A
preta Quitéria engendrou vários filhos. Os machos fugiram, foram
presos, tornaram a fugir — e antes da abolição já estavam meio
livres.
Sumiram-se.
As fêmeas, Luísa e Maria, agregavam-se à gente de meu avô. Maria,
a mais nova nascida forra, nunca deixou de ser escrava. E Joaquina,
produto dela, substituiu-a na cozinha até que, mortos os velhos, a
família não teve recurso para sustentá-la. Aí Joaquina se
libertou. E casou, diferençando-se das ascendentes. Luísa era
intratável e vagabunda. Em tempo de seca e fome chegava-se aos
antigos senhores, instalava-se na fazenda, resmungona, malcriada, a
discutir alto, a fomentar a desordem. Ao cabo de semanas arrumava os
picuás e entrava na pândega, ia gerar negrinhos, que desapareciam
comidos pela verminose ou oferecidos, como crias de gato. Parece que
só escaparam os dois recolhidos por meu pai.
A
moleca Maria tinha a natureza da mãe. E não podendo revelar-se,
lavava pratos e varria a casa em silêncio, morna, fechada, isenta de
camaradagens, esperando ganhar asas e voar. Realizou esse projeto.
O
moleque José, tortuoso, sutil, falava demais, ria constantemente,
suave e persuasivo, tentando harmonizar-se com todas as criaturas.
Repelido, baixava a cabeça. Voltava, expunha as suas pequenas
habilidades sem se ofender, jeitoso, humilde, os dentes à mostra.
Não era alegre. Os olhos brancos ocultavam-se, frios e assustados,
os beiços tremiam às vezes, mas isto se disfarçava numa careta
engraçada que amolecia a cólera das pessoas grandes.
E
José se escapulia, escorregava, brando e gelatinoso, das mãos que o
queriam agarrar. Apanhado na malandragem, mentia, inocente e
sem-vergonha. Juntava os indicadores em cruz, beijava-os: “Por Deus
do céu, pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, por esta
luz que nos alumia.” Franzino, magrinho, achatava-se. Uma
insignificante mancha trêmula.
Nunca
o vi chorar. Gemia, guinchava, pedia, soluçava infinitas promessas,
e os olhos permaneciam enxutos e duros. Enchia-me de inveja, desejava
conter as minhas lágrimas fáceis. Tomava-o por modelo. E, sendo-me
difícil copiar-lhe as ações, imitava-lhe a pronúncia, o que me
rendia desgosto. Esfriavam-me a ambição de melhorar e instruir-me,
forçavam-me a recuperar a fala natural.
Haviam
obrigado o moleque a tratar-me por senhor, não admitiam que me
reconhecesse indigno, me privasse voluntariamente daquele respeito
miúdo.
José,
insensível às minhas desvantagens, perseverava na obediência,
modesto, a proteger-me.
Íamos
com frequência ao sítio que meu pai cultivava perto da rua, para lá
do cemitério novo.
Debaixo
das árvores do aceiro, descansando sobre folhas secas, conservava-me
horas entorpecido, a olhar as fileiras de mandioca, as cercas,
periquitos que namoravam espigas amarelas. José vadiava nos ranchos
vizinhos.
Logo
ao sair de casa, dobrando a esquina do Cavalo Morto, reunia-se a um
lote de garotos. E o bando aumentava, era diante do muro de Seu Paulo
Honório um pelotão ruidoso, que enfeitava a areia, com flores de
mulungu. As mulheres da lavoura percebiam nas corolas encarnadas
formas indecentes, pisavam-nas furiosas, dirigiam insultos às
moitas. Os pirralhos ocultos gritavam, corriam pelo mato, espalhavam
no chão outras flores, vermelhas e peludas, ficavam de tocaia,
aperreando as mulheres. Montado no meu carneiro branco, espantava-me
da indignação delas, queria saber por que esmagavam com os pés
coisas tão bonitas. Achava tola a brincadeira e enjoava-me dos
meninos barulhentos. Certo dia um se aproximou de mim, puxou conversa
usando palavras misteriosas. José interveio:
— Cala
a boca. Ele não entende isso.
Entristeci,
humilhado por anunciarem a minha ignorância. Quis reclamar,
fingir-me esperto, mas desanimei, confessei interiormente que eles
procediam de modo singular. Afastei-me sério, livre de curiosidade.
O
meu carneiro branco morreu, os passeios ao sítio findaram.
José
conhecia luares, pessoas, bichos e plantas. Uma vez enganou-se.
Presumiu enxergar meu bisavô num cavaleiro encourado visto de longe:
— Seu
Ferreira de gibão, no cavalo de Seu Afro.
Discordei.
Meu bisavô só vestia couro no trabalho do campo. Na rua
apresentava-se de colarinho e gravata, à feira, à missa, às
eleições, ao júri. E não viajava em animal emprestado. Quando o
homem se avizinhou, notamos o equívoco — e isto me deu satisfação.
Senti o moleque próximo e falível. Eu julgava a ciência dele
instintiva e segura. Modifiquei o juízo e alimentei a esperança de,
com esforço, decorar nomes também, orientar-me em caminhos e
veredas.
Apesar
do erro, o prestígio de José não diminuiu. Convenci-me de que ele
se havia expressado bem e repeti com entusiasmo:
— Seu
Ferreira de gibão, no cavalo de Seu Afro.
