés colocadas ao redor de uma mesa ainda mais
alta. Porém não ficaram surpresos. Desde o final dos anos 1890,
Santos-Dumont costumava dar “jantares aéreos”. Os primeiros
foram em mesas e cadeiras normais suspensas por cabos que eram presos
no teto do grande pé-direito do apartamento. Isso funcionava quando
o franzino brasileiro que pesava pouco mais de 50 quilos jantava
sozinho, mas, ao reunir um grupo, o teto acabou cedendo ao peso dos
convidados. Santos-Dumont era um artesão habilidoso, que aprendera
marcenaria com os empregados da fazenda de café de seu pai, e então
construíra as mesas e as cadeiras com longos pés, que se tornaram
uma característica de seu apartamento desde então. Nos primeiros
jantares, os convidados, entre goles de absinto verde leitoso,
perguntavam sempre qual era o objetivo dessa mesa tão alta. E o
tímido anfitrião, que preferia que os outros falassem, corria seus
dedos cheios de anéis entre os cabelos negros partidos ao meio, num
estilo visto quase sempre em mulheres, e explicava com malícia que
era para que imaginassem como seria a vida numa máquina voadora. Os
convidados riam. As máquinas voadoras não existiam nos anos de
1890, e os prognósticos científicos eram desanimadores.
Santos-Dumont ignorava os risinhos sarcásticos e insistia que em
breve elas estariam em toda parte.
Os
balões a gás eram vistos normalmente no céu de Paris ao final do
século XIX, mas não eram máquinas voadoras. Sem a força de um
motor, esses grandes globos flutuantes — eram descritos como
esféricos, mas, na verdade, tinham a forma de uma pera invertida —
estavam sempre à mercê do vento. Na virada do século,
Santos-Dumont revolucionou o mundo da aeronáutica. Instalou um motor
de automóvel e um propulsor num balão e, para torná-lo
aerodinâmico, deu-lhe o formato de um charuto alongado. No dia 19 de
outubro de 1901, milhares de pessoas o viram circunavegar a torre
Eiffel em sua nova aeronave. A multidão que se aglomerou nas pontes
do Sena era tão numerosa que muitos foram jogados no rio ao escalar
os parapeitos para ter uma visão melhor. Os cientistas que
observaram o voo do apartamento de Gustave Eiffel no alto da torre
tinham a certeza de que ele não conseguiria realizá-lo. Temiam que
um vento imprevisível o impelisse contra o para-raios da torre.
Outros estavam convencidos de que o balão explodiria. Quando
Santos-Dumont contrariou todas as previsões, Júlio Verne e H. G.
Wells enviaram-lhe telegramas de congratulações.
No
fim de 1903, à época dos jantares com Cartier e com a princesa
Isabel, ele tornara-se uma figura familiar no céu de Paris.
Desenhara uma pequena aeronave, que seus admiradores chamavam de
Baladeuse (“Andarilho”), seu transporte pessoal, na qual
passeava, amarrando-a nos lampiões a gás diante dos locais noturnos
em moda na cidade. O Baladeuse era tão fácil de manejar
quanto esta nova invenção, o automóvel, que percorria barulhento
as ruas de Paris, mas tinha a vantagem de não assustar os cavalos
nem os pedestres ao voar. Os dirigíveis de corrida maiores eram mais
complicados de manobrar e Santos-Dumont queixou-se com Cartier que
não conseguia calcular o tempo de seus voos, porque era muito
perigoso tirar as mãos dos controles para puxar o relógio de bolso.
Cartier prometeu arranjar uma solução e logo depois inventou um dos
primeiros relógios de pulso para ele — uma versão comercial que
se tornaria um acessório indispensável para os parisienses
sofisticados.
Santos-Dumont
tinha uma visão romântica na qual todas as pessoas no mundo
possuiriam seus próprios Baladeuses e, assim, seriam livres
como pássaros para viajar a qualquer lugar que quisessem e a
qualquer momento que lhes desse vontade. O futuro das aeronaves,
pensava, estava no balão mais leve que o ar e não no aeroplano mais
pesado que o ar, o qual até quanto sabia não progredira além dos
planadores não propelidos. Ele imaginava aeronaves gigantescas —
não zepelins rígidos, mas balões grandes e flexíveis com o local
de carga suspenso na parte de baixo — transportando passageiros
entre Paris e Nova York, Berlim e Calcutá, Moscou e Rio de Janeiro.
