quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

José da Luz

Para reduzir-me as travessuras, encerrar-me na ordem, utilizaram diversos elementos: a princípio os lobisomens, que, por serem invisíveis, nenhum efeito produziram; em seguida a religião e a polícia, reveladas nas figuras de Padre João Inácio e José da Luz. Resumiram-me o valor dessas autoridades, que admirei e temi de longe, mas quando elas se aproximaram, só o Vigário manteve a reputação. José da Luz desprestigiou-se logo. Não havia meio de apresentá-lo sério e firme, capaz de inspirar medo. Um papão ineficaz. Rosto cor de azeitona, a grenha domada a banha de porco, nos olhos espertos a alegria fervilhando, nariz chato, boca larga, provida de armas fortes, ruidosa. Na pele baça nenhuma ruga, nenhuma ruga na blusa, nas calças alisadas a capricho pela Rosenda lavadeira. Limpo, de colarinho lustroso, botinas ringidoras e brilhantes, José da Luz diferia muito dos polícias comuns, desleixados, amarrotados, provocadores de barulho nas feiras e em pontas de ruas, entre caboclos e meretrizes.
Provavelmente esses homens se comportavam assim por vingança.
Tinham, nos duros tempos do paisanos, sofrido repelões e desaforos, dormido na cadeia sem motivo, aguentado nos calos saltos de reiúnas, zinco no lombo.
Vestindo o uniforme, eram insolentes e agressivos, apagavam as humilhações antigas afligindo outros infelizes. Bebiam cachaça, malandravam, torvos, importantes, vagarosos, e o desmazelo - cinto frouxo, quepe de banda, topete ameaçador — dava-lhes consideração. Arredios, oblíquos, promoviam sambas e furdunços em casas de palha, onde as violências passavam despercebidas e ninguém se queixava.
José da Luz chegava-se aos tipos que jogavam gamão e discutiam política. Um caboré enxerido, bem falante, escorregando na companhia dos proprietários. Amável, jeitoso, com certeza escapava às marchas rigorosas da força volante, às diligências cruas. Não guardava ressentimento, não precisava desforra. Aceitava de coração leve a tarimba. E cantava, fanhoso e mole:

Assentei praça. Na polícia eu vivo
Por ser amigo da distinta farda.
Agora é tarde. Me recordo e penso.
Trabalho imenso, não se lucra nada.

Uma das estrofes terminava com estes versos:

Eu largo a farda, pego no capote,
Vou remar no bote: tudo é serviço.

