Como
posso suportar a bagunça em que a casa se encontra? Sempre fui
ordeiro, e aí me dava bem com Adelaide. Cada coisa em seu lugar,
nada esparramado. Quando meu sobrinho vinha passar o fim de semana em
casa, ainda criança, eu ficava quase maluco correndo atrás dele.
Picava
papel, eu recolhia. Largava pedaços de chiclete no tapete,
desmontava brinquedos, esparramava os lençóis, deixava lápis pelo
chão. Eu não suportava a desarrumação, ainda que Adelaide me
dissesse: deixa o menino em paz, quando ele se for a gente arruma
tudo.
Percebo
que quase não brinquei com ele na ânsia de deixar a casa em ordem.
E agora esses homens instalaram o caos, montaram um quartel-general
ao jeito e gosto deles, indiferentes a que eu goste ou não. Sinto
que não conto para eles, não me consideram. Apenas estou aí.
Perdi
a noção do tempo, fico inquieto, quero o relógio, não sei para
quê. Talvez por ser a hora de comer, tenho maus hábitos, não é
cômodo abdicar deles. Se não como na hora certa, vem a dor de
cabeça. Se descuido, vira enxaqueca, tenho de passar o dia no
escuro.
Meu
dia era dividido, setorizado, tranquilo de viver dentro. Café,
ônibus, trabalho, almoço, trabalho, condução, casa, Adelaide,
televisão, noticiário, dormir. Tempos exatos, razoavelmente
elásticos. Tudo desandou, me sinto perdido, me refugio no relógio.
De que adianta? Não há mais refúgios.
– Tem
comida aí?
– Hein?
– Tem
comida aí?
– Pode
gritar que quase não escuto.
– QUERO
COMER! COMER!
– Comida?
Tem fritada nessa frigideira em cima do fogão. Fria, se você não
se importa.
– Importo
sim. Importo com a fritada.
– O
quê?
– Não
gosto de fritada.
– Grita
bem alto.
– Não
gosto de fritada, detesto ovos factícios.
– Ahn,
ahn, sei, sei, sei. Ovo é bom. Até esses aí.
– Tem
gosto de plástico, e a liga é bem estranha. Ora, veja se vou ficar
gritando nesta cozinha como um imbecil. O sujeito não é surdo, não,
é cretino mesmo. E eu que fico discutindo sobre ovos com ele também
devo ser cretino. Que coisa insuportável. Ainda por cima vou acabar
comendo fritada com ovos factícios.
– Não
gosta por quê?
– Porque
não!
– Quanto
luxo. Se tivesse vivido como eu, sem ver ovo por anos e anos, anos
mesmo, não ia ficar olhando com essa cara de quem comeu e não
gostou, sem mesmo ter comido ainda. Quando entrei na sua casa e vi a
geladeira cheia de ovos, juro mesmo que fiquei maluco, doido da
cabeça, tudo batendo e chacoalhando, porque ovo é uma coisa que não
dá mesmo para te dizer como é bom. A última vez que vi ovo, antes
de entrar aqui, foi na geladeira da Subsistência, na empresa em que
eu trabalhava. Não podia, não mesmo, era proibido entrar na
cozinha, mas meu chefe me mandou buscar um facão. Entrei, o
cozinheiro não estava, fui olhando, abri a geladeira e fiquei
maluco, maluco mesmo, com o que vi. Sabe o que vi, pode adivinhar?
– Um
ovo?
– Hein?
– Um
ovo!
– Acertou,
acertou mesmo, veja só. Tava lá, um bruta ovo, enorme, até
brilhava e foi aí que veio o cozinheiro. Fiquei vidrado, perguntei:
– De
quem é esse ovo?
– Do
superintendente.
– E
como arranjaram ovo se as galinhas não existem mais?
– Pergunta
pro superintendente, foi ele quem apareceu com uma caixa.
– Uma
caixa? Quer dizer que tinha muito ovo? E não dividiu com o pessoal?
