“Quando
contei que vinha pra te buscar de volta, ela ficou parada, os olhos
cheios d’água, era medo nos olhos dela, que é isso, mãe, eu
disse pra ela, vê se fica um pouco alegre, a senhora devia era rir,
eu disse brincando nos cabelos dela, não fique assim desse jeito e
nem se preocupe, eu garanto que não vai ter zanga nenhuma com aquele
fujão, a senhora vai ver que filho mais contente, a senhora vai ver
só, eu disse pra ela, a senhora vai ver como as coisas vão voltar a
ser o que eram, tudo vai ser de novo como era antes, eu disse e ela
me abraçou e enquanto me abraçava ela só dizia traga ele de volta,
Pedro, traga ele de volta e não diga nada pro teu irmão e nem pras
tuas irmãs que você vai, mas traga ele de volta, e enquanto eu
dizia deixe disso, mãe, deixe disso, ela ainda pôde dizer eu vou
agora amassar o pão doce que ele gostava tanto, ela disse me
apertando como se te apertasse, André” e meu irmão sorria, os
olhos lavados, cheios de luz, e tinha a ternura mais limpa do mundo
no seu jeito de me olhar, mas isso não me tocava propriamente,
continuei calado, e com a memória molhada só lembrei dela me
arrancando da cama “vem, coração, vem comigo” e me arrastando
com ela pra cozinha e me segurando pela mão junto da mesa e
comprimindo as pontas dos dedos da outra mão contra o fundo de uma
travessa, não era no garfo, era entre as pontas dos dedos grossos
que ela apanhava o bocado de comida pra me levar à boca “é assim
que se alimenta um cordeiro” ela me dizia sempre, e ouvindo meu
irmão dizer de repente recolhido “a mãe envelheceu muito”, eu
continuei pensando nela noutra direção e pude vê-la sentada na
cadeira de balanço, absolutamente só e perdida nos seus devaneios
cinzentos, destecendo desde cedo a renda trabalhada a vida inteira em
torno do amor e da união da família, e vendo o pente de cabeça em
sua majestosa simplicidade no apanhado do seu coque eu senti num
momento que ele valia por um livro de história, e senti também,
pensando nela, que estava por romper-se o fruto que me crescia na
garganta, e não era um fruto qualquer, era um figo pingando em
grossas gotas o mel que me entupia os pulmões e já me subia
soberbamente aos olhos, mas num esforço maior, abaixando as
pálpebras, fechei todos os meus poros, embora tudo isso fosse
inútil, pois nada mais detinha meu irmão na sua incansável
lavoura: “mas ninguém em casa mudou tanto como Ana” ele disse
“foi só você partir e ela se fechou em preces na capela, quando
não anda perdida num canto mais recolhido do bosque ou meio
escondida, de um jeito estranho, lá pelos lados da casa velha;
ninguém em casa consegue tirar nossa irmã do seu piedoso mutismo;
trazendo a cabeça sempre coberta por uma mantilha, é assim que
Ana, pés descalços, feito sonâmbula, passa o dia vagueando pela
fazenda; ninguém lá em casa nos preocupa tanto” ele disse e eu vi
que meu quarto de repente ficou escuro, e só eu conhecia aquela
escuridão, era uma escuridão a que eu de medo fechava sempre os
olhos, por isso é que me levantei, reagindo contra a vertigem que eu
pressentia, e, a pretexto de encher de novo nossos copos, fui num
passo torto até a mesa trazendo dali outra garrafa, mas assim que
esbocei entornar mais vinho foi a mão de meu pai que eu vi
levantar-se no seu gesto “eu não bebo mais” ele disse grave,
resoluto, estranhamente mudado, “e nem você deve beber mais, não
vem deste vinho a sabedoria das lições do pai” ele disse com um
súbito traço de cólera no cenho, desistindo na certa de quebrar
com seu afeto o meu silêncio, e deixando claro que eu passaria dali
pra frente por uma áspera descompostura, “não é o espírito
deste vinho que vai reparar tanto estrago em nossa casa” ele
