terça-feira, 28 de janeiro de 2020

A refinaria

Além dos botes suspensos, um navio baleeiro norte-americano diferencia-se, no seu aspecto externo, por sua refinaria. Esta apresenta a anomalia curiosa de ter uma alvenaria muito sólida que une a madeira do carvalho com o cânhamo, para constituir o navio acabado. É como se um forno de cozer tijolos tivesse sido transportado para o seu convés.
A refinaria é colocada entre o mastro da proa e o mastro grande, a parte mais ampla do convés. As tábuas embaixo têm uma resistência especial, própria para aguentar o peso de uma massa compacta de tijolos e argamassa, com uma extensão de cerca de dez por oito pés quadrados e uma altura de cinco pés. A fundação não penetra no convés, mas a alvenaria fica presa com firmeza na superfície por meio de pesados suportes de ferro, apertados por todos os lados e parafusados nas tábuas. Dos lados, é cercada por madeira e por cima é coberta por uma escotilha grande e inclinada com um batente. Tirando-se a escotilha vêem-se os imensos caldeirões, dois no total, cada um com capacidade para vários barris. Quando não estão sendo usados, são mantidos bem limpos. Às vezes, são polidos com pedra-sabão e areia, até que brilhem como poncheiras de prata. Durante as vigílias noturnas alguns velhos marinheiros cínicos rastejam para dentro deles e ali se enrolam para dar um cochilo. Enquanto se ocupam em poli-los – um homem para cada caldeirão, um do lado do outro –, muitas comunicações secretas são trocadas sobre os lábios de ferro. É também um lugar para uma reflexão matemática profunda. Foi no caldeirão esquerdo do Pequod, com a pedra-sabão circulando com diligência à minha volta, que me ocorreu, pela primeira vez, o fato notável, na geometria, de que todos os corpos que deslizam ao longo de um cilindro – a minha pedra-sabão, por exemplo – descem de qualquer ponto usando sempre o mesmo tempo.
Retirando-se o guarda-fogo da frente da refinaria, a alvenaria fica exposta desse lado, mostrando as duas bocas de ferro das fornalhas, bem embaixo dos caldeirões. As bocas têm portas pesadas de ferro. O calor intenso do fogo é impedido de se comunicar com o convés por causa de um reservatório pouco profundo que se estende sob toda a superfície da refinaria. Um tubo colocado atrás reabastece esse reservatório assim que a água evapora. Não há chaminés externas; elas saem direto da parede de trás. E, aqui, vamos retornar um pouco.
Eram quase nove horas da noite quando a refinaria do Pequod começou a funcionar pela primeira vez naquela viagem. Coube a Stubb supervisionar o trabalho.
Todos prontos aí? Tirem a escotilha, então, e comecem a trabalhar. Você, cozinheiro, acenda o fogo.” Isso era uma coisa fácil, pois o carpinteiro tinha jogado os restos de lenha na fornalha durante muito tempo. Diga-se que numa viagem de pesca de baleias o primeiro fogo da refinaria tem que ser alimentado com lenha durante algum tempo. Depois disso não se usa mais lenha, exceto como um meio de ignição rápida do combustível básico. Em suma, depois da refinação, a gordura tostada e murcha, chamada sobra ou rijão, ainda guarda uma parte considerável de gordura. Os rijões alimentam as chamas. Como um mártir pletórico na fogueira, ou um misantropo se autoconsumindo, uma vez que o fogo é aceso, a baleia fornece o seu próprio combustível e queima o seu próprio corpo. Se pudesse consumir a sua própria fumaça! Pois essa fumaça é horrível de ser inalada, e não apenas é forçoso respirá-la como também se é obrigado a viver dentro dela por um tempo. Tem um odor hindu inexprimível e feroz, como o que deve se esconder nas proximidades das piras fúnebres. Tem o cheiro da asa esquerda do dia do Juízo Final; é um argumento a favor do inferno.
Por volta da meia-noite, a refinaria estava em plena atividade. Tínhamos nos livrado da carcaça; navegávamos; o vento refrescava e a escuridão do oceano feroz era intensa. Mas essa escuridão foi engolida por chamas ardentes, que, vez ou outra, se bifurcavam nos canos cheios de fuligem e iluminavam todos os cabos do cordame no alto, tal como o fogo grego inesquecível. O navio ardente avançava, como que impiedosamente encarregado de um ato de vingança. Como os brigues carregados de piche e enxofre do corajoso Canaris de Hidra, saindo dos portos à meia-noite, com imensos lençóis de chamas por velas, atirando-se sobre as fragatas turcas, envolvendo-as em conflagrações.
Retirada a escotilha do topo da refinaria, via-se uma lareira grande à frente. De pé sobre ela ficavam as formas tartáreas dos arpoadores pagãos, que sempre eram os foguistas do navio baleeiro. Com forquilhas imensas atiravam as massas de gordura sibilantes nos caldeirões escaldados, ou mexiam no fogo embaixo, até que as chamas serpentinas disparassem para fora, enroladas, e pegassem-nos pelos pés. A fumaça se enrolava formando morros lúgubres. A cada jogada do navio o óleo fervente se movia, parecendo ansioso por saltar-lhes na cara. Diante da boca da refinaria, além da lareira de madeira ficava o molinete, que servia de sofá marítimo. Os homens da vigília descansavam aí, quando não estavam trabalhando em outra coisa, olhando para o calor vermelho do fogo até os seus olhos se sentirem ressecados. As suas feições morenas, agora sujas de fumaça e suor, as suas barbas desgrenhadas e o brilho extraordinário e contrastante dos seus dentes eram revelados de modo estranho pelo fulgor volúvel das chamas da refinaria. Quando relatavam as suas incríveis aventuras uns aos outros, os seus contos de terror narrados com palavras alegres, quando as suas risadas incivilizadas se bifurcavam no alto, como as chamas do forno, quando diante deles os arpoadores arrebatados mexiam as enormes forquilhas e conchas, quando o vento uivava e o mar pulava, e o navio gemia e mergulhava, e, no entanto, inabalável, não deixava de levar o seu inferno vermelho cada vez mais para dentro da escuridão do mar e da noite, e, com desdém, mascava o osso branco na boca e cuspia com maldade por todos os lados, naquele momento, o Pequod impetuoso, carregado de selvagens, abarrotado de fogo, queimando um cadáver e mergulhando na escuridão tenebrosa, parecia uma cópia feita da matéria da alma do seu comandante monomaníaco.