– Dividir
com o pessoal? Está pancada, está? Pro pessoal é o rango. Teve um
enguiço desgraçado por causa desse ovo aí. Acabaram com um peão
porque pegaram o tipinho tentando roubar o ovo. Por isso fecha essa
porta e nem se aproxima. E não liga não, ouvi dizer que no outro
Acampamento vai ter comida da boa. Os donos do morro aqui é que são
morrinhas. Assim que acabar aqui, vocês vão enfrentar uma bruta
montanha.
– Viu,
viu só, eu achava muito errado exibir um ovo assim na geladeira,
errado mesmo, porque a peãozada só comia carne de soja, frango de
soja, leite de soja, e por cima soja de laboratório. Não sei quem
foi o infeliz que inventou essa comida.
– Se
não inventassem alguma coisa, você estava morto há muito tempo.
– Não
podiam dar gosto? Se tem até cheiro, e o cheiro é bom, igualzinho
àqueles de quando eu era menino. Quem faz cheiro faz gosto, não
faz?
– No
que você trabalhava?
– Ih,
faz tempo. Mais de dez anos que ando desempregado, a última vez foi
quando vi o ovo. Companhia enorme de terraplenagem, enorme mesmo,
dava gosto de trabalhar para eles. Cada maquinona, seu, valia a pena
mesmo, comiam terra que era uma beleza, iam engolindo os morros, não
tinha montanha para elas. Dava gosto, dava mesmo, dirigir uma bichona
daquelas, tudo hidráulico, levinho, era só bater nas alavancas, ela
ia derrubando, arrasando, enchendo os caminhões de terra. Trabalhei
uns doze anos naquela maquinaria, dava até medo quando a gente ia
entrar no bichão, todo de ferro amarelo, monstrão de pás e
esteiras, ninguém podia com ele. Eu ficava manejando tudo, tudo
mesmo na minha mão, pensou como um máquina daquelas faz da gente um
cara poderoso, ninguém podia me desafiar, ninguém mesmo. No começo
tive medo, depois me acostumei, eu e ela, amigões, entrava e gritava
vamos comer morro, porque minha função era desbastar morros, nem
sei quantos botei abaixo, acho que uma vez nivelei um estado inteiro
ali por perto do Maranhão, conheceu o Maranhão? Amigo, que
terraplenagem aquela, durou um ano, trezentas máquinas pondo abaixo
montanhas de pedra, e enchendo cada vale que parecia buracão do
inferno. Tirava pedra, terra, mato daqui, jogava lá embaixo, o morro
descia, o buraco diminuía, até que tudo se igualava, ficava aquele
campão lindo, de terra vermelha, ou então se era terra branca
parecia uma praia sem fim. Não sei o que iam fazer naqueles
terrenos, falavam que iam construir cidades novas, outros que eram
para plantação, agora me diga, o senhor já ouviu falar de nivelar
terreno para fazer plantação? Eu nunca, nunca mesmo, acho muito sem
propósito, sabe o que meu chefe sempre dizia, ele era doido por
aquele trabalho, doido mesmo, a gente chegava lá, ele estava a
postos quando a gente saía, ele continuava, era de ferro. O sonho
dele era nivelar o Brasil inteiro, então, dizia ele, seria o país
mais plano do mundo, valia a pena gastar dinheiro numa terraplenagem
no país inteiro, porque então iriam economizar muito para fazer
estradas, estradas de ferro, pistas, o que se quisesse. Não sei não,
mas aquela companhia igualou muita terra por aí, se deixassem ela
mudaria este país. Me diga, diga mesmo, o senhor não acha que ia
ser melhor para o Brasil? Muita economia de asfalto, cimento, sem
todo esse sobe e desce, sem precisar aterros, pontes, viadutos mesmo,
não é? As pessoas se cansariam menos, as cidades todas no plano,
retinhas, sem ladeiras, quanta economia de energia, era o que dizia
meu chefe, eu concordava com ele, um sujeito positivo. Não acha
também? Veja, enfiamos uns dois ou três rios nos tubos, e olha que
um deles era bruto riozão, mas domamos o bicho, fizemos uma
cobertura bonita, toda de cimento, enorme, mas enorme mesmo, o
batelão ficou lá embaixo, a gente podia ouvir o barulhão pelos
respiradouros, parece que ficou bravo de prenderem ele daquele jeito.
