quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Lavoura Arcaica - 7

Quando contei que vinha pra te buscar de volta, ela ficou parada, os olhos cheios d’água, era medo nos olhos dela, que é isso, mãe, eu disse pra ela, vê se fica um pouco alegre, a senhora devia era rir, eu disse brincando nos cabelos dela, não fique assim desse jeito e nem se preocupe, eu garanto que não vai ter zanga nenhuma com aquele fujão, a senhora vai ver que filho mais contente, a senhora vai ver só, eu disse pra ela, a senhora vai ver como as coisas vão voltar a ser o que eram, tudo vai ser de novo como era antes, eu disse e ela me abraçou e enquanto me abraçava ela só dizia traga ele de volta, Pedro, traga ele de volta e não diga nada pro teu irmão e nem pras tuas irmãs que você vai, mas traga ele de volta, e enquanto eu dizia deixe disso, mãe, deixe disso, ela ainda pôde dizer eu vou agora amassar o pão doce que ele gostava tanto, ela disse me apertando como se te apertasse, André” e meu irmão sorria, os olhos lavados, cheios de luz, e tinha a ternura mais limpa do mundo no seu jeito de me olhar, mas isso não me tocava propriamente, continuei calado, e com a memória molhada só lembrei dela me arrancando da cama “vem, coração, vem comigo” e me arrastando com ela pra cozinha e me segurando pela mão junto da mesa e comprimindo as pontas dos dedos da outra mão contra o fundo de uma travessa, não era no garfo, era entre as pontas dos dedos grossos que ela apanhava o bocado de comida pra me levar à boca “é assim que se alimenta um cordeiro” ela me dizia sempre, e ouvindo meu irmão dizer de repente recolhido “a mãe envelheceu muito”, eu continuei pensando nela noutra direção e pude vê-la sentada na cadeira de balanço, absolutamente só e perdida nos seus devaneios cinzentos, destecendo desde cedo a renda trabalhada a vida inteira em torno do amor e da união da família, e vendo o pente de cabeça em sua majestosa simplicidade no apanhado do seu coque eu senti num momento que ele valia por um livro de história, e senti também, pensando nela, que estava por romper-se o fruto que me crescia na garganta, e não era um fruto qualquer, era um figo pingando em grossas gotas o mel que me entupia os pulmões e já me subia soberbamente aos olhos, mas num esforço maior, abaixando as pálpebras, fechei todos os meus poros, embora tudo isso fosse inútil, pois nada mais detinha meu irmão na sua incansável lavoura: “mas ninguém em casa mudou tanto como Ana” ele disse “foi só você partir e ela se fechou em preces na capela, quando não anda perdida num canto mais recolhido do bosque ou meio escondida, de um jeito estranho, lá pelos lados da casa velha; ninguém em casa consegue tirar nossa irmã do seu piedoso mutismo; trazendo a cabeça sempre coberta por uma man­tilha, é assim que Ana, pés descalços, feito sonâmbula, passa o dia vagueando pela fazenda; ninguém lá em casa nos preocupa tanto” ele disse e eu vi que meu quarto de repente ficou escuro, e só eu conhecia aquela escuridão, era uma escuridão a que eu de medo fechava sempre os olhos, por isso é que me levantei, reagindo contra a vertigem que eu pressentia, e, a pretexto de encher de novo nossos copos, fui num passo torto até a mesa trazendo dali outra garrafa, mas assim que esbocei entornar mais vinho foi a mão de meu pai que eu vi levantar-se no seu gesto “eu não bebo mais” ele disse grave, resoluto, estranhamente mudado, “e nem você deve beber mais, não vem deste vinho a sabedoria das lições do pai” ele disse com um súbito traço de cólera no cenho, desistindo na certa de quebrar com seu afeto o meu silêncio, e deixando claro que eu passaria dali pra frente por uma áspera descompostura, “não é o espírito deste