Acabei
por dividir a frase em dois versos, que a princípio declamei e
depois cantei:
Seu
Ferreira de gibão,
No
cavalo de Seu Afro.
Minha
mãe se aborreceu, atirou-me os qualificativos ordinários. Estúpido,
idiota. Mordi os beiços, fui esconder-me no armazém, olhar o beco.
Mas, trepado na janela, as pernas caídas para fora, não esquecia o
disparate e monologava, batendo com os calcanhares no tijolo:
Seu
Ferreira de gibão,
No
cavalo de Seu Afro.
José
deu-me várias lições. E a mais valiosa marcou-me a carne e o
espírito. Lembro-me perfeitamente da cena. Era de noite, chovia, as
goteiras pingavam. Na sala de jantar meu pai arguia o pretinho, que
se justificava mal. Nenhum indício de tempestade e violência, pois
a culpa era leve e meu pai não estava zangado: contentar-se-ia com
algumas injúrias. Achando-se disposto a absolver, aceitava
facilmente as explicações. A um desconchavo do acusado, a voz
áspera se amaciava, um riso grosso estalava — e a calma se
restabelecia. Atravessávamos, porém, momentos difíceis: não
podíamos saber se ele ia abrandar ou enfurecer-se. E o nosso
procedimento o levava para um lado, para outro. Acertávamos ou
falhávamos como se jogássemos o cara-ou-cunho.
Se
os fregueses andavam direito na loja, obtínhamos generosidades
imprevistas; se não andavam, suportávamos rigor. Provavelmente é
assim em toda a parte, mas ali essas viravoltas se expunham com muita
clareza.
Naquela
noite José, como de costume, negou uma traquinada insignificante.
Apertado na inquirição, continuou a negar. Vieram provas, surgiu a
evidencia. O negro estava obtuso, não percebeu que devia soltar ao
menos uns pedaços de confissão e defender-se depois, jurar por
"esta luz, pelas chagas de Cristo, não reincidir. Perdeu o
ensejo — e a autoridade se arrenegou, não por causa da falta,
venial, mas pela teimosia, agravada talvez com a recordação de
fatos estranhos. Agora o infeliz precisava resignar-se ao castigo. E
resistia, procurava atenuar a raiva esmagadora. A infração inchava,
confundia-se com outras mais velhas, já perdoadas, e estas cresciam
também, tornavam-se crimes horríveis.
Quando
meu pai se tinha irado bastante, segurou o moleque, arrastou-o à
cozinha. Segui-os, curioso, excitado por uma viva sede de justiça.
Nenhuma simpatia ao companheiro desgraçado, que se agoniava no
pelourinho, aguardando a tortura. Nem compreendia que uma intervenção
moderada me seria proveitosa, originaria o reconhecimento de um
indivíduo superior a mim.
Conservei-me
perto da lei, desejando a execução da sentença rigorosa. Não me
afligiam receios, porque ninguém me acusava, ninguém me bulia a
consciência.
Não
distinguindo perigos, supunha que eles se haviam dissipado
inteiramente.
As
brasas no fogão cobriam-se de cinza, morriam sob chuviscos; a água
da bica salpicava o ladrilho escorregadio; a labareda fumacenta do
candeeiro oscilava. Num murmúrio, a criança beijava os dedos finos.
De repente o chicote lambeu-lhe as costas e uma grande atividade
animou-a. Pôs-se a girar, desviando-se dos golpes. E as palavras
afluíam num jorro:
— Por
esta luz, meu padrinho. Pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus
Cristo.
A
súplica lamurienta corria inútil, doloroso ganido de cachorro novo.
Muitas
vergastadas se perdiam, fustigavam as canelas do juiz transformado em
carrasco. Este largou o instrumento de suplício, agarrou a vítima
pelas orelhas, suspendeu-a e entrou a sacudi-la. Os gemidos cessaram.
O corpo mofino se desengonçava, a sombra dele ia e vinha na parede
tisnada, alcançava a telha, e os pés se agitavam no ar.
Aí
me veio a tentação de auxiliar meu pai. Não conseguiria prestar
serviço apreciável, mas estava certo de que José havia cometido
grave delito e resolvi colaborar na pena. Retirei uma acha curta do
feixe molhado, encostei-a de manso a uma das solas que se moviam por
cima da minha cabeça. Na verdade apenas toquei a pele do negrinho.
Não me arriscaria a magoá-lo: queria somente convencer-me de que
poderia fazer alguém padecer. O meu ato era a simples exteriorização
de um sentimento perverso, que a fraqueza limitava.
Se
a experiência não tivesse gorado, é possível que o instinto ruim
me tornasse um homem forte. Malogrou-se — e tomei rumo diferente.
Com
certeza José nada sentiu. Cobrei ânimo, cheguei-lhe novamente ao pé
o inofensivo pau de lenha. Nesse ponto ele berrou com desespero, a
dizer que eu o tinha ferido. Meu pai abandonou-o. E, vendo-me armado,
nem olhou o ferimento: levantou-me pelas orelhas e concluiu a punição
transferindo para mim todas as culpas do moleque. Fui obrigado a
participar do sofrimento alheio.
Graciliano
Ramos, in Infância
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