terça-feira, 7 de janeiro de 2020

A Adelaide que surge dos pacotes deixa Souza perplexo. Qual a identidade real de sua mulher? E agora?

Era verdade. Fiquei furioso ao ver que meu sobrinho tinha razão. Logo ele, que odeio. Me senti mal, tanto ou pior quanto daquela vez em que concordei com meu pai que não vingaríamos o menino de olho vazado. Os pacotes abertos mostravam os vestidos de minha mulher.
Roupas de seda, de cetim. Cores estampadas, vistosas, flores imensas, desenhos malucos, decotes, mínis. As mulheres de olhos despencados uivavam, ao disputar. Eram ferozes, mas não bobas. Faziam de tudo para ganhar, sem rasgar. Alguém já viu uma briga cheia de gentilezas?
Pois ali estava uma. Na minha frente, aquelas mulheres horrorosas despiam seus trapos colocando os vestidos berrantes de Adelaide. E era quando se transformavam realmente em aberrações, princesas transformadas em sapos, um sabat, bruxas dançando ao luar no Pátio dos Milagres.
Tentei imaginar Adelaide naquelas roupas, não consegui. Estava habituado a sua figura frágil dentro de tailleurs discretos ou vestidos leves de cores sóbrias. Para mim, ela não se encaixava em roupas cintilantes. E se fosse esta a sua verdadeira imagem, extrovertida?
De repente, o mundo acabou de se desequilibrar. O ritmo foi todo quebrado. As peças, com os dentes comidos, não se ajustaram. Necessário refazer tudo, reatar conversas não havidas, recuperar milhares de carinhos não feitos. A mulher que amei nunca existiu. Veio um vácuo.
Amei, sim. Ao meu modo. Pode ter sido uma forma errada, no entanto era o meu jeito. De que adianta teorizar agora sobre as formas de amar? Dentro de mim só existe uma pergunta: ainda tenho tempo, ou o meu se esgotou? Quantas chances o homem tem na sua vida?
Que dizer então de nossas noites, tão rápidas, insones? Teria sido diferente? Me bateu uma sensação de perda. Sem tamanho, sem fronteira. Tem uma palavra que meu avô usava muito, referindo-se às matas: incomensurável. Perder, para sentir que um dia se teve, é coisa injusta.
Essas noites perdidas, sei bem, não há como recolocá-las. Os gestos, carícias, murmúrios, gemidos, risos, cheiros, o suor, nunca mais. É como estar partido ao meio, despedaçado sob as rodas de um trem. Com toda a dor que é possível suportar consciente, sem anestesias.

Que loucuras poderíamos ter feito naquele quarto. Explorar um ao outro no limite máximo. Limite. Temos sempre barreiras em nossa cabeça. Poderíamos ter ido até o fim. Ou além dele, se soubéssemos o que é o fim. No entanto, em silêncio, concordávamos com aquela coisa morna.
Em amor comportado, perpétuo. Cheio de respeito, é o que pensávamos. Não, não, Adelaide não tem nada com isso. Eu é que pensava em respeito, ela jamais disse essa palavra. A essa altura sei que não posso responder por ela, não somos mais o casal tão unha e carne.
Viver na dependência do se. Se tivesse sido, se tivesse procurado, se tivesse tentado. Existir confiando numa hipótese passada. Certa vez, li num jornal uma frase que me pareceu sem sentido: a salvação sem amanhã. Acho que agora penetrei, compreendi, o significado.
Escalei uma colina putrefata. Com dificuldade, em meio ao fedor. Dizem que aqui era o cemitério da Quarta Parada. Alqueires e alqueires coalhados de túmulos. Foi uma grande conquista das imobiliárias, quando se esgotaram as possibilidades de terrenos na área urbana.
Demolida a última casa, erguido o último edifício, restava apenas o subúrbio longínquo. Aí se deu a descoberta dos cemitérios. Tradicionais, populares, de luxo, para indigentes. Católicos, judeus, protestantes, crentes, batistas, dos mórmons, da esquerda.
Veio uma intensa campanha publicitária. De amortização. A fim de preparar as pessoas que renegavam a ideia de ver removidos os seus mortos sagrados. Os projetos de substituição eram belíssimos. Agulhas brancas, altíssimas, capazes de furar nuvens, chegar ao céu.
As famílias comovidas disputavam os andares altos, aqueles que se situavam perto do Senhor, segundo os anúncios. Assim, notáveis extensões de terras foram conquistadas pelas imobiliárias. Ali plantaram seus conjuntos mastodônticos, ossos e cinzas como alicerces.