continuou cortante, “guarde esta garrafa, previna-se contra o
deboche, estamos falando da família” ele ainda disse impiedoso,
francamente hostil, me fazendo sentir de repente que me escapava da
corrente o cão sempre estirado na sombra sonolenta dos beirais, e me
fazendo sentir que a contenção e a sobriedade mereciam ali o meu
escárnio mais sarcástico, e me fazendo sentir, num clarão de luz,
que era uma dádiva generosa e abundante eu poder me desabar do teto,
foi tudo isso e muito mais o que senti com a tremedeira que me
sacudia inteiro num caudaloso espasmo “não faz mal a gente beber”
eu berrei transfigurado, essa transfiguração que há muito devia
ter-se dado em casa “eu sou um epilético” fui explodindo,
convulsionado mais do que nunca pelo fluxo violento que me corria o
sangue “um epilético” eu berrava e soluçava dentro de mim,
sabendo que atirava numa suprema aventura ao chão, descarnando as
palmas, o jarro da minha velha identidade elaborado com o barro das
minhas próprias mãos, e me lançando nesse chão de cacos, caído
de boca num acesso louco eu fui gritando “você tem um irmão
epilético, fique sabendo, volte agora pra casa e faça essa
revelação, volte agora e você verá que as portas e janelas lá de
casa hão de bater com essa ventania ao se fecharem e que vocês,
homens da família, carregando a pesada caixa de ferramentas do pai,
circundarão por fora a casa encapuçados, martelando e pregando com
violência as tábuas em cruz contra as folhas das janelas, e que
nossas irmãs de temperamento mediterrâneo e vestidas de negro hão
de correr esvoaçantes pela casa em luto e será um coro de uivos,
soluços e suspiros nessa dança familiar trancafiada e uma revoada
de lenços pra cobrir os rostos e chorando e exaustas elas hão de
amontoar-se num só canto e você grite cada vez mais alto ‘nosso
irmão é um epilético, um convulso, um possesso’ e conte também
que escolhi um quarto de pensão pros meus acessos e diga sempre ‘nós
convivemos com ele e não sabíamos, sequer suspeitamos alguma vez’
e vocês podem gritar num tempo só ‘ele nos enganou’ ‘ele nos
enganou’ e gritem quanto quiserem, fartem-se nessa redescoberta,
ainda que vocês não deem conta da trama canhota que me enredou, e
você pode como irmão mais velho lamentar num grito de desespero ‘é
triste que ele tenha o nosso sangue’ grite, grite sempre ‘uma
peste maldita tomou conta dele’ e grite ainda ‘que desgraça se
abateu sobre a nossa casa’ e pergunte em furor mas como quem puxa
um terço ‘o que faz dele um diferente?’ e você ouvirá,
comprimido assim num canto, o coro sombrio e rouco que essa massa
amorfa te fará ‘traz o demônio no corpo’ e vá em frente e vá
dizendo ‘ele tem os olhos tenebrosos’ e você há de ouvir ‘traz
o demônio no corpo’ e continue engrolando as pedras desse bueiro e
diga num assombro de susto e pavor ‘que crime hediondo ele
cometeu!’ ‘traz o demônio no corpo’ e diga ainda ‘ele
enxovalhou a família, nos condenou às chamas do vexame’ e você
ouvirá sempre o mesmo som cavernoso e oco ‘traz o demônio no
corpo’, ‘traz o demônio no corpo’ e em clamor, e como quem
blasfema, levantem os braços, ergam numa só voz aos céus ‘Ele
nos abandonou, Ele nos abandonou’ e depois, cansado de tanta
lamúria, de tanto pranto e ranger de dentes, e ostentando os pelos
do peito e os pelos dos braços, vá depois disso direto ao roupeiro,
corra ligeiro suas portas e procure os velhos lençóis de linho ali
guardados com tanta aplicação, e fique atento, fique atento, você
verá então que esses lençóis, até eles, como tudo em nossa casa,
até esses panos tão bem lavados, alvos e dobrados, tudo, Pedro,
tudo em nossa casa é morbidamente impregnado da palavra do pai; era
ele, Pedro, era o pai que dizia sempre é preciso começar pela
