sábado, 25 de janeiro de 2020

Lavoura Arcaica - 11

Não tinha ainda abandonado a nossa casa, Pedro, mas os olhos da mãe já suspeitavam minha partida” eu disse ao meu irmão, passado o primeiro alvoroço que sua presença tinha provocado naquele quarto de pensão; “quando fui procurar por ela, eu quis dizer a senhora se despede de mim agora sem me conhecer, e me ocorreu que eu pudesse também dizer não aconteceu mais do que eu ter sido aninhado na palha do teu útero por nove meses e ter recebido por muitos anos o toque doce das tuas mãos e da tua boca; eu quis dizer é por isso que deixo a casa, por isso é que parto, quantas coisas, Pedro, eu não poderia dizer pra mãe, mas meus olhos naquele momento não podiam recusar as palmas prudentes de velhos artesãos, me apontando pedras, me apontando paisagens esquisitas, calcinadas, me modelando calos, modelando solas nos meus pés de barro; claro que eu poderia dizer muitas coisas pra mãe, mas achei inútil dizer qualquer coisa, não faz sentido, eu pensei, largar nestas pobres mãos cobertas de farinha a haste de um cravo exasperado, não faz sentido, eu pensei duas vezes, manchar seu avental, cortar o cordão esquartejando um sol sanguíneo de meio-dia, não faz sentido, eu pensei três vezes, rasgar lençóis e pétalas, queimar cabelos e outras folhas, encher minha boca drasticamente construída com cinzas devassadas da família, por isso em vez de dizer a senhora não me conhece, achei melhor, sem me desviar do traço de calcário, mesmo sem água, de boca seca e salgada, achei melhor me guardar trancado diante dela, como alguém que não tivesse nada, e na verdade eu não tinha nada pra dizer a ela; e ela queria dizer alguma coisa, e eu pensei a mãe tem alguma coisa pra dizer que vou talvez escutar, alguma coisa pra dizer que deve quem sabe ser guardada com cuidado, mas tudo o que pude ouvir, sem que ela dissesse nada, foram as trincas na louça antiga do seu ventre, ouvi dos seus olhos um dilacerado grito de mãe no parto, senti seu fruto secando com meu hálito quente, mas eu não podia fazer nada, eu podia quem sabe dizer alguma coisa, meus olhos estavam escuros, mesmo assim não era impossível eu dizer, por exemplo, eu e a senhora começamos a demolir a casa, seria agora o momento de atirar com todos os pratos e moscas pela janela o nosso velho guarda-comida, raspar a madeira, agitar os alicerces, pôr em vibração as paredes nervosas, fazendo tombar com nosso vento as telhas e as nossas penas em alvoroço como se caíssem folhas; não era impossível eu dizer pra ela vamos aparar, mãe, com nossas mãos terníssimas, os laivos de sangue das nossas pedras, vamos pôr grito neste rito, não basta o lamento quebrado da matraca lá na capela; não era impossível, mas eu já te disse, Pedro, meus olhos estavam mais escuros do que jamais alguma vez estiveram, como podia eu empunhar o martelo e o serrote e reconstruir o silêncio da casa e seus corredores? mas entenda, Pedro, com meus olhos sempre noturnos, eu, o filho arredio, provocando as suspeitas e os temores na família inteira, não era com estradas que eu sonhava, jamais me passava pela cabeça abandonar a casa, jamais tinha pensado antes correr longas distâncias em busca de festas pros meus sentidos; entenda, Pedro, eu já sabia desde a mais tenra puberdade quanta decepção me esperava fora dos limites da nossa casa” eu disse quase afogado nessa certeza, procurando me recompor com um bom respiro no espírito do vinho, e foi entre sorvos sôfregos que eu fui depois, num passo trôpego, na direção de um móvel alto e circunspecto, retirando dali a caixa que logo transferi para junto dos pés do meu irmão que ia se perdendo na estufa do meu quarto, deixando já cair no chão a pala castanha do seu olhar contemplativo, e quando surpreendi, ao abrir a caixa, o gesto que nele se esboçava, me ocorreu dizer cheio de febre “Pedro, Pedro, é do teu silêncio que eu preciso agora, levante as viseiras, passeie os olhos, solte-lhes as rédeas, mas contenha a força e o recato da família, e o ímpeto áspero da tua língua, pois só no teu