Não
sei onde ando com a cabeça. A casa do meu sobrinho. Será que sou
tão desligado assim? Então Adelaide tinha toda a razão. Vai ver é
o sol. A gente amolece, nem se lembra das coisas. Neste abafamento,
tudo perde a importância. O que interessa é uma sombra.
Um
pouco de ar fresco, aguinha gelada. Tenho os lábios rachados, aliás
todos nesta casa têm. Não dá para admitir isso. Nem sei onde é a
casa do meu sobrinho. Ele jamais me convidou. Disse, um dia, que mora
bem, Adelaide até desconfiava que fosse nos Palácios de Acrílico.
Nem
tenho o telefone, o endereço. Se precisasse dele numa emergência,
não teria como chamar. Não, não deve ser nos Palácios de
Acrílico, onde ficam os superfuncionários. O sobrinho é
competente, mas ainda não chegou aos escalões dos invisíveis
mordomizados, essa nova raça.
Moleza
sem tamanho, me encosto na cama, cochilo gostoso, o ventilador
movimenta ar quente, embarco... abro os olhos, tudo quieto, imagino
um cheiro podre... calmo...
– Como
é? Vai dormir quantos dias?
– Cochilei
um pouco.
– Um
pouquinho só. Pensamos que tivesse morrido, dormiu um dia e meio.
– Um
dia e meio?
– Teu
sobrinho veio providenciar as mudanças.
Anos
atrás me incomodaria ter dormido tanto, perdido tempo. Agora, se
pudesse, mergulhava no sono e acordava o mês que vem, daqui a um
ano. Hibernar, como os ursos. Hibernar, não. Veranizar, à espera de
tempos frescos e confortáveis. É, parece que ainda não acordei.
– Como
é, tio, não arrumou as coisas?
– Nem
vou arrumar, levem o que quiserem.
– A
gente escolhe?
– Antes
preciso saber se não dá para ter minha casa de volta, eu sozinho.
– Não
dá, não. É sobre isso que eu quero falar. Vem mais gente.
– Mais?
– Quatro
pessoas.
– Que
tráfico misterioso você pratica?
– Abrigo
gente que podia morrer sem teto.
– Ah,
é? E por que não cuida daqueles que estão nos Acampamentos.
– Tio,
vem me falar dos Acampamentos? Aquela gente está condenada, não dá
para contar com eles. Enquanto estes homens são técnicos
importantes.
– Técnicos?
Em quê?
– Não
vai escolher nada?
– Nada!
Levem logo.
Ajudo
os homens a amontoar tudo na sala de visitas. Mesas, cadeiras,
cristaleiras, o bar de cedro. Não estou ligando. Cada copo da
cristaleira foi comprado por Adeleide aos poucos. Nunca tivemos
dinheiro para um aparelho de uma só vez. Um dia ela chorou por um
conjunto de xícaras.
Um
par de xícaras cor-de-rosa, letras douradas: ELE-ELA. Foi da mãe
dela. Ganharam no dia do casamento. Cada semana, Adelaide abria a
cristaleira, lavava as xícaras, tirava o pó das prateleiras de
vidro. Depois trancava tudo a chave, ninguém mais abria, apenas ela.
Um
pontapé na cristaleira. Arranco copos, xícaras, cálices, taças,
licoreiras, compoteiras, miniaturas. Atiro pela janela. Um a um. Só
atirava o próximo depois de ouvir a louça se despedaçando na
calçada. Os homens gostaram da brincadeira. Entraram também.
“Essa
é minha”, gritei quando o homem que comia doces apanhou a xícara
cor-de-rosa. Com tamanha fúria que ele se assustou e deixou cair.
Apanhei os cacos, soltei de novo no chão, pisei. A outra, atirei
para a rua. Os vizinhos logo estavam na janela, protestando.
– Ficou
maluco, tio?
– Me
divirto.
– A
tia adorava essas xícaras.
– Pois
é. E onde está ela?
– Onde
está?
– Na
sua casa, tenho certeza!
– Por
que na minha casa?
– Você
aceitou com naturalidade a ausência dela. Nunca me perguntou sobre
Adelaide. Vocês se adoravam. Eram mãe e filho, grudados. Quando
pensei nisso, fiquei tranquilo. Adelaide está com você. Não está?
Não
respondeu, foi dar ordens. Se é que havia ordens a dar. Mas
Militecnos adoram lideranças, comandos, se julgam logísticos,
estrategistas. Mesmo que seja dentro de um apartamento, numa faxina,
mudança. São capazes de comandar uma ida ao banheiro, o puxar da
descarga.
Continuei
jogando minha tralha pela janela. Bateram à porta. Claro, só podia
ser a vizinha de lábios pintados. Não era. Ando ruim de
pressentimentos. Era o velho que vive tocando a Patética.
Quer saber se é mudança, ou o quê. Entrou pela sala, extremamente
magro.
Tipinho
frágil, branco, idade indefinida. Vinte ou cem anos. Fortes
entradas, e cabelos brancos muito compridos desciam pelos ombros,
escorridos. As mãos, no entanto, lisas, perfeitas, como se ele
tivesse vinte anos. Um olho bom, azul, e o outro de vidro, imóvel.
– Não
quero me intrometer. Pensei que o senhor estivesse brigando com sua
mulher. Sou amigo dela, vim ajudar.
– Não
ia ajudar muito se fosse briga mesmo.
– É
o que o senhor pensa.