Não posso assegurar se de fato aqui foi o cemitério. Há muitos anos, desde que estabeleceram os projetos de circulação, tenho andado pouco pela cidade. Tudo o que posso ver, do alto dessas colinas em forma de pirâmides, são prédios iguais. Repetitivos, monótonos.
De tal modo que não dá para dizer se estou na Quarta Parada, na Bela Vista ou no Brooklyn. Conjuntos e mais conjuntos de paredes lisas. Janelas, grades, fachadas limpas. Elas se assemelham, uma vez que todas as construtoras utilizam plantas e projetos estandardizados.
Desenhos, divisões, materiais, houve unificação geral, a fim de baratear os custos. As diferenças ficaram por conta dos nomes pomposos com Mansão Rimbaud, Solar Maria Antonieta, Fontes de Versalhes, Hall dos Nobres, Torre Aristocrata, Vila Real, Brilho de Florença.
Tadeu Pereira e eu andávamos bastante. Percorríamos a pé as ruas do velho centro, estendíamos para os bairros antigos como Campos Elíseos, Higienópolis, Brás. Procurávamos vestígios da Finlândia e Lituânia nos becos da Vila Zelina, pedaços do Japão nas vielas da Liberdade.
A manhã de domingo era preenchida com os passeios, enquanto Adelaide ia para a missa, depois para a casa dos pais. Resmungava que os fins de semana tinham-se acabado. Ela sentia falta do nosso churrasco dominical. Também, naquele tempo, a carne já começava a faltar.
Não sabíamos fotografar. Até mesmo as máquinas automáticas nos causavam embaraço. Anotávamos nossos achados em cadernetinhas. Um trabalho lento, exigia atenção. Como passar um pente-fino, agitar bateia em garimpo. Mas não tínhamos nenhuma pressa. O tempo era nosso.
Tadeu ainda se arriscava a fazer um desenho de vez em quando. Nostalgia de seus cursos na faculdade. Ele quis ser arquiteto em vez de professor de cálculo. Acabou reprovado naqueles vestibulares lotéricos porque errou umas cruzinhas diante das respostas opcionais.
Registrávamos a presença de velhas casas, mansões, sobrados. Arquitetos amigos nos ajudavam a decifrar estilos, épocas. Descobríamos vilas escondidas e protegidas. Praças quase secretas, ruas intactas desde a década de vinte, construções que resistiam ao avanço das imobiliárias.
Uma figueira centenária na rua Piratininga. Uma coleção de vitrais art déco na rua Bresser. Imagens de Calixto se deteriorando numa capela esquecida em Santana. Um resto de projeto de Warchavchik, deformado pelo acréscimo de uma garagem de plástico e pastilhas na fachada.
Uma escultura de Brecheret perdida entre anões de jardim no Tremembé. Um mosteiro colonial transformado em oficina mecânica. A basílica dos armênios com um tesouro: pedaços de baixos-relevos trazidos da Igreja de Althamar. Uma porta de bronze em sinagoga do Bom Retiro.
Não tínhamos método científico. Fazíamos por divertimento, um pouco por nostalgia. Vontade também de nos reencontrarmos através de pistas geográficas que andavam à deriva. Sentir que ainda havia pontos de apoio. Talvez o que procurássemos fosse uma espécie de segurança.
Um vidro floreado. Floreiras nas janelas de uma quadra sombria da rua Aurora. Uma escada de ferro batido, desamparada, demolida a varanda a que ela dava acesso. Grades de jardim, enferrujadas. Fachadas com marchetaria em mármore, ou louça. Galerias. Abóbadas com nervuras.
Cúpulas, pavilhões, estufas, terraços, belvederes, pilastras, vigamentos, entablamentos, arcos superpostos, ornamentos, baixos-relevos, estuques, grinaldas, florões, zimbórios, formas despojadas de ferro e concreto, colunas, portas art nouveau, edifícios barrocos, góticos.
Submerso por uma barreira de letreiros em acrílico e lata, encontramos o primeiro projeto em concreto aparente, feito pelo Paulo Mendes da Rocha. O edifício todo repintado em rosa e azul. Assim, fizemos um imenso rol, até o dia em que nos olhamos e perguntamos: para quê?
Nos bateu como um raio. Ficamos de tal modo constrangidos que nos separamos. Sem dizer uma palavra. Cada um sabia dentro de si o porquê. Quanto mais circulávamos, mais nos aproximávamos das periferias. E aquele trabalho foi pesando, tornando-se inútil, inconsequente.