vinho que vai reparar tanto estrago em nossa casa” ele continuou cortante, “guarde esta garrafa, previna-se contra o deboche, estamos falando da família” ele ainda disse impiedoso, francamente hostil, me fazendo sentir de repente que me escapava da corrente o cão sempre estirado na sombra sonolenta dos beirais, e me fazendo sentir que a contenção e a sobriedade mereciam ali o meu escárnio mais sarcástico, e me fazendo sentir, num clarão de luz, que era uma dádiva generosa e abundante eu poder me desabar do teto, foi tudo isso e muito mais o que senti com a tremedeira que me sacudia inteiro num caudaloso espasmo “não faz mal a gente beber” eu berrei transfigurado, essa transfiguração que há muito devia ter-se dado em casa “eu sou um epilético” fui explodindo, convulsionado mais do que nunca pelo fluxo violento que me corria o sangue “um epilético” eu berrava e soluçava dentro de mim, sabendo que atirava numa suprema aventura ao chão, descarnando as palmas, o jarro da minha velha identidade elaborado com o barro das minhas próprias mãos, e me lançando nesse chão de cacos, caído de boca num acesso louco eu fui gritando “você tem um irmão epilético, fique sabendo, volte agora pra casa e faça essa revelação, volte agora e você verá que as portas e janelas lá de casa hão de bater com essa ventania ao se fecharem e que vocês, homens da família, carregando a pesada caixa de ferramentas do pai, circundarão por fora a casa encapuçados, martelando e pregando com violência as tábuas em cruz contra as folhas das janelas, e que nossas irmãs de temperamento mediterrâneo e vestidas de negro hão de correr esvoaçantes pela casa em luto e será um coro de uivos, soluços e suspiros nessa dança familiar trancafiada e uma revoada de lenços pra cobrir os rostos e chorando e exaustas elas hão de amontoar-se num só canto e você grite cada vez mais alto ‘nosso irmão é um epilético, um convulso, um possesso’ e conte também que escolhi um quarto de pensão pros meus acessos e diga sempre ‘nós convivemos com ele e não sabíamos, sequer suspeitamos alguma vez’ e vocês podem gritar num tempo só ‘ele nos enganou’ ‘ele nos enganou’ e gritem quanto quiserem, fartem-se nessa redescoberta, ainda que vocês não deem conta da trama canhota que me enredou, e você pode como irmão mais velho lamentar num grito de desespero ‘é triste que ele tenha o nosso sangue’ grite, grite sempre ‘uma peste maldita tomou conta dele’ e grite ainda ‘que desgraça se abateu sobre a nossa casa’ e pergunte em furor mas como quem puxa um terço ‘o que faz dele um diferente?’ e você ouvirá, comprimido assim num canto, o coro sombrio e rouco que essa massa amorfa te fará ‘traz o demônio no corpo’ e vá em frente e vá dizendo ‘ele tem os olhos tenebrosos’ e você há de ouvir ‘traz o demônio no corpo’ e continue engrolando as pedras desse bueiro e diga num assombro de susto e pavor ‘que crime hediondo ele cometeu!’ ‘traz o demônio no corpo’ e diga ainda ‘ele enxovalhou a família, nos condenou às chamas do vexame’ e você ouvirá sempre o mesmo som cavernoso e oco ‘traz o demônio no corpo’, ‘traz o demônio no corpo’ e em clamor, e como quem blasfema, levantem os braços, ergam numa só voz aos céus ‘Ele nos abandonou, Ele nos abandonou’ e depois, cansado de tanta lamúria, de tanto pranto e ranger de dentes, e ostentando os pelos do peito e os pelos dos braços, vá depois disso direto ao roupeiro, corra ligeiro suas portas e procure os velhos lençóis de linho ali guardados com tanta aplicação, e fique atento, fique atento, você verá então que esses lençóis, até eles, como tudo em nossa casa, até esses panos tão bem lavados, alvos e dobrados, tudo, Pedro, tudo em nossa casa é morbidamente impregnado da palavra