verdade e terminar do mesmo modo, era ele sempre dizendo coisas
assim, eram pesados aqueles sermões de família, mas era assim que
ele os começava sempre, era essa a sua palavra angular, era essa a
pedra em que tropeçávamos quando crianças, essa a pedra que nos
esfolava a cada instante, vinham daí as nossas surras e as nossas
marcas no corpo, veja, Pedro, veja nos meus braços, mas era ele
também, era ele que dizia provavelmente sem saber o que estava
dizendo e sem saber com certeza o uso que um de nós poderia fazer um
dia, era ele descuidado num desvio, olha o vigor da árvore que
cresce isolada e a sombra que ela dá ao rebanho, os cochos, os
longos cochos que se erguem isolados na imensidão dos pastos, tão
lisos por tantas línguas, ali onde o gado vem buscar o sal que se
ministra com o fim de purificar-lhe a carne e a pele, era ele sempre
dizendo coisas assim na sua sintaxe própria, dura e enrijecida pelo
sol e pela chuva, era esse lavrador fibroso catando da terra a pedra
amorfa que ele não sabia tão modelável nas mãos de cada um; era
assim, Pedro, tinha corredores confusos a nossa casa, mas era assim
que ele queria as coisas, ferir as mãos da família com pedras
rústicas, raspar nosso sangue como se raspa uma rocha de calcário,
mas alguma vez te ocorreu? alguma vez te passou pela cabeça, um
instante curto que fosse, suspender o tampo do cesto de roupas no
banheiro? alguma vez te ocorreu afundar as mãos precárias e trazer
com cuidado cada peça ali jogada? era o pedaço de cada um que eu
trazia nelas quando afundava minhas mãos no cesto, ninguém ouviu
melhor o grito de cada um, eu te asseguro, as coisas exasperadas da
família deitadas no silêncio recatado das peças íntimas ali
largadas, mas bastava ver, bastava suspender o tampo e afundar as
mãos, bastava afundar as mãos pra conhecer a ambivalência do uso,
os lenços dos homens antes estendidos como salvas pra resguardar a
pureza dos lençóis, bastava afundar as mãos pra colher o sono
amarrotado das camisolas e dos pijamas e descobrir nas suas dobras,
ali perdido, a energia encaracolada e reprimida do mais meigo cabelo
do púbis, e nem era preciso revolver muito para encontrar as manchas
periódicas de nogueira no fundilho dos panos leves das mulheres ou
escutar o soluço mudo que subia do escroto engomando o algodão
branco e macio das cuecas, era preciso conhecer o corpo da família
inteira, ter nas mãos as toalhas higiênicas cobertas de um pó
vermelho como se fossem as toalhas de um assassino, conhecer os
humores todos da família mofando com cheiro avinagrado e podre de
varizes nas paredes frias de um cesto de roupa suja; ninguém afundou
mais as mãos ali, Pedro, ninguém sentiu mais as manchas de solidão,
muitas delas abortadas com a graxa da imaginação, era preciso
surpreender nosso ossuário quando a casa ressonava, deixar a cama,
incursionar através dos corredores, ouvir em todas as portas as
pulsações, os gemidos e a volúpia mole dos nossos projetos de
homicídio, ninguém ouviu melhor cada um em casa, Pedro, ninguém
amou mais, ninguém conheceu melhor o caminho da nossa união sempre
conduzida pela figura do nosso avô, esse velho esguio talhado com a
madeira dos móveis da família; era ele, Pedro, era ele na verdade
nosso veio ancestral, ele naquele seu terno preto de sempre, grande
demais pra carcaça magra do corpo, carregando de torpeza a brancura
seca do seu rosto, era ele na verdade que nos conduzia, era ele
sempre apertado num colete, a corrente do relógio de bolso
desenhando no peito escuro um brilhante e enorme anzol de ouro; era
esse velho asceta, esse lavrador fenado de longa estirpe que na
modorra das tardes antigas guardava seu sono desidratado nas
canastras e nas gavetas tão bem forradas das nossas cômodas, ele
