Era
verdade. Fiquei furioso ao ver que meu sobrinho tinha razão. Logo
ele, que odeio. Me senti mal, tanto ou pior quanto daquela vez em que
concordei com meu pai que não vingaríamos o menino de olho vazado.
Os pacotes abertos mostravam os vestidos de minha mulher.
Roupas
de seda, de cetim. Cores estampadas, vistosas, flores imensas,
desenhos malucos, decotes, mínis. As mulheres de olhos despencados
uivavam, ao disputar. Eram ferozes, mas não bobas. Faziam de tudo
para ganhar, sem rasgar. Alguém já viu uma briga cheia de
gentilezas?
Pois
ali estava uma. Na minha frente, aquelas mulheres horrorosas despiam
seus trapos colocando os vestidos berrantes de Adelaide. E era quando
se transformavam realmente em aberrações, princesas transformadas
em sapos, um sabat, bruxas dançando ao luar no Pátio dos Milagres.
Tentei
imaginar Adelaide naquelas roupas, não consegui. Estava habituado a
sua figura frágil dentro de tailleurs discretos ou vestidos leves de
cores sóbrias. Para mim, ela não se encaixava em roupas
cintilantes. E se fosse esta a sua verdadeira imagem, extrovertida?
De
repente, o mundo acabou de se desequilibrar. O ritmo foi todo
quebrado. As peças, com os dentes comidos, não se ajustaram.
Necessário refazer tudo, reatar conversas não havidas, recuperar
milhares de carinhos não feitos. A mulher que amei nunca existiu.
Veio um vácuo.
Amei,
sim. Ao meu modo. Pode ter sido uma forma errada, no entanto era o
meu jeito. De que adianta teorizar agora sobre as formas de amar?
Dentro de mim só existe uma pergunta: ainda tenho tempo, ou o meu se
esgotou? Quantas chances o homem tem na sua vida?
Que
dizer então de nossas noites, tão rápidas, insones? Teria sido
diferente? Me bateu uma sensação de perda. Sem tamanho, sem
fronteira. Tem uma palavra que meu avô usava muito, referindo-se às
matas: incomensurável. Perder, para sentir que um dia se teve, é
coisa injusta.
Essas
noites perdidas, sei bem, não há como recolocá-las. Os gestos,
carícias, murmúrios, gemidos, risos, cheiros, o suor, nunca mais. É
como estar partido ao meio, despedaçado sob as rodas de um trem. Com
toda a dor que é possível suportar consciente, sem anestesias.
Que
loucuras poderíamos ter feito naquele quarto. Explorar um ao outro
no limite máximo. Limite. Temos sempre barreiras em nossa cabeça.
Poderíamos ter ido até o fim. Ou além dele, se soubéssemos o que
é o fim. No entanto, em silêncio, concordávamos com aquela coisa
morna.
Em
amor comportado, perpétuo. Cheio de respeito, é o que pensávamos.
Não, não, Adelaide não tem nada com isso. Eu é que pensava em
respeito, ela jamais disse essa palavra. A essa altura sei que não
posso responder por ela, não somos mais o casal tão unha e carne.
Viver
na dependência do se. Se tivesse sido, se tivesse procurado, se
tivesse tentado. Existir confiando numa hipótese passada. Certa vez,
li num jornal uma frase que me pareceu sem sentido: a salvação sem
amanhã. Acho que agora penetrei, compreendi, o significado.
Escalei
uma colina putrefata. Com dificuldade, em meio ao fedor. Dizem que
aqui era o cemitério da Quarta Parada. Alqueires e alqueires
coalhados de túmulos. Foi uma grande conquista das imobiliárias,
quando se esgotaram as possibilidades de terrenos na área urbana.
Demolida
a última casa, erguido o último edifício, restava apenas o
subúrbio longínquo. Aí se deu a descoberta dos cemitérios.
Tradicionais, populares, de luxo, para indigentes. Católicos,
judeus, protestantes, crentes, batistas, dos mórmons, da esquerda.
Veio
uma intensa campanha publicitária. De amortização. A fim de
preparar as pessoas que renegavam a ideia de ver removidos os seus
mortos sagrados. Os projetos de substituição eram belíssimos.
Agulhas brancas, altíssimas, capazes de furar nuvens, chegar ao céu.
As
famílias comovidas disputavam os andares altos, aqueles que se
situavam perto do Senhor, segundo os anúncios. Assim, notáveis
extensões de terras foram conquistadas pelas imobiliárias. Ali
plantaram seus conjuntos mastodônticos, ossos e cinzas como
alicerces.