Não era radicalismo, nem o que se chamava festividade. Nossa, há quantos séculos não usava essa palavra. Esqueci minha cadernetinha. Quando reencontrei Tadeu, não falamos mais sobre o assunto. Somente agora, semanas atrás, ele se lembrou e me excitou a curiosidade.
Hoje, ainda que nebulosamente, vejo um certo sentido. De fixação. Ei, mas o que estão fazendo lá embaixo? Claro que é um corpo que carregam embrulhado nos lençóis bordados por Adelaide. E são cinco. Cinco. Como cinco? Quer dizer que morreram todos? Não eram cinco.
Meu Deus do céu, o que está acontecendo? Mataram todos os infelizes. Mas eram somente quatro. Os três que invadiram e já andavam mais para lá do que para cá. E, finalmente, o pobre barbeiro. Para mim, foi o sujeito que ouve rádio quem matou. Tem tudo de paranoico.
Aquele quinto pacote me incomoda, desço a montanha de lixo aos trambolhões, me agarro ao meu sobrinho. Por que vão enterrar assim meio escondido? Que monte de coisas não entendo. Só posso constatar que atrás da impunidade deles existe um medo. De quê? De quem?
Sente-se mal, tio? É o cheiro.
Cheiro, coisa nenhuma. Quero saber quem é o outro defunto.
Um dos caras do quartinho.
Eram três.
Quatro.
Estou velho, não caduco. Eram três.
Teve mais um, noite dessas. Nem contamos ao senhor.
Quero ver.
Sem essa, tio! Estão bem-acondicionados.
Acondicionados coisa alguma, me mostre.
E se não mostrar?
Adianta mostrar? É um desconhecido. Um surdo que andava pedindo comida.
Deixe-me ver, para me tranquilizar.
Esquece, tio. Não temos tempo, o dia está aí. Se clarear de vez, estamos perdidos.
Pelo amor de sua tia.
Não me vem com história outra vez.
Me conta quem é.
Um surdo, já disse.
Um surdo não significa nada. Existem milhares na cidade.
Acho que era um surdo por serra de construção.
Não brinca comigo. – Verdade, eles existem. – Chega. – Nervoso, tio? – Quem é o outro morto? Estou com pressentimento ruim. – Acho que acertou, tio. – O professor de piano?
Ele.
Por quê? Por quê?
Morreu do coração, não fomos nós. Não aguentou a subida da escada, a notícia do desaparecimento da tia.
Descarado.
Me atirei sobre ele, vejam só. Com o braço esquerdo, me jogou no lixo. Brincadeira de criança para quem seguiu escrupulosamente as noções rígidas da educação esportiva dos Militecnos. Tenho ódio de levar tapa. Beliscão, então, nem se diga. Me tira completamente do sério.
Avancei de novo, às cegas. Há uma diferença quando a gente briga acreditando que pode bater. E quando já entra para perder. Agora estava apenas com raiva. Nem era mais questão de honra, dessas histórias de que homem não apanha. Ainda com a esquerda, ele me segurou.
Para com isso, tio. Olha seu coração.
Você não presta.
Me xinga, tio. Xinga de verdade, aí desabafa.
Diz que não era o professor.
Era.
É um horror. Te entrego aos Civiltares.
Mato o senhor antes disso.
Adelaide conheceria esse sobrinho a quem se dedicou tanto? Ele substituiu o nosso filho. Ensinamos a ele tudo o que pudemos. Não sobrou nada. A certeza que tenho é absoluta. Ele somente ainda não me matou porque alguma coisa dentro dele o impede, um resto de decência.
O helicóptero surgiu por trás do monte de lixo a uma velocidade incrível. Quando ouvimos o barulho e erguemos a cabeça, ele já estava em cima de nós. Começava a clarear, o sol ainda não tinha saído, a luz era indefinida. Dois holofotes na barriga do aparelho nos deixavam expostos.
Uma metralhadora giratória começou a funcionar, despejando fogo cerrado. Fitas intermitentes de luz, intensamente brilhantes naquela claridade indecisa da madrugada. O fogo penetrava no chão com um barulho fofo, levantando pequenas explosões. Todos começaram a gritar.
Carecas, molambentos, aleijados, os de olhos despencados, mancos, velhos, pelanquentos, corriam. Meu sobrinho rolava pelo chão, com uma agilidade admirável, seguido pelas rajadas. Eu simplesmente não tinha a mínima ideia do que devia fazer em combate, fiquei apavorado.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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