domingo, 5 de janeiro de 2020

O náufrago

Fotograma do filme No coração do mar
 
Poucos dias depois do encontro com o Francês, um fato muito significativo sucedeu a um dos membros mais insignificantes da tripulação do Pequod; um fato lamentável que terminou por antecipar ao navio predestinado e por vezes loucamente alegre uma profecia viva e sempre presente de um futuro trágico que poderia ser o seu.
Ora, num navio baleeiro, não são todos os que embarcam nos botes. Alguns poucos marinheiros, chamados guardas de navio, ficam de reserva, e cabe a eles trabalhar no navio, enquanto os botes perseguem a baleia. Em geral, esses guardas de navio são pessoas tão valentes quanto as que estão nos botes. Mas, se houver um indivíduo muito franzino, desajeitado ou medroso no navio, é certo que ele será o guarda de navio. Foi o que aconteceu com o negrinho apelidado de Pippin, abreviado para Pip. Coitado do Pip! Já falei dele antes; você deve se lembrar do seu pandeiro naquela meia-noite dramática, tão lúgubre e tão alegre.
No aspecto exterior, Pip e Dough-Boy formavam uma dupla, um pônei preto e um branco, com o mesmo desenvolvimento, mas com cores diferentes, atrelados como uma parelha pouco comum. Mas, ao passo que o desafortunado Dough-Boy era lerdo e tinha um intelecto reduzido por natureza, Pip, ainda que tivesse um coração muito mole, no fundo, era muito brilhante, com aquele brilho alegre, genial e agradável característico da sua raça; uma raça que aprecia todos os feriados e todas as festividades com prazer mais aguçado do que qualquer outra raça. Para os negros, os calendários deveriam apenas trazer trezentos e sessenta e cinco dias de 4 de Julho e de Ano-Novo. Não ria assim, quando escrevo que o negrinho era brilhante, pois mesmo a negritude tem o seu brilho; observe os painéis lustrosos de ébano dos gabinetes reais. No entanto, Pip amava a vida e a segurança tranquila da vida; tanto que o evento assustador no qual se viu envolvido de um modo inexplicável obscureceu lamentavelmente a sua vivacidade; embora, como se verá em breve, o que ficou por um tempo subjugado, por fim, estava destinado a ser iluminado extraordinariamente por fogos estranhos, que o mostrariam com um lustre dez vezes maior que o natural, com o qual, em seu nativo condado de Tolland, em Connecticut, outrora alegrara os prados com a sua festa de violinos, e alterara, com o seu ah! ah! alegre, no crepúsculo melodioso, o horizonte circular de seu pandeiro com uma estrela sonora. Do mesmo modo, um pingente de diamante de água pura penso num colo de veias azuis tem um brilho saudável no ar límpido do dia; mas, se um joalheiro astuto quiser mostrar-lhe o diamante com um brilho ainda mais impressionante, coloca-o numa base escura, depois o ilumina, não com a luz do sol, mas com um gás artificial. Surgem, então, fulgores abrasadores, diabólicos e extraordinários; é então que o diamante de chamas malignas, outrora o símbolo mais divino dos céus de cristal, se parece com uma joia da coroa roubada ao Rei do Inferno. Mas voltemos à história.
No episódio do âmbar-gris sucedeu que o remador da popa de Stubb torceu o pulso e ficou aleijado por um tempo; portanto, Pip foi provisoriamente colocado em seu lugar.
Na primeira vez que Stubb desceu com ele, Pip demonstrou estar muito nervoso; mas, por sorte, naquela ocasião, não teve um contato próximo com a baleia, e, por isso, não se saiu de todo mal; ainda que Stubb, observando-o, tomasse o cuidado de o exortar para que se armasse de coragem ao máximo, pois amiúde poderia ser útil.
Ora, na segunda descida, o bote remou em direção à baleia; e ao receber o ferro lançado o peixe deu a sua pancada costumeira que, naquele caso, foi bem embaixo do banco de Pip. O pavor involuntário do momento fez com que ele pulasse com o remo na mão, para fora do bote; e de tal modo que uma parte da corda solta se enrolou no peito, e ele a carregou sobre o costado, ficando enredado nela quando, por fim, caiu na água. Nesse instante, a baleia atingida começou a correr a toda a velocidade, e a linha logo se esticou, e o coitado do Pip veio espumante para as escoras do bote, impiedosamente arrastado pela corda, que tinha dado várias voltas em torno de seu peito e pescoço.
Tashtego estava de pé na proa. Estava todo inflamado pela caça. Odiava Pip, por sua covardia. Tirando da bainha a faca do bote, colocou a lâmina afiada sobre a corda, virou-se para Stubb e perguntou: “Corto?”. Enquanto isso, o rosto azul e asfixiado de Pip parecia dizer, corta, pelo amor de Deus! Tudo se passou num instante. Tudo isso aconteceu em menos de meio minuto.
Maldito seja! Corta!”, gritou Stubb, e assim a baleia se perdeu, e Pip foi salvo.