Não
posso assegurar se de fato aqui foi o cemitério. Há muitos anos,
desde que estabeleceram os projetos de circulação, tenho andado
pouco pela cidade. Tudo o que posso ver, do alto dessas colinas em
forma de pirâmides, são prédios iguais. Repetitivos, monótonos.
De
tal modo que não dá para dizer se estou na Quarta Parada, na Bela
Vista ou no Brooklyn. Conjuntos e mais conjuntos de paredes lisas.
Janelas, grades, fachadas limpas. Elas se assemelham, uma vez que
todas as construtoras utilizam plantas e projetos estandardizados.
Desenhos,
divisões, materiais, houve unificação geral, a fim de baratear os
custos. As diferenças ficaram por conta dos nomes pomposos com
Mansão Rimbaud, Solar Maria Antonieta, Fontes de Versalhes, Hall dos
Nobres, Torre Aristocrata, Vila Real, Brilho de Florença.
Tadeu
Pereira e eu andávamos bastante. Percorríamos a pé as ruas do
velho centro, estendíamos para os bairros antigos como Campos
Elíseos, Higienópolis, Brás. Procurávamos vestígios da Finlândia
e Lituânia nos becos da Vila Zelina, pedaços do Japão nas vielas
da Liberdade.
A
manhã de domingo era preenchida com os passeios, enquanto Adelaide
ia para a missa, depois para a casa dos pais. Resmungava que os fins
de semana tinham-se acabado. Ela sentia falta do nosso churrasco
dominical. Também, naquele tempo, a carne já começava a faltar.
Não
sabíamos fotografar. Até mesmo as máquinas automáticas nos
causavam embaraço. Anotávamos nossos achados em cadernetinhas. Um
trabalho lento, exigia atenção. Como passar um pente-fino, agitar
bateia em garimpo. Mas não tínhamos nenhuma pressa. O tempo era
nosso.
Tadeu
ainda se arriscava a fazer um desenho de vez em quando. Nostalgia de
seus cursos na faculdade. Ele quis ser arquiteto em vez de professor
de cálculo. Acabou reprovado naqueles vestibulares lotéricos porque
errou umas cruzinhas diante das respostas opcionais.
Registrávamos
a presença de velhas casas, mansões, sobrados. Arquitetos amigos
nos ajudavam a decifrar estilos, épocas. Descobríamos vilas
escondidas e protegidas. Praças quase secretas, ruas intactas desde
a década de vinte, construções que resistiam ao avanço das
imobiliárias.
Uma
figueira centenária na rua Piratininga. Uma coleção de vitrais art
déco na rua Bresser. Imagens de Calixto se deteriorando numa capela
esquecida em Santana. Um resto de projeto de Warchavchik, deformado
pelo acréscimo de uma garagem de plástico e pastilhas na fachada.
Uma
escultura de Brecheret perdida entre anões de jardim no Tremembé.
Um mosteiro colonial transformado em oficina mecânica. A basílica
dos armênios com um tesouro: pedaços de baixos-relevos trazidos da
Igreja de Althamar. Uma porta de bronze em sinagoga do Bom Retiro.
Não
tínhamos método científico. Fazíamos por divertimento, um pouco
por nostalgia. Vontade também de nos reencontrarmos através de
pistas geográficas que andavam à deriva. Sentir que ainda havia
pontos de apoio. Talvez o que procurássemos fosse uma espécie de
segurança.
Um
vidro floreado. Floreiras nas janelas de uma quadra sombria da rua
Aurora. Uma escada de ferro batido, desamparada, demolida a varanda a
que ela dava acesso. Grades de jardim, enferrujadas. Fachadas com
marchetaria em mármore, ou louça. Galerias. Abóbadas com nervuras.
Cúpulas,
pavilhões, estufas, terraços, belvederes, pilastras, vigamentos,
entablamentos, arcos superpostos, ornamentos, baixos-relevos,
estuques, grinaldas, florões, zimbórios, formas despojadas de ferro
e concreto, colunas, portas art nouveau, edifícios barrocos,
góticos.
Submerso
por uma barreira de letreiros em acrílico e lata, encontramos o
primeiro projeto em concreto aparente, feito pelo Paulo Mendes da
Rocha. O edifício todo repintado em rosa e azul. Assim, fizemos um
imenso rol, até o dia em que nos olhamos e perguntamos: para quê?
Nos
bateu como um raio. Ficamos de tal modo constrangidos que nos
separamos. Sem dizer uma palavra. Cada um sabia dentro de si o
porquê. Quanto mais circulávamos, mais nos aproximávamos das
periferias. E aquele trabalho foi pesando, tornando-se inútil,
inconsequente.