Assim me parecia, quando, durante horas, ficava ao timão guiando em silêncio o navio de fogo no mar. Eu mesmo, mergulhado em trevas durante aquele tempo, via melhor o ardor, a loucura e o horror dos outros. A visão incessante de formas diabólicas diante de mim, saltando na fumaça e no fogo, acabou por gerar visões análogas na minha alma, tão logo comecei a ceder à sonolência incompreensível que sempre me acometia no leme à meia-noite.
Mas naquela noite, em especial, uma coisa estranha (e até hoje inexplicável) aconteceu comigo. Acordando sobressaltado de um cochilo em pé, tive consciência, de um modo horrível, de que alguma coisa estava fatalmente errada. A cana do leme de osso da mandíbula feria as minhas costelas, que se apoiavam nela; nos meus ouvidos sussurravam as velas, começando a se agitar ao vento; achei que os meus olhos estavam abertos; tenho quase certeza de que levei os meus dedos às pálpebras e lembro de apartá-las mecanicamente. Mas, apesar disso tudo, não vi a bússola diante de mim para me guiar, embora me parecesse que um minuto antes eu tinha examinado a carta à luz da lamparina da bitácula que a iluminava. Parecia não existir nada diante de mim a não ser um breu absoluto que, vez ou outra, virava terrível devido aos vermelhos clarões. A minha impressão mais forte era de que, por mais rápida e impetuosa que fosse aquela coisa na qual eu estava, ela não estava se dirigindo a um porto à frente, mas que fugia de todos os portos que deixava para trás. Uma sensação violenta e desnorteante, como de morte, invadiu-me. As minhas mãos se agarraram convulsivamente ao leme, mas tive a impressão enlouquecida de que o leme, por algum encantamento, estava invertido. Meu Deus! O que há comigo?, pensei. Oh! No meu cochilo tinha me virado e estava de frente para a popa do navio, de costas para a proa e para a bússola. Num instante, dei uma volta, bem em tempo de evitar que o navio se virasse contra o vento e que, com toda a probabilidade, emborcasse. Que gratidão e alegria senti quando me livrei da alucinação sobrenatural da noite e da contingência fatal de ser arrastado para sotavento!
Não olhe por muito tempo para o fogo, homem! Nunca sonhe com a mão no timão! Não vire de costas para a bússola, aceite a primeira sugestão da cana do leme; não acredite no fogo artificial, quando a sua vermelhidão faz com que todas as coisas pareçam terríveis. Amanhã, à luz natural do sol, os céus brilharão; aqueles que brilharam como demônios nas chamas bifurcadas, de manhã mostrar-se-ão com outro relevo, mais suave; o sol alegre, dourado e glorioso, a única lamparina verdadeira – todas as outras são mentirosas!
Contudo, o sol não esconde o pântano horroroso de Virginia, nem a campanha mal-aventurada de Roma, nem o imenso Saara, nem os milhões de milhas de desertos e de adversidades sob a lua. O sol não esconde o oceano, que é o lado escuro da Terra, que ocupa dois terços da Terra. Por conseguinte, o homem mortal que traz dentro de si mais alegria do que tristeza, tal homem não pode ser verdadeiro – não verdadeiro, ou mal desenvolvido! O mesmo sucede com os livros. O homem mais verdadeiro de todos foi o Homem das Tristezas, e o livro mais verdadeiro o de Salomão: o Eclesiastes é o magnífico aço temperado da dor. “Tudo é vaidade.” TUDO. Este mundo obstinado ainda não apreendeu a sabedoria de Salomão. Mas aquele que evita os hospitais e as prisões e caminha depressa nos cemitérios, prefere conversar sobre óperas a conversar sobre o inferno; chama Cowper, Young, Pascal e Rousseau de pobres-diabos doentes; e durante a vida despreocupada jura que Rabelais é o mais sábio e por isso o mais alegre – esse homem não está apto a se sentar nas lápides sepulcrais e quebrar a relva verde e úmida com o maravilhoso e incomensurável Salomão.
Mas o próprio Salomão diz: “O homem que se afasta do caminho do entendimento permanecerá” (isto é, mesmo enquanto vivo) “na companhia dos mortos”. Não te entregues, portanto, ao fogo, para que ele não te altere e não te enfraqueça, como fez comigo por algum tempo. Existe uma sabedoria que é dor, mas existe uma dor que é insanidade. E existe uma águia de Catskill em certas almas que consegue mergulhar nos desfiladeiros mais sombrios, subir de volta e tornar-se invisível nos lugares ensolarados. E, ainda que voasse no desfiladeiro para sempre, o desfiladeiro fica nas montanhas; e assim, mesmo na sua investida mais rasa, a águia da montanha ainda voa mais alto do que todos os pássaros das planícies, por mais alto que voem.
Herman Melville, in Moby Dick

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