Para
reduzir-me as travessuras, encerrar-me na ordem, utilizaram diversos
elementos: a princípio os lobisomens, que, por serem invisíveis,
nenhum efeito produziram; em seguida a religião e a polícia,
reveladas nas figuras de Padre João Inácio e José da Luz.
Resumiram-me o valor dessas autoridades, que admirei e temi de longe,
mas quando elas se aproximaram, só o Vigário manteve a reputação.
José da Luz desprestigiou-se logo. Não havia meio de apresentá-lo
sério e firme, capaz de inspirar medo. Um papão ineficaz. Rosto cor
de azeitona, a grenha domada a banha de porco, nos olhos espertos a
alegria fervilhando, nariz chato, boca larga, provida de armas
fortes, ruidosa. Na pele baça nenhuma ruga, nenhuma ruga na blusa,
nas calças alisadas a capricho pela Rosenda lavadeira. Limpo, de
colarinho lustroso, botinas ringidoras e brilhantes, José da Luz
diferia muito dos polícias comuns, desleixados, amarrotados,
provocadores de barulho nas feiras e em pontas de ruas, entre
caboclos e meretrizes.
Provavelmente
esses homens se comportavam assim por vingança.
Tinham,
nos duros tempos do paisanos, sofrido repelões e desaforos, dormido
na cadeia sem motivo, aguentado nos calos saltos de reiúnas, zinco
no lombo.
Vestindo
o uniforme, eram insolentes e agressivos, apagavam as humilhações
antigas afligindo outros infelizes. Bebiam cachaça, malandravam,
torvos, importantes, vagarosos, e o desmazelo - cinto frouxo, quepe
de banda, topete ameaçador — dava-lhes consideração. Arredios,
oblíquos, promoviam sambas e furdunços em casas de palha, onde as
violências passavam despercebidas e ninguém se queixava.
José
da Luz chegava-se aos tipos que jogavam gamão e discutiam política.
Um caboré enxerido, bem falante, escorregando na companhia dos
proprietários. Amável, jeitoso, com certeza escapava às marchas
rigorosas da força volante, às diligências cruas. Não guardava
ressentimento, não precisava desforra. Aceitava de coração leve a
tarimba. E cantava, fanhoso e mole:
Assentei
praça. Na polícia eu vivo
Por
ser amigo da distinta farda.
Agora
é tarde. Me recordo e penso.
Trabalho
imenso, não se lucra nada.
Uma
das estrofes terminava com estes versos:
Eu
largo a farda, pego no capote,
Vou
remar no bote: tudo é serviço.
José
da Luz abria muito o e de serviço, prosódia que
depois ouvi confirmada em várias terras. Em geral os militares
inferiores arrastam a voz na primeira sílaba de serviço
quando se referem às ocupações da caserna, que deste modo se
distinguem das civis e ordinárias, sem vogal modificada.
Foi
nessa cantiga mofina que José da Luz se manifestou, achando
excessivas as exigências do ofício. Parecia um desgraçado, na
longa choradeira.
Afirmaram-me
depois que ele era péssimo, e isto me perturbou. Surgiu-me um
terceiro indivíduo, nem triste nem mau. Realmente jovial e bom, meio
tonto, ingênuo. Os botões amarelos, a farda vermelha e azul, a
distinta farda mencionada no lamento, eram brinquedos.
Nesse
tempo, em razão de culpas indecisas, costumavam prender-me algumas
horas na loja. Sentenciavam-me sem formalidades, mas o castigo
implicava falta. E ali, no silêncio e no isolamento, adivinhando o
mistério dos códigos, fiz compridos exames de consciência, tentei
catalogar as ações prejudiciais e as inofensivas, desenvolvi à toa
o meu diminuto senso moral.