Tão logo se recuperou, o coitado do negrinho foi atacado pelos gritos e impropérios da tripulação. Permitindo com calma que os xingamentos intermitentes se dissipassem, Stubb, de um modo simples e direto, mas um pouco jocoso, xingou Pip oficialmente; feito isso, deu-lhe verdadeiros conselhos não oficiais. Não oficialmente, em essência, era: Nunca pula de um bote, Pip, exceto… Mas todo o resto era vago, como o são os conselhos mais sinceros. Ora, em geral, Fique no bote é o lema real da pesca de baleias; mas há casos em que Pule do bote é ainda melhor. Além disso, como se afinal percebesse que com os intermináveis conselhos conscienciosos deixaria uma margem ampla demais para Pip pular no futuro, Stubb de súbito parou com os conselhos e concluiu com uma ordem peremptória: “Fique no bote, Pip, ou juro por Deus que não o apanharei; lembre-se disso. Não podemos nos dar ao luxo de perder baleias por causa de tipos como você; no Alabama, uma baleia alcançaria um preço trinta vezes mais alto que você, Pip. Lembre-se disso e não pule mais”. Com isso, talvez Stubb dissesse de modo indireto que, ainda que o homem ame o seu semelhante, é também um animal que faz dinheiro, propensão essa que muitas vezes interfere em sua benevolência.
Mas estamos todos nas mãos dos Deuses, e Pip pulou mais uma vez, em circunstâncias muito parecidas às da primeira vez, só que dessa vez não levou a corda no peito; por isso, quando a baleia começou a correr, Pip foi deixado para trás no mar, como se fosse a mala de um viajante apressado. Ai! Stubb manteve-se fiel à sua palavra. Era um dia azul, maravilhoso e exuberante; o mar cintilante estava calmo e fresco, estendendo-se até o horizonte, como a lâmina de ouro de um bate-folhas, martelada ao máximo. Subindo e descendo naquele mar, a cabeça de ébano de Pip parecia um cravo-da-índia. Nenhuma faca de bote se levantou quando ele caiu tão depressa à ré. Stubb virou-lhe as costas implacáveis; e a baleia parecia ter asas. Em três minutos, havia uma extensão de uma milha de oceano sem praias entre Pip e Stubb. No centro do mar, o coitado do Pip virava a cabeça negra, crespa, anelada para o sol, outro náufrago solitário, embora o mais soberbo e o mais brilhante.
Ora, em tempos calmos, nadar no mar aberto é tão fácil para um nadador experiente quanto andar numa carruagem em terra. Mas a terrível solidão é insuportável. A intensa concentração do eu no meio de tal imensidão impiedosa, meu Deus, quem pode exprimir isso? Observe os marinheiros como se banham na calmaria em pleno oceano – observe como ficam perto do navio, nadando apenas ao longo do costado.
Mas teria Stubb abandonado mesmo o coitado do negrinho ao seu destino? Não; pelo menos não é o que queria. Pois havia dois botes na sua esteira, e imaginou, sem dúvida, que eles chegariam depressa a Pip e o pegariam, ainda que, na verdade, tal consideração para com os remadores postos em perigo por seu medo nem sempre seja manifestada pelos caçadores em tais circunstâncias; e tais circunstâncias não ocorrem com freqüência; na pesca, quase sempre, o chamado covarde é tão detestado quanto na marinha e no exército dos militares.
Mas sucedeu que os botes, sem ver Pip, avistando de repente umas baleias perto deles de um lado, voltaram-se e começaram a persegui-las; e o bote de Stubb já ia longe, e ele e a sua tripulação estavam tão empenhados em caçar o peixe que o horizonte circular de Pip lamentavelmente começou a alargar-se à sua volta. Por mero acaso, o próprio navio o salvou por fim; mas, a partir daquele momento, o negrinho passou a andar pelo convés como um idiota, ou, pelo menos, é o que diziam. O mar zombador tinha-lhe poupado o corpo finito, mas afogara o infinito de sua alma. Não a afogara por completo. Antes a levara viva para as profundezas maravilhosas, onde as formas estranhas do mundo primitivo intacto passavam de um lado para outro diante de seus olhos passivos; e a sereia avarenta, a Sabedoria, revelou-lhe os tesouros que acumulara; e entre as eternidades alegres, insensíveis e sempre juvenis, Pip viu as multidões de insetos de corais, deuses onipresentes, que do firmamento das águas seguravam os orbes colossais. Viu o pé de Deus no pedal do tear e falou com ele; e por isso seus companheiros de bordo consideraram-no louco. Assim, a insanidade do homem é a sanidade do céu; e, distanciando-se de toda razão mortal, o homem chega por fim ao pensamento celeste, que para a razão é um absurdo e um delírio; e, bem ou mal, então se sente intransigente e indiferente como o seu Deus.
Quanto ao resto, não julgue Stubb com muita severidade. A coisa é comum naquele tipo de pesca; e no decorrer da narrativa ver-se-á que também coube a mim um abandono semelhante.
Herman Melville, in Moby Dick

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