– Eram
amigos?
– Muito.
Ela subia à tarde, tocávamos a Patética juntos. Ela podia
ter sido uma grande pianista. Por que desistiu?
– Por
conta dela, nunca me falou sobre o assunto. Há pouco tempo pensei
nisso. E me senti mal, fiquei pensando se fui eu que a bloqueei.
– Sua
mulher carregava problemas, era muito contida. Se controlava o tempo
todo, não se soltava, nem na música se permitia, sempre fixada à
pauta, insatisfeita, obcecada. Custei a convencê-la de que a pauta
era uma linha a seguir, correta se o pianista se ativesse a ela,
porém fria. Depois, muito depois de ver o que eu fazia em cima da
composição, passou a se aventurar, como dizia, a colocar situações
dela. Foi descortinando a liberdade com muito medo, pois quem passou
anos amarrado tem os movimentos atrofiados, precisa muita ginástica
e espaço e orientação para se repor. Sentir que podia fazer o que
bem desejasse transformou completamente sua cabeça, penso que foi
por essa razão que desapareceu. Não subiu mais e muitas vezes
toquei a Patética por tardes e noites sem parar, procurando mexer
com ela, esperando a todo momento que me batesse na porta.
– Quando
foi isso? (Perguntei enquanto pensava: tocava e me enchia.) – Dois
meses atrás, deixe-me ver, a descoberta dela se deu há dois meses e
pouco, numa tarde em que fiz doce de banana, e meu intestino se
enrolou, essas bananas factícias não funcionam, passei mal que o
senhor nem calcula. Fiquei atrapalhado, nem podia me sentar para
ouvi-la, precisava correr para o banheiro. Inquieto, suava, me
segurava, quase rachei a dentadura de tanto que rangi os dentes com
as cólicas. Aquela tarde era importante para ela, e foi para mim
também, pois consegui até me abstrair das cólicas e mergulhar na
Patética dolorida que ela me passava.
Estranha
Adelaide. Foi aí que se afastou de mim e ficou apenas à espera de
um ponto para se agarrar. Algo que justificasse o rompimento.
Amadurecia a ideia na cabeça, rezava por um momento. Um modo de me
dizer sem me ferir. Ao menos tivemos isso todos esses anos.
Não
nos machucarmos. Todo dedos um com o outro. Nenhuma agressão.
Discussões amáveis, um acabava concordando quando o tom subia.
Vivendo mansamente. Vivendo? Ah, malandra, você percebeu antes de
mim. Se ao menos tivéssemos o costume de dizer o que se passava
dentro de nós.
– Ela
está dormindo?
– Foi-se
embora.
– Para
onde?
– Sumiu.
– Não
deixou bilhete?
– Foi
por isto aqui.
– Um
furo na mão?
– Pois
assustou Adelaide.
– Não
pode ser. Era mulher tranquila. Tinha visto outras pessoas com furo
na mão. Dois alunos meus têm. Ela subia, eles estavam ao piano. No
primeiro dia ela achou estranho, com o tempo se acostumou. Nada é
anormal nesta cidade.
Traição,
Adelaide! Sinto como se estivesse sendo traído. Esse homem sabe mais
a teu respeito que eu através desses anos todos. Não vale. Se
tivesse imaginado, teria aprendido piano, ficávamos os dois a tocar,
a conversar. Sim, sim, estou entendendo, agora vejo tudo.
Quem
sabe eu teria ido junto quando você se foi. Ao se descontrolar, você
se liberou de mim. Ao me abandonar, me fez te descobrir. O furo na
mão foi pretexto, simples e ocasional tábua de salvação. Bastou
se mostrar abalada, desaparecer. Terei tempo para te dizer tais
coisas?
– Tem
mais gente em casa? Está um barulhão na cozinha.
– O
senhor é curioso, hein?
– Gosto
de gente. Faz bem para mim. Quase não saio, vez ou outra visito
parentes, mas estão sempre comendo.
– Então
não vai gostar dessa gente daqui. Também vivem na cozinha comendo.
– Parentes?
– Amigos
de meu sobrinho. Esse aí, esse aí é meu sobrinho.
– Capitão?
– Capitão.
O senhor conhece a hierarquia.
– O
professor mora no prédio?
– Dois
andares acima. Há vinte e oito anos.
– Gosta
daqui, então?
– Detesto,
queria morar num barril como Diógenes, não posso nem ver essa
velharada. Que ideia desse governo de colocar velhos dum lado,
quarentões do outro, jovens separados.
– Nossos
Planificadores para o Bem-Estar Social sabem o que fazem. A sociedade
tem se comportado, responde à altura.
– O
senhor fala como um documento oficial.
– O
professor mora sozinho?
– Hum,
hum.
– Que
tal uns companheiros?
– Inquilinos?
– Digamos,
companheiros. Amigos. Por algum tempo.
– Vai
arranjar sarna para se coçar, vão ocupar sua casa, como ocuparam a
minha (tentei advertir).
– Não
tem nada de ocupação. O tio está perturbado com o desaparecimento
da tia. Vai ser bom para o senhor.
– Se
ninguém mexer em meu piano.
– Trato
pessoalmente disso, ninguém toca em seu piano.
– É,
mas tem outro problema. Não sei se vai dar.
– Professor,
não existem problemas para nós.
– Existe
para mim. O meu pijama.
– O
pijama?
– É,
o pijama! Um problema sem tamanho, me persegue pela vida afora.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum
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