quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Cabralhada

No que foi, no que me vi, no acampo do Hermógenes.
Cabralhada. Tiba. De boa entrada, ao que me gasturei, no vendo. Aqueles eram mais de cento e meio, sofreúdos, que todos curtidos no jagunçar, rafameia, mera gente. Azombado, que primeiro até fiquei, mas daí quis assuntação, achei, a meu cômodo. Assim, isto é, me acostumei com meio-só meu coração, naquele arranchamento. Propriamente, pessoal do Hermógenes. Digo: bons e maus, uns pelos outros, como neste mundo se pertence. Por um que ruim seja, logo mais para adiante se encontra outro pior. E a situação nossa era de guerra. Mesmo com isso, a peito pronto, ninguém se perturbou com perigos de tanta gravidade. Se vivia numa jóvia, medindo mãos, em vavavá e conversa de festa, tomando tempo. Aqueles não desamotinavam. A ajunta, ali, assim, de tantos atrás do ar, na vagagem: manga de homens, por zanzar ou estar à-tôa, ou parar formando rodas; ou uns dormindo, como boi malha; ou deitados no chão sem dormir ― só aboboravam. Assaz toda espécie de roupa, divulguei: até sujeito com cinta larga de lã vermelha; outro com chapéu de lebre e colete preto de fino pano, cidadão; outros com coroça e bedém, mesmo sem chuva nenhuma; só que de branco vestido não se tinha: que com terno claro não se guerreia. Mas jamais ninguém ficasse nú-de-Deus ou indecente descomposto, no meio dos outros isso não e não. Andando que sentados, jogando jogos, ferrando queda de braço, assoando o nariz, mascando fumo forte e cuspindo longe, e pitando, picando ou dedilhando fumo no covo da mão, com muita demora; o mais, sempre no proseio. Aventes baldrocavam suas pequenas coisas, trem objeto que um tivesse e menos quisesse, que custou barato. E ninguém furtava! Furtasse, era perigar morte. Cantavam cantarol, uns, aboiavam sem bois.
Ou cuidavam do espírito da barriga. O serviço que cumpriam era alimpar as armas bem ― marcadas as cruzes nas feições das coronhas. E tudo o mais que faziam, que fosse coisa de sem-o-que-fazer. Por isso ― se dizia ― que ali corresse muita besouragem, de falação mal, de rapa-tachos. Tinham lá até cachorros, vadiando geral, mas o dono de cada um se sabia; convinha não judiar com cão, por conta do dono.
Ao às-tantas me aceitaram; mas meio atalhados. Se o que fossem mesmo de constância assim, por tempero de propensão; ou, então, por me arrediarem, porquanto me achando deles diverso? Somente isto nos princípios. Sendo que eu soube que eu era mesmo de outras extrações. Semelhante por este exemplo, como logo entendi! eles queriam completo ser jagunços, por alcanço, gala mestra; conforme o que avistei, seguinte. Pois não era que, num canto, estavam uns, permanecidos todos se ocupando num manejo caprichoso, e isto que eles executavam! que estavam desbastando os dentes deles mesmos, aperfeiçoando os dentes em pontas! Se me entende? Senhor ver, essa atarefação, o tratear, dava alojo e apresso, dava até aflição em aflito, abobante. Os que lavravam desse jeito! o Jesualdo ― mocinho novo, com sua simpatia ―, o Araruta e o Nestor; os que ensinavam a eles eram o Simião e o Acauã. Assim um uso correntio, apontar os dentes de diante, a poder de gume de ferramenta, por amor de remedar o aguçoso de dentes de peixe feroz do rio de São Francisco ― piranha redoleira, a cabeça-de-burro. Nem o senhor não pense que para esse gasto tinham instrumentos próprios, alguma liminha, ou ferro lixador. Não! aí era à faca. O Jesualdo mesmo se fazia, fazia aquilo sentado num calcanhar. Aviava de encalcar o corte da faca nas beiras do dente, rela releixo, e batia no cabo da faca, com uma pedra, medidas pancadas. Sem espelho, sem ver; ao tanto, que era uma faca de cabo de niquelado.
Ah, no abre-boca, comum que babando, às vezes sangue babava. Ao mais gemesse, repuxando a cara, pelo que verdadeiro muito doía. Aguentava. Assim esquentasse demais; para refrescar, então ele bochechava a breve, com um caneco de água com pinga. Os outros dois, também. O Araruta procedia sozinho, igual, batendo na faca com a prancha de outra. O Nestor, não: para ele, o Simião, com um martelinho para os golpes, era quem raspava; mas decerto o Nestor ao outro para isso algum tanto pagasse. Abrenunciei. ― Arrenego! ― eu disse. ― Deveras? Então, mano-velho, pois tu não quer? ― o Simião, em gracejo, me perguntou. Me fez careta; e ― acredite o senhor: ele, que exercia lâmina nos do outro, ele não possuía, próprio, dente mais nenhum nas gengivas ― conforme aquela vermelha boca banguela toda abriu e me mostrou. Repontei: ― Eu acho que, para se ser valente, não carece de figurativos... O Acauã, que já era bom conhecido meu, assim mesmo achou de se reagir: ― São gostos... Mas, um outro, que chegando veio, falou o mais seco: ― Tudo na vida são gostos, companheiro. Mas não será o meu! Olhei para esse, que me deu o apoio. E era um Luís Pajeú ― com a faca-punhal do mesmo nome, e ele sendo de sertão do mesmo nome, das comarcas de Pernambuco. Sujeito despachado, moreno bem queimado, mas de anelados cabelos, e com uma coragem terrivelmente. Ah, mas o que faltava, lá nele, que ele mais não tinha, era uma orêlha, ― que rente cortada fora, pelo sinal. Onde era que o Luís Pajeú havia de ter deixado aquela orêlha? ― Será gosto meu não, de descascar dentaduras... ― conciso declarou, falava meio cantado, mole, fino. Alto e forte, foi outro falar, de outro, que no instante também ouvi: ― Uê, em minha terra, se afia guampa, é touro, ixí! E esse um, trolado demais franco, e desempenado cavaleiro, era o Fafafa. Fiz conhecença. Dele tenho, para mais depois.
Ao que lá não faltava a farta comida, pelo que logo vi. Gêneros e bebidas boas. De donde vinha tudo, em redondezas tão pobrezinhas, a gente parando assim quase num deserto? E a munição, tanta, que nem precisaram da que tínhamos trazido, e que foi levada mais adiante, para os escondidos de Joca Ramiro, perto do arraial do Bró? E a jorna, para satisfazer àquela cabroeira vivente, que estavam ali em seu emprego de cargo? Ah, tinham roubado, saqueado muito, grassavam. A sebaça era a lavoura deles, falavam até em atacar grandes cidades. Foi ou não foi?
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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