domingo, 5 de janeiro de 2020

A mulher de preto - Capítulo I

A primeira vez que o Dr. Estêvão Soares falou ao deputado Meneses foi ao Teatro Lírico no tempo da memorável luta entre lagruístas e chartonistas. Um amigo comum os apresentou ao outro. No fim da noite separaram-se oferecendo cada um deles os seus serviços e trocando os respectivos cartões de visita.
Só dois meses depois se encontraram outra vez.
Estevão Soares teve de ir à casa de um ministro de Estado para saber de uns papéis relativos a um parente da província, e aí encontrou o deputado Meneses, que acabava de ter uma conferência política.
Houve sincero prazer em ambos encontrando-se pela segunda vez; e Meneses arrancou de Estêvão a promessa de que iria à casa dele daí a poucos dias.
O ministro depressa despachou o jovem médico.
Chegando ao corredor, Estêvão foi surpreendido com uma tremenda bátega d’água, que nesse momento caía, e começava a alagar a rua.
O rapaz olhou a um e outro lado a ver se passava algum veículo vazio, mas procurou inutilmente; todos que passavam iam ocupados.
Apenas à porta estava um coupé vazio à espera de alguém, que o rapaz supôs ser o deputado.
Daí a alguns minutos desce, com efeito, o representante da nação, e admirou-se de ver o médico ainda à porta.
Que quer? Disse-lhe Estevão; a chuva impediu-me de sair; aqui fiquei a ver se passa um tílburi.
É natural que não passe, e nesse caso ofereço-lhe um lugar no meu coupé. Venha.
Perdão; mas é um incômodo…
Ora, incômodo! É um prazer. Vou deixá-lo em casa. Onde mora?
Rua da Misericórdia nº…
Bem, suba.
Estevão hesitou um pouco; mas não podia deixar de subir sem ofender o digno homem que de tão boa vontade lhe fazia um obséquio.
Subiram. Mas em vez de mandar o cocheiro para a Rua da Misericórdia, o deputado gritou:
João, para casa!
E entrou.
Estevão olhou para ele admirado.
Já sei, disse-lhe Meneses; admira-se de ver que faltei à minha palavra; mas eu desejo apenas que fique conhecendo a minha casa a fim de lá voltar quanto antes.
O coupé rolava já pela rua fora debaixo de uma chuva torrencial. Meneses foi o primeiro que rompeu o silêncio de alguns minutos, dizendo ao jovem amigo:
Espero que o romance da nossa amizade não termine no primeiro capítulo.
Estevão, que já reparara nas maneiras solícitas do deputado, ficou inteiramente pasmado quando lhe ouviu falar no romance da amizade. A razão era simples. O amigo que os havia apresentado no Teatro Lírico disse no dia seguinte:
Meneses é um misantropo, e um cético; não crê em nada, nem estima ninguém.
Na política como na sociedade faz um papel puramente negativo.
Esta era a impressão com que Estêvão, apesar da simpatia que o arrastava, falou a segunda vez a Meneses, e admirava-se de tudo, das maneiras, das palavras, e do tom de afeto que elas pareciam revelar.
À linguagem do deputado o jovem médico respondeu com igual franqueza.
Por que acabaremos no primeiro capítulo? Perguntou ele; um amigo não é coisa que se despreze, acolhe-se como um presente dos deuses.
Dos deuses! Disse Meneses rindo; já vejo que é pagão.
Alguma coisa, é verdade; mas no bom sentido, respondeu Estêvão rindo também. Minha vida assemelha-se um pouco à de Ulisses…
Tem ao menos uma Ítaca, sua pátria, e uma Penélope, sua esposa.
Nem uma nem outra.
Então entender-nos-emos.
Dizendo isto o deputado voltou a cara para o outro lado, vendo a chuva que caía na vidraça da portinhola.
Decorreram dois ou três minutos, durante os quais Estêvão teve tempo de contemplar a seu gosto o companheiro de viagem.
Meneses voltou-se e entrou em novo assunto.
Quando o coupé entrou na Rua do Lavradio, Meneses disse ao médico:
Moro nesta rua; estamos perto de casa. Promete-me que há de vir ver-me algumas vezes?
Amanhã mesmo.
Bem. Como vai a sua clínica?
Apenas começo, disse Estevão; trabalho pouco; mas espero fazer alguma coisa.
O seu companheiro, na noite em que mo apresentou, disse-me que o senhor é moço de muito merecimento.
Tenho vontade de fazer alguma coisa.
Daí a dez minutos parava o coupé à porta de uma casa da Rua do Lavradio.
Apearam-se os dois e subiram.
Meneses mostrou a Estêvão o seu gabinete de trabalho, onde havia duas longas estantes de livros.
É a minha família, disse o deputado mostrando os livros. História, filosofia, poesia… e alguns livros de política. Aqui estudo e trabalho. Quando cá vier é aqui que o hei de receber.
Estevão prometeu voltar no dia seguinte, e desceu para entrar no coupé que esperava por ele, e que o levou à Rua da Misericórdia.
Entrando em casa Estêvão dizia consigo:
Onde está a misantropia daquele homem? As maneiras de misantropo são mais rudes do que as dele; salvo se ele, mais feliz do que Diógenes, achou em mim o homem que procurava.”
Machado de Assis, in Contos fluminenses

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