silêncio úmido, só nesse concerto esquivo é que reconstituo, por isso molhe os lábios, molhe a boca, molhe os teus dentes cariados, e a sonda que desce para o estômago, encha essa bolsa de couro apertada pelo teu cinto, deixe que o vinho vaze pelos teus poros, só assim é que se cultua o obsceno” foi o que eu quis dizer com a volúpia de um colecionador de ligas de mulheres, mas acabei não dizendo nada, nem ele disse qualquer coisa, logo recolhendo o aceno vago do seu gesto, e quando vi que meu irmão quase esvaziava num só gole o copo cheio, me ocorreu ainda dizer enternecido “ah, meu irmão, começamos a nos entender, pois já vejo tua boca descongestionada, e nos teus olhos a doce ação do vinho fazendo correr o leite azul que te espirra agora das pupilas, o mesmo leite envenenado que irrigou um dia a tumescência em úberes cancerosos”, mas já não era o caso de exortá-lo, naquele meu quarto decaído, estávamos os dois já quase encharcados, as uvas no forro, e nossos olhos molhados, nossas contas de vidro, presos com afinco na caixa que eu virava de boca, virando com ela o tempo, me remetendo às noites sorrateiras em que minha sanha se esgueirava incendiada da fazenda, trocando a cama macia lá de casa por um duro chão de estrada que me levava até a vila, sem receio das crendices noctívagas que povoavam aquele curto trajeto, assustando com meu fogo a cruz calada à beira do caminho, assim como as histórias assombradas mal escondidas pelos ferros do portão do cemitério por onde eu passava, conduzido e sempre fortalecido por minhas reflexões profanas de adolescente; “pegue, Pedro, pegue na mão e pese este objeto ínfimo” eu disse erguendo uma fita estreita de veludo roxo, esquiva, uma gargantilha de pescoço; “este trapo não é mais que o desdobramento, é o sutil prolongamento das unhas sulferinas da primeira prostituta que me deu, as mesmas unhas que me riscaram as costas exaltando minha pele branda, patas mais doces quando corriam minhas partes mais pudendas, é uma doida pena ver esse menino trêmulo com tanta pureza no rosto e tanta limpeza no corpo, ela me disse, é uma doida pena um menino de penugens como você, de peito liso sem acabamento, se queimando na cama feito graveto; toma o que você me pede, guarda essa fitinha imunda com você e volta agora pro teu nicho, meu santinho, ela me disse com carinho, com rameirices, com gargalhadas, mas era lá, Pedro, era lá que eu, escapulindo da fazenda nas noites mais quentes, e banhado em fé insolente, comungava quase estremunhado, me ocultando da frequência de senhores, assim como da desenvoltura de muitos moços, desajeitado no aconchego viscoso daquelas casas, escondendo de vergonha meus pés brancos, minhas unhas limpas, meus dentes de giz, o asseio da minha roupa, minha cara imberbe de criança; ah, meu irmão, não me deitei nesse chão de tangerinas incendiadas, nesse reino de drosófilas, não me entreguei feito menino na orgia de amoras assassinas? não era acaso uma paz precária essa paz que sobrevinha, ter meu corpo estirado num colchão de erva daninha? não era acaso um sono provisório esse outro sono, ter minhas unhas sujas, meus pés entorpecidos, piolhos me abrindo trilhas nos cabelos, minhas axilas visitadas por formigas? não era acaso um sono provisório esse segundo sono, ter minha cabeça coroada de borboletas, larvas gordas me saindo pelo umbigo, minha testa fria coberta de insetos, minha boca inerte beijando escaravelhos? quanta sonolência, quanto torpor, quanto pesadelo nessa adolescência! afinal, que pedra é essa que vai pesando sobre meu corpo? há uma frieza misteriosa nesse fogo, para onde estou sendo levado um dia? que lousa branca, que pó anêmico, que campo calado, que copos-de-leite, que ciprestes mais altos, que lamentos mais longos, que elegias mais múltiplas plangendo meu corpo adolescente! muitas vezes, Pedro, eu dizia muitas vezes existe um silêncio fúnebre em tudo que corre, vai uma alquimia virtuosa nessa mistura insólita, como é possível tanto repouso nesse movimento? eu pensava muitas vezes que eu não devia pensar, que