do pai; era ele, Pedro, era o pai que dizia sempre é preciso começar pela verdade e terminar do mesmo modo, era ele sempre dizendo coisas assim, eram pesados aqueles sermões de família, mas era assim que ele os começava sempre, era essa a sua palavra angular, era essa a pedra em que tropeçávamos quando crianças, essa a pedra que nos esfolava a cada instante, vinham daí as nossas surras e as nossas marcas no corpo, veja, Pedro, veja nos meus braços, mas era ele também, era ele que dizia provavelmente sem saber o que estava dizendo e sem saber com certeza o uso que um de nós poderia fazer um dia, era ele descuidado num desvio, olha o vigor da árvore que cresce isolada e a sombra que ela dá ao rebanho, os cochos, os longos cochos que se erguem isolados na imensidão dos pastos, tão lisos por tantas línguas, ali onde o gado vem buscar o sal que se ministra com o fim de purificar-lhe a carne e a pele, era ele sempre dizendo coisas assim na sua sintaxe própria, dura e enrijecida pelo sol e pela chuva, era esse lavrador fibroso catando da terra a pedra amorfa que ele não sabia tão modelável nas mãos de cada um; era assim, Pedro, tinha corredores confusos a nossa casa, mas era assim que ele queria as coisas, ferir as mãos da família com pedras rústicas, raspar nosso sangue como se raspa uma rocha de calcário, mas alguma vez te ocorreu? alguma vez te passou pela cabeça, um instante curto que fosse, suspender o tampo do cesto de roupas no banheiro? alguma vez te ocorreu afundar as mãos precárias e trazer com cuidado cada peça ali jogada? era o pedaço de cada um que eu trazia nelas quando afundava minhas mãos no cesto, ninguém ouviu melhor o grito de cada um, eu te asseguro, as coisas exasperadas da família deitadas no silêncio recatado das peças íntimas ali largadas, mas bastava ver, bastava suspender o tampo e afundar as mãos, bastava afundar as mãos pra conhecer a ambivalência do uso, os lenços dos homens antes estendidos como salvas pra resguardar a pureza dos lençóis, bastava afundar as mãos pra colher o sono amarrotado das camisolas e dos pijamas e descobrir nas suas dobras, ali perdido, a energia encaracolada e reprimida do mais meigo cabelo do púbis, e nem era preciso revolver muito para encontrar as manchas periódicas de nogueira no fundilho dos panos leves das mulheres ou escutar o soluço mudo que subia do escroto engomando o algodão branco e macio das cuecas, era preciso conhecer o corpo da família inteira, ter nas mãos as toalhas higiênicas cobertas de um pó vermelho como se fossem as toalhas de um assassino, conhecer os humores todos da família mofando com cheiro avinagrado e podre de varizes nas paredes frias de um cesto de roupa suja; ninguém afundou mais as mãos ali, Pedro, ninguém sentiu mais as manchas de solidão, muitas delas abortadas com a graxa da imaginação, era preciso surpreender nosso ossuário quando a casa ressonava, deixar a cama, incursionar através dos corredores, ouvir em todas as portas as pulsações, os gemidos e a volúpia mole dos nossos projetos de homicídio, ninguém ouviu melhor cada um em casa, Pedro, ninguém amou mais, ninguém conheceu melhor o caminho da nossa união sempre conduzida pela figura do nosso avô, esse velho esguio talhado com a madeira dos móveis da família; era ele, Pedro, era ele na verdade nosso veio ancestral, ele naquele seu terno preto de sempre, grande demais pra carcaça magra do corpo, carregando de torpeza a brancura seca do seu rosto, era ele na verdade que nos conduzia, era ele sempre apertado num colete, a corrente do relógio de bolso desenhando no peito escuro um brilhante e enorme anzol de ouro; era esse velho asceta, esse lavrador fenado de longa estirpe que na modorra