José da Luz abria muito o e de serviço, prosódia que depois ouvi confirmada em várias terras. Em geral os militares inferiores arrastam a voz na primeira sílaba de serviço quando se referem às ocupações da caserna, que deste modo se distinguem das civis e ordinárias, sem vogal modificada.
Foi nessa cantiga mofina que José da Luz se manifestou, achando excessivas as exigências do ofício. Parecia um desgraçado, na longa choradeira.
Afirmaram-me depois que ele era péssimo, e isto me perturbou. Surgiu-me um terceiro indivíduo, nem triste nem mau. Realmente jovial e bom, meio tonto, ingênuo. Os botões amarelos, a farda vermelha e azul, a distinta farda mencionada no lamento, eram brinquedos.
Nesse tempo, em razão de culpas indecisas, costumavam prender-me algumas horas na loja. Sentenciavam-me sem formalidades, mas o castigo implicava falta. E ali, no silêncio e no isolamento, adivinhando o mistério dos códigos, fiz compridos exames de consciência, tentei catalogar as ações prejudiciais e as inofensivas, desenvolvi à toa o meu diminuto senso moral.
Atrapalhava-me perceber que um ato às vezes determinava punição, outras vezes não determinava. Impossível orientar-me, estabelecer norma razoável de procedimento. Mais tarde familiarizei-me com essas incongruências, mas no começo da vida elas me apareciam sem disfarces e me atenazavam. Mexia-me como se andasse entre cacos de vidro. Julgando inúteis as cautelas, curvei-me à fatalidade. Corroboravam esta disposição certas frases ouvidas na sala de jantar e na cozinha: “Que se há de fazer? Foi vontade de Deus. Estava escrito.” Ainda hoje suponho que os meus poucos acertos e numerosos escorregos são obras de um destino irônico e safado, fértil em astúcias desconcertantes. Resignava-me, encolhido junto ao balcão, provisoriamente em segurança. Estava escrito, era vontade de Deus. E esgueirava-me como um rato, desfazia montes de papel, capim e maravalhas da embalagem, sondava as prateleiras e os caixões.
O castigo moderado, além de inculcar-me as regras de bem viver, tinha o fim de obrigar-me a vigiar o estabelecimento. Enquanto me achava ali, meu pai se distraía na vizinhança, parolando, aos gritos. Alarmava-me com freqüência, convencia-me de que ele estava brigando. O riso grosso de Filipe Benício e o cacarejo de Teotoninho Sabiá tranqüilizavam-me. Livre do susto, recolhia-me ao passatempo ordinário e arrancava dele alguma satisfação. De fato as horas pingavam monótonas no espaço que me concediam, mas em qualquer parte a insipidez era a mesma. Proibiam-me sair, e os outros meninos, distantes, causavam-me inveja e receio. Certamente eram perigosos. Afastado, não possuindo bolas de borracha, papagaios, carrinhos de lata, divertia-me com minhas irmãs, a construir casas de encerado e arreios de animais, no alpendre, e a revolver o milho no depósito. Durante a prisão, lembrava-me desses exercícios com pesar. Entretinha-me remexendo as maravalhas, explorando os recantos escuros, observando o trabalho das aranhas e a fuga das baratas. Divagava imaginando o mundo coberto de homens e mulheres da altura de um polegar de criança. Não me havendo chegado notícia das viagens de Gulliver, penso que a minha gente liliputiana teve origem nas baratas e nas aranhas. Esse povo mirim falava baixinho, zumbindo como as abelhas. Nem palavras ásperas nem arranhões, cocorotes e puxões de orelhas. Esforcei-me por dirimir as desavenças. Quando os meus insetos saíam dos eixos, revelavam instintos rudes, eram separados, impossibilitados de molestar-se. E recebiam conselhos, diferentes dos conselhos vulgares. Podiam saltar, correr, molhar-se, derrubar cadeiras, esfolar as mãos, deitar barquinhos no enxurro. Nada de zangas. Impedidos os gestos capazes de motivar lágrimas.
Largando esses devaneios, entregava-me à inspeção das mercadorias.
Trepava-me na escada, abria caixas, desmanchava pacotes de dobradiças, admirava o mecanismo das fechaduras. Experimentava as chaves, ouvia o tilintar seco, via as linguetas entrando e saindo. Receava que me surpreendessem, reprovassem a curiosidade. Talvez uma peça lá dentro se rebentasse. Forças ali contidas iriam soltar-se, explodir, jogar-me da escada abaixo. Recordava-me do caso da pistola. Tinha sido anos atrás, na fazenda.