Santos-Dumont
não acreditava em patentes e divulgou amplamente os projetos de seus
dirigíveis. Ele via as aeronaves como carruagens da paz, contatando
culturas diferentes para que os povos se conhecessem e reduzindo,
dessa forma, as possíveis hostilidades. Em retrospecto, parece uma
visão ingênua, com a Primeira Guerra Mundial a uma década mais
adiante, porém seu otimismo não era incomum nos meios científicos
na virada do século, quando novidades como a luz elétrica, o
automóvel e o telefone transformaram de modo radical a sociedade.
Nessa
noite de dezembro de 1903, Santos-Dumont e seus amigos conversaram
sobre o ano esplêndido que ele passara. Não tivera seus acidentes
usuais, que o tornaram famoso como o homem que desafiava
constantemente a morte. Não caíra em telhados de hotéis
parisienses, nem fizera mergulhos inesperados no Mediterrâneo, ou
súbitas aterrissagens em locais estranhos. Fora um ano tranquilo. No
Baladeuse, ele possuía o céu da França. Era o único que
estava sempre voando em uma aeronave. Quando o copeiro serviu vinho
aos convidados, Cartier e a princesa Isabel fizeram um brinde à
engenhosidade do anfitrião. Ninguém mais estava perto de dominar o
ar — ou assim parecia.
Ansioso
por um novo desafio, Santos-Dumont juntou-se à competição para
construir e voar no primeiro avião do mundo. Durante uns poucos
meses, parecia ter sido bem-sucedido, mas, depois de um voo pioneiro
duramente discutido, essa glória coube a Wilbur e Orville Wright,
que haviam feito uma experiência em segredo. Santos-Dumont reteve a
distinção de ter voado no primeiro avião na Europa, e seu
entusiasmo e sua perseverança inspiraram aeronautas em todo o
continente.
No
início, a aeronáutica na Europa funcionava como um clube de
cavalheiros. Os encontros de balões nas manhãs de domingo
substituíam as partidas de polo ou as caçadas de raposas. As
máquinas voadoras eram um divertimento para os homens ricos que
possuíram os primeiros automóveis — os barões do petróleo,
advogados abastados e os magnatas da imprensa. Eles aceitaram
Santos-Dumont como um deles porque era um filho bem-educado de um
rico fazendeiro de café. Eles apoiavam os inventores de dirigíveis
e aviões financiando seus projetos e oferecendo prêmios lucrativos
para os experimentos aeronáuticos “pioneiros”: o primeiro a
contornar a torre Eiffel num balão a motor, o primeiro a voar 45
metros em um avião e o primeiro a atravessar o canal da Mancha.
O
aspecto recreativo dessas competições tinha como objetivo disfarçar
seu perigo. Mais de duzentos homens, muitos deles com mulheres e
crianças, alguns grandes engenheiros e inventores à sua época,
morreram em acidentes antes do sucesso de Santos-Dumont. Os pioneiros
da aeronáutica não possuíam as técnicas modernas para construir
uma aeronave capaz de voar com segurança. A única maneira de provar
que poderiam voar era fazendo experimentos arriscados, porque a
maioria dessas máquinas precárias não ascendia, não tinha
estabilidade no ar ou não conseguia pousar ilesa. Santos-Dumont
conhecia os riscos da aerostação. E embora falasse com os amigos
que voar era o maior prazer de sua vida, ele não teria se exposto
tanto ao perigo se não fosse por uma meta mais ambiciosa — a
invenção de uma tecnologia que revolucionaria os meios de
transporte e promoveria a paz mundial.
A
primeira metade de sua meta realizou-se durante sua vida. Hoje, o
avião é o principal meio de transporte de longa distância. Só nos
Estados Unidos decolam 90.700 voos por dia. E no Brasil 157 aviões
partem para a Europa todas as semanas. O tempo de voo de São Paulo a
Paris é de 11 horas, um percurso que Santos-Dumont faria em mais de
uma semana de navio e trem. No entanto, seu objetivo de contribuir
para a paz mundial não foi plenamente realizado. Os aviões
comerciais, o telefone, o rádio, a televisão, e agora a Internet
transformaram o mundo em uma comunidade global. Se um terremoto
atingir El Salvador, o transporte aéreo de alimentos de Londres para
o local atingido pode ser realizado em horas. Se uma epidemia de
Ebola for detectada no Congo, os médicos dos Centers for Disease
Control podem chegar lá em um dia. Porém, a aviação militar fez
milhares de vítimas não apenas em Hiroshima e Nagasaki, mas também
no curso normal da guerra. E em uma manhã do dia 11 de setembro de
2001, algo inconcebível aconteceu: dois aviões comerciais
converteram-se diabolicamente em mísseis de ataque a arranha-céus.
