Fotograma do filme As vinhas da ira
O
sol já se tinha aproximado bastante do horizonte, mas o calor não
diminuía. Tom acordou de seu sono à sombra dos salgueiros e sentia
a boca ressequida, o corpo malhado de suor e a cabeça pesada.
Levantou-se cambaleante e foi assim até o rio. Tirou a roupa e foi
entrando na água. E mal sentiu a água banhar-lhe o corpo,
passou-lhe a sede. Deitou-se de costas num ponto mais profundo,
deixando o corpo flutuar. Manteve-se equilibrado fincando os
cotovelos na areia, e ficou olhando os dedos dos pés que emergiam à
superfície.
Um
menino magro, pálido, surgiu, arrastando-se através do juncal qual
um bichinho, despojando-se de suas roupas. O menino mergulhou no rio
qual um mão-pelada, e somente se lhe viam os olhos e o nariz à
superfície. Depois, de repente, descobriu Tom, e notou que Tom o
observava. Parou com a distração, sentando-se na água.
Tom
disse:
— Alô.
— Alô!
— Tava
brincando de mão-pelada, hem?
— É...
— O menino foi recuando aos poucos para a margem, como quem foge,
de repente, pulou para fora da água, apanhou suas roupas e saiu
correndo, sumindo-se entre os salgueiros.
Tom
riu. Depois ouviu chamarem seu nome em altos gritos: Tom, ô Tooom!
Sentou-se e emitiu um silvo entre os dentes. Os salgueiros
agitaram-se em leque e apareceu a figurinha de Ruthie.
— A
mãe tá te chamando — disse ela. — Procê vir depressa.
— Sim,
já vou. — Ergueu-se e foi chapinhando até a margem. Ruthie
observava com espanto e curiosidade o corpo nu do irmão.
Tom,
que notara o interesse da menina, ordenou:
— Vai
embora, anda! — E Ruthie foi embora correndo. Tom ouviu-a chamando
excitadamente por Winfield. Vestiu a roupa quente sobre a pele fresca
e foi andando, através dos salgueiros, em direção à tenda.
A
mãe tinha feito uma fogueira com ramos secos de salgueiros e posto
água para ferver. Mostrou-se visivelmente aliviada ao vê-lo.
— Que
é que há, mãe? — perguntou Tom.
— Nada,
eu tava com medo — disse ela. — Veio um polícia aqui, que
diss’que a gente não pode ficar nesse lugar. Eu tava com medo que
também tivesse falado com ocê e que ocê fizesse qualquer coisa pra
ele.
— Que
é que eu ia fazer pra ele? Por quê?
A
mãe sorriu.
— Bom...
ele era um bruto... Até eu tive vontade de dar na cara dele.
Tom
pegou nos braços dela e sacudiu-a levemente, risonho. Sentou-se
depois, ainda rindo, satisfeito no chão.
— Puxa,
mãe! Eu nunca me lembro de ter visto a senhora assim braba. Que foi
que aconteceu?
Ela
o olhou com seriedade.
— Não
sei, não, Tom.
— Primeiro,
a senhora quer quebrar a cabeça do pai; agora quer avançar contra
um polícia. Que foi que houve? — Ele riu com brandura, estendeu as
mãos e acariciou carinhosamente os pés nus da mãe. — Gata velha
— disse.
— Tom!
— Hem?
Ela
hesitou bastante.
— Tom,
esse polícia... ele chamou a gente de Okie. Diss’assim: “Nós
não queremos aqui esses Okies danados que nem você!”
Tom
encarou-a pensativo, e com a mão ainda acariciando os pés nus da
mãe.
— Um
camarada já me falou sobre isso. Eles dizem isso pra xingar os que
vêm pra cá. — Calou-se por um instante. — Mãe, a senhora acha
que eu não presto? Acha que eu devia estar na cadeia?
— Não
— disse ela. — Cê fez um engano... e já pagou. Por quê?
— Sei
lá. Acho que eu ia era quebrar a cara desse polícia.
A
mãe sorriu satisfeita.
— Então
eu também devia perguntar uma coisa assim, porque eu também tive
vontade de quebrar a cara dele com uma frigidera.
— Mãe,
por que será que ele disse que a gente não pode ficar aqui?
— Ele
só disse que não quer nenhum desses danados Okies por aqui.
Diss’que vai botar a gente na cadeia se amanhã de manhã a gente
ainda tiver aqui.
— Mas
a gente não tá acostumada a ser maltratada pela polícia.
— Foi
o que eu falei pra ele. Ele diss’que a gente não está em casa
agora. Está é na Califórnia, e aqui eles faz o que quer.
Tom
disse, assustado:
— Mãe,
preciso contar uma coisa pra senhora. O Noah... ele foi embora.
Desceu rio abaixo. Diss’que não queria vir com a gente.
Levou
um bom minuto para a mãe compreender.
— Por
quê? — perguntou ela, afinal, baixinho.
— Não
sei. Ele diss’que tinha que ser. Que não podia sair desse rio. Me
pediu pra dizer à senhora.
— E
o que é que ele vai comer? — perguntou ela.
— Não
sei. Ele falou que vai pescar.
A
mãe silenciou por algum tempo.
— A
família tá se desfazendo, aos poucos. Não sei. Já nem posso
pensar. Não posso pensar mais nada. É demais!
Tom
disse, inseguro, para tentar tranquilizá-la:
— Não
vai acontecer nada com ele, mãe. Ele sabe se arranjar.
A
mãe voltou seus olhos aturdidos para o rio.
— Não
posso pensar mais coisa nenhuma.
Tom
olhou para a fileira de tendas e viu Ruthie e Winfield diante de uma
tenda em conversação cerimoniosa com alguém que devia estar lá
dentro. Ruthie torcia a saia com as mãos, enquanto Winfield fazia um
buraco no chão com o dedo do pé. Tom chamou:
— Ruthie,
vem cá! — Ela olhou para cima, enxergou-o e veio correndo, e
Winfield também veio correndo atrás dela. Quando a menina chegou,
disse Tom:
— Vai
buscar o pessoal, Ruthie. Eles tão todos dormindo lá nos
salgueiros. E, Winfield, cê diz ao seu Wilson pra se preparar, que a
gente vai embora daqui já-já. — As crianças saíram correndo.
Tom
disse:
— Mãe,
e a avó? Ela já tá melhor?
— Bom,
ela tá dormindo, o que já não é pouco. Pode ser que teja melhor.
Deve estar dormindo ainda.
— Isso
é bom. Quanta carne temos ainda?
— Não
muita, não. Um quarto de porco, talvez.
— Bom,
então precisamos encher o outro barril de água. Convém a gente
levar bastante água. — Eles ouviram os gritos agudos de Ruthie,
chamando os homens entre os salgueiros.
A
mãe botou ramos de salgueiro na fogueira e fez as chamas lamberem a
panela enegrecida:
— Só
peço a Deus pra dar logo descanso à gente. Peço a Deus Nosso
Senhor pra encontrar um lugar onde a gente possa ficar em paz —
falou.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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