Meu tio, hóspede, guardara a arma numa gaveta, recomendando-me que não tocasse naquilo. Eu havia assegurado não tocar. Sozinho, desejara conhecer de perto a máquina horrível, que detonava, matava bichos. Rondara a mesa, reagindo à tentação, sabendo que não resistiria muito tempo. Descerrara a gaveta, jurando não pegar na pistola. Era o que havia prometido. Queria apenas vê-la. Bem, estava ali. Uma garrucha comum, preta, carregada com chumbo e pólvora. Apoiando nela um dedo e não acontecendo nenhum desastre, retirara-a, desvanecendo as precauções. Levantara o gatilho e não conseguira fazê-lo voltar ao descanso. Em seguida me viera a ideia de examinar o conteúdo de um pequeno estojo embutido na coronha. Erguera a tampa — e uma chuva de espoletas vermelhas se espalhara no chão. Soltando a pistola, escapulira-me, deixando a gaveta aberta.
Em horas de angústia, sem me animar a entrar na sala, esperara que me chamassem, me responsabilizassem pelo desarranjo. Não chamaram. Num degrau alto da escada, movendo a chave, eu temia que se derramassem espoletas da fechadura. Não exatamente espoletas. Mas os ferrinhos tilintantes podiam querer desencaixar-se com espalhafato.
Repunha tudo nos seus lugares, descia, abandonava as miudezas e as ferragens, ia embeber-me nas estampas que ornavam as peças de chita. O mais vistoso desses pedaços de papel mostrava uma árvore encalombada de frutos em forma de cabaças. Um machado encostava-se ao tronco. E, ameaçando inimigos ausentes, um tigre arreganhava a dentuça, equilibrava-se em dois pés.
Apresentavam-se assim os panos de Machado, Pereira & Cia., grandes fornecedores do Recife. A companhia era o tigre, Delfino Tigre. Eduquei-me no respeito a entidades semelhantes.
Uma tarde em que espiava na litografia o cabo de Machado, os ramos de Pereira e as garras de Tigre, vi José da Luz entrar na loja e esfriei. Quis fugir, esconder-me debaixo do balcão: as juntas endureceram, os músculos relaxaram-se. Tentei vencer o medo, endireitar o espinhaço, articular uma frase, sorrir. Em vão. José da Luz era terrível. Metia gente na cadeia, dava surras e muxicões nos feirantes. Superior a Machado, Pereira & Cia., credores de meu pai. O vermelho e o azul da firma notável, expostos na chita, exibiam-se no vestuário de José da Luz — e isto me isolava. Ainda que eu ignorasse a enorme importância do cafuzo, não me seria possível tomar intimidades com as cores das litografias.
Deu-se então o caso extraordinário. O soldado pregou os cotovelos no balcão e pôs-se a conversar comigo, natural, como os viventes mesquinhos, Amaro, José Baía, os moradores da fazenda. O terror sumiu-se, a espinha gelada aqueceu-se, os movimentos surgiram. Na presença de meu pai, a fala da personagem seria gentileza indireta. Julgava-me indigno de atenção. Contudo, se me viam acompanhado, sujeitos maneirosos falavam-me, careteando, lisonjeando. As caretas e as lisonjas deixavam-me desconfiança. Quando me achava só, tudo isso desaparecia. José da Luz não esperava de mim nenhum favor: a conversa dele era gratuita.
Vieram outras conversas — e tornamo-nos amigos. Por fim não me limitava, na prisão, a inventar fantasmagorias, reparar nas fechaduras e nos papéis coloridos. Tinha um companheiro excelente, que diminuía junto do balcão e era quase do meu tamanho. Não conservo nenhuma das histórias que ele contava, curtas e variadas, sem dúvida pouco significativas. Ouvia-as pensando em coisas diferentes, interrompia-as muitas vezes: —
Cante um bocado, Zé da Luz.
José da Luz temperava a goela e dizia as tristezas mentirosas da caserna:

Agora é tarde. Me recordo e penso.
Trabalho imenso...

Versátil, eu atentava nos botões amarelos da blusa prestigiosa, no quepe miúdo. Por que era que ele usava chapéu sem aba? As perguntas saíam espontâneas, e José da Luz me explicava que chapéu de soldado era assim mesmo. Contentava-me com isso, a minha curiosidade não tinha exigências. A farda vermelha e azul de José da Luz desbotava, não diferia muito da minha roupa. E as botinas de José da Luz, brilhantes e ringidoras, aproximavam-se dos meus borzeguins duros, cada vez mais estreitos. Éramos duas insignificâncias, uma loquaz, buliçosa, outra cheia de sonhos, emperrada.
Os meus bonecos da altura de um polegar esmoreceram.
Esse mestiço pachola teve influência grande e benéfica na minha vida.
Desanuviou-me, atenuou aquela pusilanimidade, avizinhou-me da espécie humana. Ótimo professor. Acho, porém, que era um mau funcionário. O Estado não lhe pagava etapa e soldo para desviar-se dos colegas, sujos e ferozes, encher com lorotas as cabeças das crianças. Um anarquista.
Graciliano Ramos, in Angústia

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