das tardes antigas guardava seu sono desidratado nas canastras e nas gavetas tão bem forradas das nossas cômodas, ele que não se permitia mais que o mistério suave e lírico, nas noites mais quentes, mais úmidas, de trazer, preso à lapela, um jasmim rememorado e onírico, era ele a direção dos nossos passos em conjunto, sempre ele, Pedro, sempre ele naquele silêncio de cristaleiras, naquela perdição de corredores, nos fazendo esconder os medos de meninos detrás das portas, ele não nos permitindo, senão em haustos contidos, sorver o perfume mortuário das nossas dores que exalava das suas solenes andanças pela casa velha; era ele o guia moldado em gesso, não tinha olhos esse nosso avô, Pedro, nada existia nas duas cavidades fundas, ocas e sombrias do seu rosto, nada, Pedro, nada naquele talo de osso brilhava além da corrente do seu terrível e oriental anzol de ouro” eu disse aos berros, me agitando, e vendo em meu irmão surpresa, susto, medo e muito branco na sua cara, eu, que podia ainda gritar “tape os ouvidos, enfie os dedos no buraco”, eu, que antes, num desarvoro demoníaco, tinha me deslocado de um canto para o outro, eu de repente me pus de joelhos, me sentando sobre os calcanhares, e vendo sua mão trêmula, ele próprio decidindo encher de novo nossos copos, eu, tomado de dubiedades, já não sabia se devia esmurrá-lo no rosto ou beijá-lo nas faces; e por instantes caímos num arrumado silêncio para que nada perturbasse a corrente do meu transe; entre pesados goles de vinho, contemplando ora o teto do meu quarto, ora, no meu irmão, as coisas escuras que eu via em sua boca, pude notar o cuidado que ele punha em compor um olhar e uma postura que me exortassem a continuar; eu quis dizer “não se preocupe, meu irmão, não se preocupe que sei como retomar o meu acesso”, afinal, que importância tinha ainda dizer as coisas? o mundo pra mim já estava desvestido, bastava tão só puxar o fôlego do fundo dos pulmões, o vinho do fundo das garrafas, e banhar as palavras nesse doce entorpecimento, sentindo com a língua profunda cada gota, cada bago esmagado pelos pés deste vinho, deste espírito divino; “é o meu delírio, Pedro” eu disse numa onda morna, “é o meu delírio” eu tornei a dizer, me ocorrendo que eu já pudesse estar em comunhão com a saliva oleo­sa desse verbo, mas eram na verdade só as primeiras ressonâncias do meu sangue tinto que eu sentia salso e grosso, e refluindo na cabeça, e intumescendo ali a flor antes inerme, e fazendo daquele amontoado de vermes, despojada de galões, a almofada sacra pr’eu deitar meu pensamento; só eu sabia naquele instante de espumas em que águas, em que ondas eu próprio navegava, só eu sabia que vertigem de sal me fazia oscilar, “é o meu delírio” eu disse ainda numa onda mais escura, cansado de ideias repousadas, olhos afetivos, macias contorções, que tudo fosse queimado, meus pés, os espinhos dos meus braços, as folhas que me cobriam a madeira do corpo, minha testa, meus lábios, contanto que ao mesmo tempo me fosse preservada a língua inútil; o resto, depois, pouco importava depois que fosse tudo entre lamentos, soluços e gemidos familiares; “Pedro, meu irmão, eram inconsistentes os sermões do pai” eu disse de repente com a frivolidade de quem se rebela, sentindo por um instante, ainda que fugaz, sua mão ensaiando com aspereza o gesto de reprimenda, mas logo se retraindo calada e pressurosa, era a mão assustada da família saída da mesa dos sermões; que rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pêndulo, e nada naqueles tempos nos distraindo tanto como os sinos graves marcando as horas.
Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica

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