Atrapalhava-me
perceber que um ato às vezes determinava punição, outras vezes não
determinava. Impossível orientar-me, estabelecer norma razoável de
procedimento. Mais tarde familiarizei-me com essas incongruências,
mas no começo da vida elas me apareciam sem disfarces e me
atenazavam. Mexia-me como se andasse entre cacos de vidro. Julgando
inúteis as cautelas, curvei-me à fatalidade. Corroboravam esta
disposição certas frases ouvidas na sala de jantar e na cozinha:
“Que se há de fazer? Foi vontade de Deus. Estava escrito.” Ainda
hoje suponho que os meus poucos acertos e numerosos escorregos são
obras de um destino irônico e safado, fértil em astúcias
desconcertantes. Resignava-me, encolhido junto ao balcão,
provisoriamente em segurança. Estava escrito, era vontade de Deus. E
esgueirava-me como um rato, desfazia montes de papel, capim e
maravalhas da embalagem, sondava as prateleiras e os caixões.
O
castigo moderado, além de inculcar-me as regras de bem viver, tinha
o fim de obrigar-me a vigiar o estabelecimento. Enquanto me achava
ali, meu pai se distraía na vizinhança, parolando, aos gritos.
Alarmava-me com freqüência, convencia-me de que ele estava
brigando. O riso grosso de Filipe Benício e o cacarejo de Teotoninho
Sabiá tranqüilizavam-me. Livre do susto, recolhia-me ao passatempo
ordinário e arrancava dele alguma satisfação. De fato as horas
pingavam monótonas no espaço que me concediam, mas em qualquer
parte a insipidez era a mesma. Proibiam-me sair, e os outros meninos,
distantes, causavam-me inveja e receio. Certamente eram perigosos.
Afastado, não possuindo bolas de borracha, papagaios, carrinhos de
lata, divertia-me com minhas irmãs, a construir casas de encerado e
arreios de animais, no alpendre, e a revolver o milho no depósito.
Durante a prisão, lembrava-me desses exercícios com pesar.
Entretinha-me remexendo as maravalhas, explorando os recantos
escuros, observando o trabalho das aranhas e a fuga das baratas.
Divagava imaginando o mundo coberto de homens e mulheres da altura de
um polegar de criança. Não me havendo chegado notícia das viagens
de Gulliver, penso que a minha gente liliputiana teve origem nas
baratas e nas aranhas. Esse povo mirim falava baixinho, zumbindo como
as abelhas. Nem palavras ásperas nem arranhões, cocorotes e puxões
de orelhas. Esforcei-me por dirimir as desavenças. Quando os meus
insetos saíam dos eixos, revelavam instintos rudes, eram separados,
impossibilitados de molestar-se. E recebiam conselhos, diferentes dos
conselhos vulgares. Podiam saltar, correr, molhar-se, derrubar
cadeiras, esfolar as mãos, deitar barquinhos no enxurro. Nada de
zangas. Impedidos os gestos capazes de motivar lágrimas.
Largando
esses devaneios, entregava-me à inspeção das mercadorias.
Trepava-me
na escada, abria caixas, desmanchava pacotes de dobradiças, admirava
o mecanismo das fechaduras. Experimentava as chaves, ouvia o tilintar
seco, via as linguetas entrando e saindo. Receava que me
surpreendessem, reprovassem a curiosidade. Talvez uma peça lá
dentro se rebentasse. Forças ali contidas iriam soltar-se, explodir,
jogar-me da escada abaixo. Recordava-me do caso da pistola. Tinha
sido anos atrás, na fazenda.
Meu
tio, hóspede, guardara a arma numa gaveta, recomendando-me que não
tocasse naquilo. Eu havia assegurado não tocar. Sozinho, desejara
conhecer de perto a máquina horrível, que detonava, matava bichos.
Rondara a mesa, reagindo à tentação, sabendo que não resistiria
muito tempo. Descerrara a gaveta, jurando não pegar na pistola. Era
o que havia prometido. Queria apenas vê-la. Bem, estava ali. Uma
garrucha comum, preta, carregada com chumbo e pólvora. Apoiando nela
um dedo e não acontecendo nenhum desastre, retirara-a, desvanecendo
as precauções. Levantara o gatilho e não conseguira fazê-lo
voltar ao descanso. Em seguida me viera a ideia de examinar o
conteúdo de um pequeno estojo embutido na coronha. Erguera a tampa —
e uma chuva de espoletas vermelhas se espalhara no chão. Soltando a
pistola, escapulira-me, deixando a gaveta aberta.