que não se permitia mais que o mistério suave e lírico, nas noites
mais quentes, mais úmidas, de trazer, preso à lapela, um jasmim
rememorado e onírico, era ele a direção dos nossos passos em
conjunto, sempre ele, Pedro, sempre ele naquele silêncio de
cristaleiras, naquela perdição de corredores, nos fazendo esconder
os medos de meninos detrás das portas, ele não nos permitindo,
senão em haustos contidos, sorver o perfume mortuário das nossas
dores que exalava das suas solenes andanças pela casa velha; era ele
o guia moldado em gesso, não tinha olhos esse nosso avô, Pedro,
nada existia nas duas cavidades fundas, ocas e sombrias do seu rosto,
nada, Pedro, nada naquele talo de osso brilhava além da corrente do
seu terrível e oriental anzol de ouro” eu disse aos berros, me
agitando, e vendo em meu irmão surpresa, susto, medo e muito branco
na sua cara, eu, que podia ainda gritar “tape os ouvidos, enfie os
dedos no buraco”, eu, que antes, num desarvoro demoníaco, tinha me
deslocado de um canto para o outro, eu de repente me pus de joelhos,
me sentando sobre os calcanhares, e vendo sua mão trêmula, ele
próprio decidindo encher de novo nossos copos, eu, tomado de
dubiedades, já não sabia se devia esmurrá-lo no rosto ou beijá-lo
nas faces; e por instantes caímos num arrumado silêncio para que
nada perturbasse a corrente do meu transe; entre pesados goles de
vinho, contemplando ora o teto do meu quarto, ora, no meu irmão, as
coisas escuras que eu via em sua boca, pude notar o cuidado que ele
punha em compor um olhar e uma postura que me exortassem a continuar;
eu quis dizer “não se preocupe, meu irmão, não se preocupe que
sei como retomar o meu acesso”, afinal, que importância tinha
ainda dizer as coisas? o mundo pra mim já estava desvestido, bastava
tão só puxar o fôlego do fundo dos pulmões, o vinho do fundo das
garrafas, e banhar as palavras nesse doce entorpecimento, sentindo
com a língua profunda cada gota, cada bago esmagado pelos pés deste
vinho, deste espírito divino; “é o meu delírio, Pedro” eu
disse numa onda morna, “é o meu delírio” eu tornei a dizer, me
ocorrendo que eu já pudesse estar em comunhão com a saliva oleosa
desse verbo, mas eram na verdade só as primeiras ressonâncias do
meu sangue tinto que eu sentia salso e grosso, e refluindo na cabeça,
e intumescendo ali a flor antes inerme, e fazendo daquele amontoado
de vermes, despojada de galões, a almofada sacra pr’eu deitar meu
pensamento; só eu sabia naquele instante de espumas em que águas,
em que ondas eu próprio navegava, só eu sabia que vertigem de sal
me fazia oscilar, “é o meu delírio” eu disse ainda numa onda
mais escura, cansado de ideias repousadas, olhos afetivos, macias
contorções, que tudo fosse queimado, meus pés, os espinhos dos
meus braços, as folhas que me cobriam a madeira do corpo, minha
testa, meus lábios, contanto que ao mesmo tempo me fosse preservada
a língua inútil; o resto, depois, pouco importava depois que fosse
tudo entre lamentos, soluços e gemidos familiares; “Pedro, meu
irmão, eram inconsistentes os sermões do pai” eu disse de repente
com a frivolidade de quem se rebela, sentindo por um instante, ainda
que fugaz, sua mão ensaiando com aspereza o gesto de reprimenda, mas
logo se retraindo calada e pressurosa, era a mão assustada da
família saída da mesa dos sermões; que rostos mais coalhados,
nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à cabeceira,
o relógio de parede às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo
pêndulo, e nada naqueles tempos nos distraindo tanto como os sinos
graves marcando as horas.
Raduan
Nassar, in Lavoura Arcaica
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