No
que foi, no que me vi, no acampo do Hermógenes.
Cabralhada.
Tiba. De boa entrada, ao que me gasturei, no vendo. Aqueles eram mais
de cento e meio, sofreúdos, que todos curtidos no jagunçar,
rafameia, mera gente. Azombado, que primeiro até fiquei, mas daí
quis assuntação, achei, a meu cômodo. Assim, isto é, me acostumei
com meio-só meu coração, naquele arranchamento. Propriamente,
pessoal do Hermógenes. Digo: bons e maus, uns pelos outros, como
neste mundo se pertence. Por um que ruim seja, logo mais para adiante
se encontra outro pior. E a situação nossa era de guerra. Mesmo com
isso, a peito pronto, ninguém se perturbou com perigos de tanta
gravidade. Se vivia numa jóvia, medindo mãos, em vavavá e conversa
de festa, tomando tempo. Aqueles não desamotinavam. A ajunta, ali,
assim, de tantos atrás do ar, na vagagem: manga de homens, por
zanzar ou estar à-tôa, ou parar formando rodas; ou uns dormindo,
como boi malha; ou deitados no chão sem dormir ― só aboboravam.
Assaz toda espécie de roupa, divulguei: até sujeito com cinta larga
de lã vermelha; outro com chapéu de lebre e colete preto de fino
pano, cidadão; outros com coroça e bedém, mesmo sem chuva nenhuma;
só que de branco vestido não se tinha: que com terno claro não se
guerreia. Mas jamais ninguém ficasse nú-de-Deus ou indecente
descomposto, no meio dos outros isso não e não. Andando que
sentados, jogando jogos, ferrando queda de braço, assoando o nariz,
mascando fumo forte e cuspindo longe, e pitando, picando ou
dedilhando fumo no covo da mão, com muita demora; o mais, sempre no
proseio. Aventes baldrocavam suas pequenas coisas, trem objeto que um
tivesse e menos quisesse, que custou barato. E ninguém furtava!
Furtasse, era perigar morte. Cantavam cantarol, uns, aboiavam sem
bois.
Ou
cuidavam do espírito da barriga. O serviço que cumpriam era alimpar
as armas bem ― marcadas as cruzes nas feições das coronhas. E
tudo o mais que faziam, que fosse coisa de sem-o-que-fazer. Por isso
― se dizia ― que ali corresse muita besouragem, de falação mal,
de rapa-tachos. Tinham lá até cachorros, vadiando geral, mas o dono
de cada um se sabia; convinha não judiar com cão, por conta do
dono.
Ao
às-tantas me aceitaram; mas meio atalhados. Se o que fossem mesmo de
constância assim, por tempero de propensão; ou, então, por me
arrediarem, porquanto me achando deles diverso? Somente isto nos
princípios. Sendo que eu soube que eu era mesmo de outras extrações.
Semelhante por este exemplo, como logo entendi! eles queriam completo
ser jagunços, por alcanço, gala mestra; conforme o que avistei,
seguinte. Pois não era que, num canto, estavam uns, permanecidos
todos se ocupando num manejo caprichoso, e isto que eles executavam!
que estavam desbastando os dentes deles mesmos, aperfeiçoando os
dentes em pontas! Se me entende? Senhor ver, essa atarefação, o
tratear, dava alojo e apresso, dava até aflição em aflito,
abobante. Os que lavravam desse jeito! o Jesualdo ― mocinho novo,
com sua simpatia ―, o Araruta e o Nestor; os que ensinavam a eles
eram o Simião e o Acauã. Assim um uso correntio, apontar os dentes
de diante, a poder de gume de ferramenta, por amor de remedar o
aguçoso de dentes de peixe feroz do rio de São Francisco ―
piranha redoleira, a cabeça-de-burro. Nem o senhor não pense que
para esse gasto tinham instrumentos próprios, alguma liminha, ou
ferro lixador. Não! aí era à faca. O Jesualdo mesmo se fazia,
fazia aquilo sentado num calcanhar. Aviava de encalcar o corte da
faca nas beiras do dente, rela releixo, e batia no cabo da faca, com
uma pedra, medidas pancadas. Sem espelho, sem ver; ao tanto, que era
uma faca de cabo de niquelado.
Ah,
no abre-boca, comum que babando, às vezes sangue babava. Ao mais
gemesse, repuxando a cara, pelo que verdadeiro muito doía.
Aguentava. Assim esquentasse demais; para refrescar, então ele
bochechava a breve, com um caneco de água com pinga. Os outros dois,
também. O Araruta procedia sozinho, igual, batendo na faca com a
prancha de outra. O Nestor, não: para ele, o Simião, com um
martelinho para os golpes, era quem raspava; mas decerto o Nestor ao
outro para isso algum tanto pagasse. Abrenunciei. ― Arrenego! ―
eu disse. ― Deveras? Então, mano-velho, pois tu não quer? ― o
Simião, em gracejo, me perguntou. Me fez careta; e ― acredite o
senhor: ele, que exercia lâmina nos do outro, ele não possuía,
próprio, dente mais nenhum nas gengivas ― conforme aquela vermelha
boca banguela toda abriu e me mostrou. Repontei: ― Eu acho que,
para se ser valente, não carece de figurativos... O Acauã, que já
era bom conhecido meu, assim mesmo achou de se reagir: ― São
gostos... Mas, um outro, que chegando veio, falou o mais seco: ―
Tudo na vida são gostos, companheiro. Mas não será o meu! Olhei
para esse, que me deu o apoio. E era um Luís Pajeú ― com a
faca-punhal do mesmo nome, e ele sendo de sertão do mesmo nome, das
comarcas de Pernambuco. Sujeito despachado, moreno bem queimado, mas
de anelados cabelos, e com uma coragem terrivelmente. Ah, mas o que
faltava, lá nele, que ele mais não tinha, era uma orêlha, ― que
rente cortada fora, pelo sinal. Onde era que o Luís Pajeú havia de
ter deixado aquela orêlha? ― Será gosto meu não, de descascar
dentaduras... ― conciso declarou, falava meio cantado, mole, fino.
Alto e forte, foi outro falar, de outro, que no instante também
ouvi: ― Uê, em minha terra, se afia guampa, é touro, ixí! E esse
um, trolado demais franco, e desempenado cavaleiro, era o Fafafa. Fiz
conhecença. Dele tenho, para mais depois.
Ao
que lá não faltava a farta comida, pelo que logo vi. Gêneros e
bebidas boas. De donde vinha tudo, em redondezas tão pobrezinhas, a
gente parando assim quase num deserto? E a munição, tanta, que nem
precisaram da que tínhamos trazido, e que foi levada mais adiante,
para os escondidos de Joca Ramiro, perto do arraial do Bró? E a
jorna, para satisfazer àquela cabroeira vivente, que estavam ali em
seu emprego de cargo? Ah, tinham roubado, saqueado muito, grassavam.
A sebaça era a lavoura deles, falavam até em atacar grandes
cidades. Foi ou não foi?
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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