sábado, 4 de janeiro de 2020

Intelectual no poder

Nada é tão moderno em Shakespeare quanto os seus vilões. São quase sempre os únicos personagens lúcidos das suas peças, os únicos sem qualquer ilusão sobre a sua própria motivação e a dos outros. Edmund, o bastardo, em Rei Lear, ironiza “the excellent foppery of the world”, a maravilhosa vaidade do mundo ao atribuir o mau comportamento humano à influência dos astros e à interferência do além. É um racionalismo surpreendente no começo do século XVII, quando o próprio Shakespeare não hesitava em recorrer a fantasmas e divinações para tocar suas tramas, e só explicável pela licença para serem céticos dada pelo autor aos vilões da sua preferência. No maior de todos, Ricardo III, a vilania autoconsciente parece ainda mais moderna porque envolve também uma fria reflexão sobre o poder e ao que ele obriga.
Personagens como Edmund e Ricardo III não são realistas — poucos bandidos têm uma noção tão clara da sua própria calhordice, ou a festejam com tanto gosto —, mas são grandes papéis porque neles o mal se auto-examina em grandes discursos cínicos, e poucas coisas são, dramaticamente, tão fascinantes quanto o cinismo ostentado, e ainda por cima bem escrito. O cinismo é a ironia com poder, ou a ironia no poder, e como a ironia é a província do intelectual, um intelectual no poder tem o mesmo privilégio do tirano mais bem articulado de Shakespeare, que podia ser Ricardo III e ao mesmo tempo se observar sendo Ricardo III e dizendo que o que é não é e o que não existe, existe. E se maravilhando com ele mesmo.
Maquiavel acabou como um símbolo de maquinações políticas obscuras, e só estava tentando inventar uma teoria do Estado urbano, quando as cidades-Estado recém-começavam a desafiar o poder feudal e não tinham nenhuma tradição sobre a qual construir. Ficou como o patrono da duplicidade e da manipulação do poder, porque as pessoas acreditam que o poder autoconsciente será sempre cínico, que qualquer pensamento sobre o poder será um pensamento sobre a mistificação. Assim qualquer intelectual que, como Maquiavel, não apenas pense no poder como o exerça, em cena ou nos bastidores, acabará com uma reputação de cínico, mesmo que não a mereça. É como se, para um intelectual no poder, não houvesse escolha entre ser autoconsciente ao extremo, como o Ricardo III, e não se entender direito.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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