Mas podia perder tanto espaço que existia em cima do rio? Era o que
me explicava meu chefe, nem devia ser só chefe, era homem para ser
patrão mesmo, dono daquela companhia toda, ele tinha cabeça, boa
cabeça, cuidava de tudo, direitinho, era um amor por aquelas
máquinas, empregado que não cuidasse direito da sua levava cada
uma, multa, suspensão, demissão, até mesmo pau, é isso, tinha lá
uns camaradas gringos que davam cada pau nos empregados.
Xi,
o homem desandou. Tudo por um ovo visto na geladeira dez anos atrás.
O que fazer para que desligue? Estou com fome, vou providenciar
comida, apanhar uma dessas latas que enchem o quarto. Vontade de uma
boa salada de palmito. Com tomate, alface, junto com um
churrasquinho.
Quero
dar uma espiada no quartinho, ver o barbeiro, tenho medo de que
comece a cheirar. Deve estar se decompondo com tal calor. O melhor
seria entregá-lo aos Colhedores Noturnos. O problema é explicar a
morte por faca, vão chamar os Civiltares, fazer a Perquisição
Necessária. E então.
Aquele
corpo me incomoda, queria retirá-lo depressa, ninguém gosta de
cadáver nas proximidades. Nem nas proximidades nem longe. Ainda mais
uma pessoa que a gente conhecia, com quem convivia, e a descobre
assassinada. Se bem que o barbeiro era um sujeito saliente,
desagradável.
O
que me deixa arrepiado, na verdade, não é o cadáver ali jogado. É
pensar que um desses homens é assassino. Não tem outra explicação.
Mas por que o barbeiro? Um homem aborrecido, apenas isso, só
perturbava com seus pedidos, ansioso por uma mordomia, queria mamar
em todas.
Todo
mundo quer, é a única alternativa de sobrevivência. Vivemos dentro
de uma charada, quem soluciona ganha o direito. Encontrar a forma de
rachar o Esquema. Descobrir uma brecha. Nada é permitido, tudo é
consentido. Foi a fórmula aplicada para que o país não estourasse.
Solução
de emergência, proclama. Vivemos nela há dez anos, menos ou mais,
não sei. Acabei como Adelaide, me isolando da contagem do tempo,
alheio aos seus limites. Tudo se dissolveu na desequilibrada soma de
dias e semanas, horas e meses. As barreiras foram estouradas.
De
repente me dou conta de que estou dentro de uma armadilha. Construída
com inteligência, ou acidental? Dificílimo de determinar. Com os
meios que têm em mãos, e o controle que exercem, eles podem ter
provocado essa fissão nas fronteiras convencionais do tempo.
Como
recurso para dissimular as barreiras físicas, concretas, que
ergueram em torno de nós. Os limites da cidade, zonas neutras
impostas entre o Urbano e os Acampamentos Paupérrimos. As fichas de
circulação que impedem de transitar, penetrar nos bairros da
redoma.
As
Bocas de Distrito que nos seguram. Sim, sim, tudo teve de ser
organizado a fim de a vida seguir normal, o caos não se instalar.
Que ideia eles fazem do caos? Gostaria de saber. Tenho de pensar
nisso, recompor a minha cabeça, talvez discutir com Tadeu Pereira, é
um homem lúcido.
Está
muito claro o objetivo. Eliminar a linha divisória que demarcava o
tempo e ao mesmo tempo nos impor balizas estreitas a fechar nosso
espaço físico. Aí é que estava a confusão, repousada em
sutileza. E explicava a divisão que permanecia em nossas cabeças,
incoerência obscura.
– Ei,
você não está prestando atenção.
– Estou
com fome.
– Ainda
não te contei o melhor.
– Conta
depois.
– Quero
te contar das barragens que ajudei a fazer. Lindo mesmo, fechamos
quase todos os rios deste país, fizemos cada lago que parecia mar
mesmo.
Estou
de costas, ele matraqueia. Saio da cozinha com salsichas num pão de
estranha coloração marrom, enganosamente macio. Cada vez que
mastigo sanduíches, minha ponte se desloca. Ainda bem que o gosto
não é dos piores e o cheiro é de pão fresco. Artificial, mas
gostoso.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum
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