nessa história de pensar eu tinha já o meu contento, me estrebuchando na santa bruxaria do infinito, por isso eu pensava muitas vezes que o meu caminho não era de eu pensar, e que não devia ser esse o meu vezo na correnteza, eu devia, isto sim, eu devia quando muito era apoiar a nuca num travesseiro de espumas, deitar o dorso numa esteira de folhas, fechar os olhos, e, largado na corrente, minhas mãos ativas que se deixassem roçar em abandono por colônias de algas, pelos dejetos à tona e o lodo espesso, mas eu me permitia uma e outra vez sair frivolamente desse meu sono e me perguntar para onde estou sendo levado um dia? Pedro, meu irmão, engorde os olhos nessa memória escusa, nesses mistérios roxos, na coleção mais lúdica desse escuro poço: no pano murcho dessas flores, nesta orquídea amarrotada, neste par de ligas cor-de-rosa, nesta pulseira, neste berloque, nessas quinquilharias todas que eu sempre pagava com moedas roubadas ao pai; entre um pouco nessas coisas que me dormiam e que eu só guardava para um dia espalhar, e que eu só ia enterrando nesta caixa para um dia desenterrar e espalhar na terra e pensar com estes meus olhos de agora foi uma longa, foi uma longa, foi uma longa adolescência! Pedro, Pedro, era a peta dos meus olhos me guiando pra casas tão pejadas, era refocilando ali que eu largava minha peçonha, esse visgo tão recôndito, essa gema de sopro ázimo de tão sorvido, mas jamais vislumbrei pelas portas e janelas, espiando com afinco através das cortinas de pingentes e da luz vermelha dos abajures, o sal, a hóstia, o amor da nossa Catedral! carregue com você, Pedro” eu disse num grito “carregue essas miudezas todas pra casa e conte entre olhares de assombro como foi se erguendo a história do filho e a história do irmão; encomende depois uma noite bem quente ou simplesmente uma lua bem prenhe; espalhe aromas pelo pátio, invente nardos afrodisíacos; convoque então nossas irmãs, faça vesti-las com musselinas cavas, faça calçá-las com sandálias de tiras; pincele de carmesim as faces plácidas e de verde a sombra dos olhos e de um carvão mais denso suas pestanas; adorne a alba dos seus braços e os pescoços despojados e seus dedos tão piedosos, ponha um pouco dessas pedrarias fáceis naquelas peças de marfim; faça ainda que brincos muito sutis mordisquem o lóbulo das orelhas e que suportes bem concebidos açulem os mamilos; e não esqueça os gestos, elabore posturas langorosas, escancarando a fresta dos seios, expondo pedaços de coxas, imaginando um fetiche funesto para os tornozelos; revolucione a mecânica do organismo, provoque naqueles lábios então vermelhos, debochados, o escorrimento grosso de humores pestilentos; carregue esses presentes com você e lá chegando anuncie em voz solene ‘são do irmão amado para as irmãs’ e diga, é importante: ‘cuidado, muito cuidado em retirá-los deste saco, em paga aos sermões do pai, o filho tresmalhado também manda, entre os presentes, um pesado riso de escárnio’; vamos, Pedro, ponha no saco” eu berrei numa fúria contente vendo a súbita mudança que eu provocava em meu irmão, um ímpeto ruivo faiscou nos seus olhos, sua mão desenhou garranchos no ar, assustadores, essa mesma mão que já ensaiava com segurança a sucessão da mão do pai, mas tudo se apagou num instante, senti seus olhos de repente dilacerados, meu irmão chorava minha demência, discretamente, longe de suspeitar que percebido assim eu acabava de receber mais uma graça: liberado na loucura, eu que só estava a meio caminho dessa lúcida escuridão; eu quis dizer pra ele “tempere nesta mão a voz potente, a ternura contida, a palavra certa, corra com ela meus cabelos, afague-os, proteja minha nuca, em circunstâncias como esta, assim faria a mão do pai, severa”; e me ocorreu também que eu poderia exortá-lo de forma correta enquanto enchia de novo os nossos copos, dizendo, por exemplo, “dilate as pupilas, esbugalhe os olhos, aperte tua mão na minha, irmão, e vamos”.
Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica

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