Em
horas de angústia, sem me animar a entrar na sala, esperara que me
chamassem, me responsabilizassem pelo desarranjo. Não chamaram. Num
degrau alto da escada, movendo a chave, eu temia que se derramassem
espoletas da fechadura. Não exatamente espoletas. Mas os ferrinhos
tilintantes podiam querer desencaixar-se com espalhafato.
Repunha
tudo nos seus lugares, descia, abandonava as miudezas e as ferragens,
ia embeber-me nas estampas que ornavam as peças de chita. O mais
vistoso desses pedaços de papel mostrava uma árvore encalombada de
frutos em forma de cabaças. Um machado encostava-se ao tronco. E,
ameaçando inimigos ausentes, um tigre arreganhava a dentuça,
equilibrava-se em dois pés.
Apresentavam-se
assim os panos de Machado, Pereira & Cia., grandes fornecedores
do Recife. A companhia era o tigre, Delfino Tigre. Eduquei-me no
respeito a entidades semelhantes.
Uma
tarde em que espiava na litografia o cabo de Machado, os ramos de
Pereira e as garras de Tigre, vi José da Luz entrar na loja e
esfriei. Quis fugir, esconder-me debaixo do balcão: as juntas
endureceram, os músculos relaxaram-se. Tentei vencer o medo,
endireitar o espinhaço, articular uma frase, sorrir. Em vão. José
da Luz era terrível. Metia gente na cadeia, dava surras e muxicões
nos feirantes. Superior a Machado, Pereira & Cia., credores de
meu pai. O vermelho e o azul da firma notável, expostos na chita,
exibiam-se no vestuário de José da Luz — e isto me isolava. Ainda
que eu ignorasse a enorme importância do cafuzo, não me seria
possível tomar intimidades com as cores das litografias.
Deu-se
então o caso extraordinário. O soldado pregou os cotovelos no
balcão e pôs-se a conversar comigo, natural, como os viventes
mesquinhos, Amaro, José Baía, os moradores da fazenda. O terror
sumiu-se, a espinha gelada aqueceu-se, os movimentos surgiram. Na
presença de meu pai, a fala da personagem seria gentileza indireta.
Julgava-me indigno de atenção. Contudo, se me viam acompanhado,
sujeitos maneirosos falavam-me, careteando, lisonjeando. As caretas e
as lisonjas deixavam-me desconfiança. Quando me achava só, tudo
isso desaparecia. José da Luz não esperava de mim nenhum favor: a
conversa dele era gratuita.
Vieram
outras conversas — e tornamo-nos amigos. Por fim não me limitava,
na prisão, a inventar fantasmagorias, reparar nas fechaduras e nos
papéis coloridos. Tinha um companheiro excelente, que diminuía
junto do balcão e era quase do meu tamanho. Não conservo nenhuma
das histórias que ele contava, curtas e variadas, sem dúvida pouco
significativas. Ouvia-as pensando em coisas diferentes,
interrompia-as muitas vezes: —
Cante
um bocado, Zé da Luz.
José
da Luz temperava a goela e dizia as tristezas mentirosas da caserna:
Agora
é tarde. Me recordo e penso.
Trabalho
imenso...
Versátil,
eu atentava nos botões amarelos da blusa prestigiosa, no quepe
miúdo. Por que era que ele usava chapéu sem aba? As perguntas saíam
espontâneas, e José da Luz me explicava que chapéu de soldado era
assim mesmo. Contentava-me com isso, a minha curiosidade não tinha
exigências. A farda vermelha e azul de José da Luz desbotava, não
diferia muito da minha roupa. E as botinas de José da Luz,
brilhantes e ringidoras, aproximavam-se dos meus borzeguins duros,
cada vez mais estreitos. Éramos duas insignificâncias, uma loquaz,
buliçosa, outra cheia de sonhos, emperrada.
Os
meus bonecos da altura de um polegar esmoreceram.
Esse
mestiço pachola teve influência grande e benéfica na minha vida.
Desanuviou-me,
atenuou aquela pusilanimidade, avizinhou-me da espécie humana. Ótimo
professor. Acho, porém, que era um mau funcionário. O Estado não
lhe pagava etapa e soldo para desviar-se dos colegas, sujos e
ferozes, encher com lorotas as cabeças das crianças. Um anarquista.
Graciliano
Ramos, in Angústia
Nenhum comentário:
Postar um comentário