A primeira grande invenção do século XX tornou-se o pesadelo do
século XXI.
A
motivação dos irmãos Wright ao desenvolver o avião era diferente
da de Santos-Dumont. Eles não eram idealistas nem sonhavam reunir
pessoas distantes umas das outras. Não buscavam emoções fortes nem
romantizavam o prazer de voar, ou tinham uma certa espiritualidade
aérea. Não eram esportistas com senso de humor e com certeza não
ofereciam jantares em cadeiras com longos pés. Eles pretendiam
construir aeronaves com intuito financeiro, e quando inicialmente o
governo dos Estados Unidos recusou-se a financiá-los, eles não
tiveram escrúpulos em se aproximar de militares estrangeiros.
Às
vésperas da Primeira Guerra Mundial, quando era evidente que o avião
poderia ser usado como uma arma de destruição em massa,
Santos-Dumont foi o primeiro aeronauta a manifestar-se contra a
militarização das aeronaves. Era uma voz solitária, conclamando os
chefes de Estado a desativar suas bombas. Orville Wright não se
juntou a esse apelo (nessa época, Wilbur já havia morrido).
Santos-Dumont
foi talvez o homem mais prestigiado de Paris nos primeiros anos do
século XX. Sua imagem elegante estampava-se em caixas de charutos,
caixas de fósforos e aparelhos de jantar. Desenhistas de moda
fizeram negócios prósperos com réplicas de seu chapéu-panamá e
com seus colarinhos altos e duros dos quais ele tanto gostava.
Fabricantes de brinquedos não conseguiam produzir quantidade
suficiente de modelos de seus balões. Até mesmo os confeiteiros
franceses o homenageavam com bolos em forma de charuto decorados com
as cores da bandeira brasileira.
Ele
era famoso em ambos os lados do canal da Mancha — na verdade, em
ambos os lados do Atlântico. “Quando os nomes daqueles que
ocuparam posições de destaque no mundo forem esquecidos”,
declarou o Times londrino em 1901, “um nome permanecerá em nossa
memória, o de Santos-Dumont.”
Hoje,
seu nome quase não é lembrado fora do Brasil, onde ainda é um
herói de míticas proporções. Uma cidade, um grande aeroporto e
diversas ruas têm seu nome. A mera menção de seu nome provoca um
sorriso na maioria dos brasileiros, quando eles imaginam a época em
que seu ousado conterrâneo cruzava orgulhosamente os céus em um
pequeno balão. Assim como o resto do mundo em grande parte esqueceu
Santos-Dumont, os brasileiros, ao romantizá-lo em poemas, canções,
estátuas, bustos, pinturas, biografias e comemorações em sua
memória, esquecem seu lado negativo. Ele foi um gênio torturado, um
espírito livre que buscava escapar do confinamento da gravidade, da
rivalidade de seus companheiros aeronautas, do isolamento de sua
educação num meio rural, da visão estreita dos cientistas mais
velhos, da conformidade da vida de casado, dos estereótipos sexuais,
e mesmo do destino de sua querida invenção.
Muitos
meninos sonharam em ter uma máquina de voar, uma espécie de carro
alado que pudesse decolar e pousar em qualquer lugar sem precisar de
uma pista de pouso. No século XXI, ninguém realizou esse sonho. Uma
pequena elite corporativa utiliza helicópteros para ir ao trabalho,
voando entre locais de pouso seguros e os telhados dos escritórios.
Mas mesmo um poderoso industrial cosmopolita não pode voar até seu
restaurante favorito, ao teatro ou a uma loja. Um único homem na
história usufruiu essa liberdade. Seu nome foi Alberto
Santos-Dumont, e seu corcel aéreo era um balão dirigível.
Paul
Hoffman, in Asas da loucura
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