Não
era radicalismo, nem o que se chamava festividade. Nossa, há quantos
séculos não usava essa palavra. Esqueci minha cadernetinha. Quando
reencontrei Tadeu, não falamos mais sobre o assunto. Somente agora,
semanas atrás, ele se lembrou e me excitou a curiosidade.
Hoje,
ainda que nebulosamente, vejo um certo sentido. De fixação. Ei, mas
o que estão fazendo lá embaixo? Claro que é um corpo que carregam
embrulhado nos lençóis bordados por Adelaide. E são cinco. Cinco.
Como cinco? Quer dizer que morreram todos? Não eram cinco.
Meu
Deus do céu, o que está acontecendo? Mataram todos os infelizes.
Mas eram somente quatro. Os três que invadiram e já andavam mais
para lá do que para cá. E, finalmente, o pobre barbeiro. Para mim,
foi o sujeito que ouve rádio quem matou. Tem tudo de paranoico.
Aquele
quinto pacote me incomoda, desço a montanha de lixo aos trambolhões,
me agarro ao meu sobrinho. Por que vão enterrar assim meio
escondido? Que monte de coisas não entendo. Só posso constatar que
atrás da impunidade deles existe um medo. De quê? De quem?
– Sente-se
mal, tio? É o cheiro.
– Cheiro,
coisa nenhuma. Quero saber quem é o outro defunto.
– Um
dos caras do quartinho.
– Eram
três.
– Quatro.
– Estou
velho, não caduco. Eram três.
– Teve
mais um, noite dessas. Nem contamos ao senhor.
– Quero
ver.
– Sem
essa, tio! Estão bem-acondicionados.
– Acondicionados
coisa alguma, me mostre.
– E
se não mostrar?
– Adianta
mostrar? É um desconhecido. Um surdo que andava pedindo comida.
– Deixe-me
ver, para me tranquilizar.
– Esquece,
tio. Não temos tempo, o dia está aí. Se clarear de vez, estamos
perdidos.
– Pelo
amor de sua tia.
– Não
me vem com história outra vez.
– Me
conta quem é.
– Um
surdo, já disse.
– Um
surdo não significa nada. Existem milhares na cidade.
– Acho
que era um surdo por serra de construção.
– Não
brinca comigo. – Verdade, eles existem. – Chega. – Nervoso,
tio? – Quem é o outro morto? Estou com pressentimento ruim. –
Acho que acertou, tio. – O professor de piano?
– Ele.
– Por
quê? Por quê?
– Morreu
do coração, não fomos nós. Não aguentou a subida da escada, a
notícia do desaparecimento da tia.
– Descarado.
Me
atirei sobre ele, vejam só. Com o braço esquerdo, me jogou no lixo.
Brincadeira de criança para quem seguiu escrupulosamente as noções
rígidas da educação esportiva dos Militecnos. Tenho ódio de levar
tapa. Beliscão, então, nem se diga. Me tira completamente do sério.
Avancei
de novo, às cegas. Há uma diferença quando a gente briga
acreditando que pode bater. E quando já entra para perder. Agora
estava apenas com raiva. Nem era mais questão de honra, dessas
histórias de que homem não apanha. Ainda com a esquerda, ele me
segurou.
– Para
com isso, tio. Olha seu coração.
– Você
não presta.
– Me
xinga, tio. Xinga de verdade, aí desabafa.
– Diz
que não era o professor.
– Era.
– É
um horror. Te entrego aos Civiltares.
– Mato
o senhor antes disso.
Adelaide
conheceria esse sobrinho a quem se dedicou tanto? Ele substituiu o
nosso filho. Ensinamos a ele tudo o que pudemos. Não sobrou nada. A
certeza que tenho é absoluta. Ele somente ainda não me matou porque
alguma coisa dentro dele o impede, um resto de decência.
O
helicóptero surgiu por trás do monte de lixo a uma velocidade
incrível. Quando ouvimos o barulho e erguemos a cabeça, ele já
estava em cima de nós. Começava a clarear, o sol ainda não tinha
saído, a luz era indefinida. Dois holofotes na barriga do aparelho
nos deixavam expostos.
Uma
metralhadora giratória começou a funcionar, despejando fogo
cerrado. Fitas intermitentes de luz, intensamente brilhantes naquela
claridade indecisa da madrugada. O fogo penetrava no chão com um
barulho fofo, levantando pequenas explosões. Todos começaram a
gritar.
Carecas,
molambentos, aleijados, os de olhos despencados, mancos, velhos,
pelanquentos, corriam. Meu sobrinho rolava pelo chão, com uma
agilidade admirável, seguido pelas rajadas. Eu simplesmente não
tinha a mínima ideia do que devia fazer em combate, fiquei
apavorado.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país
nenhum
Nenhum comentário:
Postar um comentário