Nada
é tão moderno em Shakespeare quanto os seus vilões. São quase
sempre os únicos personagens lúcidos das suas peças, os únicos
sem qualquer ilusão sobre a sua própria motivação e a dos outros.
Edmund, o bastardo, em Rei Lear, ironiza “the excellent
foppery of the world”, a maravilhosa vaidade do mundo ao
atribuir o mau comportamento humano à influência dos astros e à
interferência do além. É um racionalismo surpreendente no começo
do século XVII, quando o próprio Shakespeare não hesitava em
recorrer a fantasmas e divinações para tocar suas tramas, e só
explicável pela licença para serem céticos dada pelo autor aos
vilões da sua preferência. No maior de todos, Ricardo III, a
vilania autoconsciente parece ainda mais moderna porque envolve
também uma fria reflexão sobre o poder e ao que ele obriga.
Personagens
como Edmund e Ricardo III não são realistas — poucos bandidos têm
uma noção tão clara da sua própria calhordice, ou a festejam com
tanto gosto —, mas são grandes papéis porque neles o mal se
auto-examina em grandes discursos cínicos, e poucas coisas são,
dramaticamente, tão fascinantes quanto o cinismo ostentado, e ainda
por cima bem escrito. O cinismo é a ironia com poder, ou a ironia no
poder, e como a ironia é a província do intelectual, um intelectual
no poder tem o mesmo privilégio do tirano mais bem articulado de
Shakespeare, que podia ser Ricardo III e ao mesmo tempo se observar
sendo Ricardo III e dizendo que o que é não é e o que não existe,
existe. E se maravilhando com ele mesmo.
Maquiavel
acabou como um símbolo de maquinações políticas obscuras, e só
estava tentando inventar uma teoria do Estado urbano, quando as
cidades-Estado recém-começavam a desafiar o poder feudal e não
tinham nenhuma tradição sobre a qual construir. Ficou como o
patrono da duplicidade e da manipulação do poder, porque as pessoas
acreditam que o poder autoconsciente será sempre cínico, que
qualquer pensamento sobre o poder será um pensamento sobre a
mistificação. Assim qualquer intelectual que, como Maquiavel, não
apenas pense no poder como o exerça, em cena ou nos bastidores,
acabará com uma reputação de cínico, mesmo que não a mereça. É
como se, para um intelectual no poder, não houvesse escolha entre
ser autoconsciente ao extremo, como o Ricardo III, e não se entender
direito.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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