segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Esses Okies danados!

Fotograma do filme As vinhas da ira

O sol já se tinha aproximado bastante do horizonte, mas o calor não diminuía. Tom acordou de seu sono à sombra dos salgueiros e sentia a boca ressequida, o corpo malhado de suor e a cabeça pesada. Levantou-se cambaleante e foi assim até o rio. Tirou a roupa e foi entrando na água. E mal sentiu a água banhar-lhe o corpo, passou-lhe a sede. Deitou-se de costas num ponto mais profundo, deixando o corpo flutuar. Manteve-se equilibrado fincando os cotovelos na areia, e ficou olhando os dedos dos pés que emergiam à superfície.
Um menino magro, pálido, surgiu, arrastando-se através do juncal qual um bichinho, despojando-se de suas roupas. O menino mergulhou no rio qual um mão-pelada, e somente se lhe viam os olhos e o nariz à superfície. Depois, de repente, descobriu Tom, e notou que Tom o observava. Parou com a distração, sentando-se na água.
Tom disse:
Alô.
Alô!
Tava brincando de mão-pelada, hem?
É... — O menino foi recuando aos poucos para a margem, como quem foge, de repente, pulou para fora da água, apanhou suas roupas e saiu correndo, sumindo-se entre os salgueiros.
Tom riu. Depois ouviu chamarem seu nome em altos gritos: Tom, ô Tooom! Sentou-se e emitiu um silvo entre os dentes. Os salgueiros agitaram-se em leque e apareceu a figurinha de Ruthie.
A mãe tá te chamando — disse ela. — Procê vir depressa.
Sim, já vou. — Ergueu-se e foi chapinhando até a margem. Ruthie observava com espanto e curiosidade o corpo nu do irmão.
Tom, que notara o interesse da menina, ordenou:
Vai embora, anda! — E Ruthie foi embora correndo. Tom ouviu-a chamando excitadamente por Winfield. Vestiu a roupa quente sobre a pele fresca e foi andando, através dos salgueiros, em direção à tenda.
A mãe tinha feito uma fogueira com ramos secos de salgueiros e posto água para ferver. Mostrou-se visivelmente aliviada ao vê-lo.
Que é que há, mãe? — perguntou Tom.
Nada, eu tava com medo — disse ela. — Veio um polícia aqui, que diss’que a gente não pode ficar nesse lugar. Eu tava com medo que também tivesse falado com ocê e que ocê fizesse qualquer coisa pra ele.
Que é que eu ia fazer pra ele? Por quê?
A mãe sorriu.
Bom... ele era um bruto... Até eu tive vontade de dar na cara dele.
Tom pegou nos braços dela e sacudiu-a levemente, risonho. Sentou-se depois, ainda rindo, satisfeito no chão.
Puxa, mãe! Eu nunca me lembro de ter visto a senhora assim braba. Que foi que aconteceu?
Ela o olhou com seriedade.
Não sei, não, Tom.
Primeiro, a senhora quer quebrar a cabeça do pai; agora quer avançar contra um polícia. Que foi que houve? — Ele riu com brandura, estendeu as mãos e acariciou carinhosamente os pés nus da mãe. — Gata velha — disse.
Tom!
Hem?
Ela hesitou bastante.
Tom, esse polícia... ele chamou a gente de Okie. Diss’assim: “Nós não queremos aqui esses Okies danados que nem você!”
Tom encarou-a pensativo, e com a mão ainda acariciando os pés nus da mãe.
Um camarada já me falou sobre isso. Eles dizem isso pra xingar os que vêm pra cá. — Calou-se por um instante. — Mãe, a senhora acha que eu não presto? Acha que eu devia estar na cadeia?
Não — disse ela. — Cê fez um engano... e já pagou. Por quê?
Sei lá. Acho que eu ia era quebrar a cara desse polícia.
A mãe sorriu satisfeita.
Então eu também devia perguntar uma coisa assim, porque eu também tive vontade de quebrar a cara dele com uma frigidera.
Mãe, por que será que ele disse que a gente não pode ficar aqui?
Ele só disse que não quer nenhum desses danados Okies por aqui. Diss’que vai botar a gente na cadeia se amanhã de manhã a gente ainda tiver aqui.
Mas a gente não tá acostumada a ser maltratada pela polícia.
Foi o que eu falei pra ele. Ele diss’que a gente não está em casa agora. Está é na Califórnia, e aqui eles faz o que quer.
Tom disse, assustado:
Mãe, preciso contar uma coisa pra senhora. O Noah... ele foi embora. Desceu rio abaixo. Diss’que não queria vir com a gente.
Levou um bom minuto para a mãe compreender.
Por quê? — perguntou ela, afinal, baixinho.
Não sei. Ele diss’que tinha que ser. Que não podia sair desse rio. Me pediu pra dizer à senhora.
E o que é que ele vai comer? — perguntou ela.
Não sei. Ele falou que vai pescar.
A mãe silenciou por algum tempo.
A família tá se desfazendo, aos poucos. Não sei. Já nem posso pensar. Não posso pensar mais nada. É demais!
Tom disse, inseguro, para tentar tranquilizá-la:
Não vai acontecer nada com ele, mãe. Ele sabe se arranjar.
A mãe voltou seus olhos aturdidos para o rio.
Não posso pensar mais coisa nenhuma.
Tom olhou para a fileira de tendas e viu Ruthie e Winfield diante de uma tenda em conversação cerimoniosa com alguém que devia estar lá dentro. Ruthie torcia a saia com as mãos, enquanto Winfield fazia um buraco no chão com o dedo do pé. Tom chamou:
Ruthie, vem cá! — Ela olhou para cima, enxergou-o e veio correndo, e Winfield também veio correndo atrás dela. Quando a menina chegou, disse Tom:
Vai buscar o pessoal, Ruthie. Eles tão todos dormindo lá nos salgueiros. E, Winfield, cê diz ao seu Wilson pra se preparar, que a gente vai embora daqui já-já. — As crianças saíram correndo.
Tom disse:
Mãe, e a avó? Ela já tá melhor?
Bom, ela tá dormindo, o que já não é pouco. Pode ser que teja melhor. Deve estar dormindo ainda.
Isso é bom. Quanta carne temos ainda?
Não muita, não. Um quarto de porco, talvez.
Bom, então precisamos encher o outro barril de água. Convém a gente levar bastante água. — Eles ouviram os gritos agudos de Ruthie, chamando os homens entre os salgueiros.
A mãe botou ramos de salgueiro na fogueira e fez as chamas lamberem a panela enegrecida:
Só peço a Deus pra dar logo descanso à gente. Peço a Deus Nosso Senhor pra encontrar um lugar onde a gente possa ficar em paz — falou.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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