sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Emendo e comparo

Hoje em dia, verso isso: emendo e comparo. Todo amor não é uma espécie de comparação? E como é que o amor desponta. Minha Otacília, vou dizer. Bem que eu conheci Otacília foi tempos depois; depois se deu a selvagem desgraça, conforme o senhor ainda vai ouvir. Depois após. Mas o primeiro encontro meu com ela, desde já conto, ainda que esteja contando antes da ocasião. Agora não é que tudo está me subindo mais forte na lembrança? Pois foi. Assim que desta banda de cá a gente tinha padecido toda resma de reveses; e que soubemos que os judas também tinham atravessado o São Francisco; então nós passamos, viemos procurar o poder de Medeiro Vaz, única esperança que restava. Nos gerais. Ah, burití cresce e merece é nos gerais! Eu vinha com Diadorim, com Alaripe e com João Vaqueiro mais Jesualdo, e o Fafafa. Aos Buritis-Altos, digo ao senhor ― vereda acima ― até numa Fazenda Santa Catarina se chegar. A gente tinha ciência de que o dono era favorável do nosso lado, lá se devia de esperar por um recado. Fomos chegando de tardinha, noitinha já era, noite, noite fechada. Mas o dono não estava, não, só ia vir no seguinte, e sôr Amadeu a graça dele era. Quem acudiu e falou foi um velhozinho, já santificado de velho, só se apareceu no parapeito da varanda ― parece que estava receoso de nossa forma; não solicitou de se subir, nem mandou dar nada de comer, mas disse licença da gente dormir na rebaixa do engenho. Avô de Otacília esse velhinho era, se chamava Nhô Vô Anselmo. Mas, em tanto que ele falava, e mesmo com a confusão e os latidos de muitos cachorros, eu divulguei, qual que uma luz de candeia mal deixava, a doçura de uma moça, no enquadro da janela, lá dentro. Moça de carinha redonda, entre compridos cabelos. E, o que mais foi, foi um sorriso. Isso chegasse? As vezes chega, às vezes. Artes que morte e amor têm paragens demarcadas. No escuro. Mas senti! me senti. Aguas para fazerem minha sede. Que jurei em mim! a Nossa Senhora um dia em sonho ou sombra me aparecesse, podia ser assim ― aquela cabecinha, figurinha de rosto, em cima de alguma curva no ar, que não se via. Ah, a mocidade da gente reverte em pé o impossível de qualquer coisa! Otacília. O prêmio feito esse eu merecia?
Diadorim ― dirá o senhor! então, eu não notei viciice no modo dele me falar, me olhar, me querer-bem? Não, que não ― fio e digo. Há-de-o, outras coisas... O senhor duvida? Ara, mitilhas, o senhor é pessoa feliz, vou me rir... Era que ele gostava de mim com a alma; me entende? O Reinaldo. Diadorim, digo. Eh, ele sabia ser homem terrível. Suspa! O senhor viu onça! boca de lado e lado, raivável, pelos filhos? Viu rusgo de touro no alto campo, brabejando; cobra jararacussú emendando sete botes estalados; bando dôido de queixadas se passantes, dando febre no mato? E o senhor não viu o Reinaldo guerrear!... Essas coisas se acreditam. O demónio na rua, no meio do redemunho... Falo! Quem é que me pega de falar, quantas vezes quero?!
Assim ao feito quando logo que desapeamos no acampo do Hermógenes; e quando! Ah, lá era um cafarnaúm. Moxinife de más gentes, tudo na deslei da jagunçagem bargada. Se estavam entre o Furado-de-São-Roque e o Furado-do-Sapo, rebeira do Ribeirão da Macaúba, por fim da Mata da Jaíba. A lá chegamos num de-tardinha. As primeiras horas, conferi que era o inferno. Aí, com três dias, me acostumei. O que eu estava meio transtornado da viagem.
A ver o que eu contava! quem não conhecia o Reinaldo, ficou pronto conhecendo. Digo, Diadorim. Nós tínhamos em fim chegado, sem soberba nenhuma, contentes por topar com tanto número de companheiros em armas: de todos, todos eram garantia. Entramos no meio deles, misturados, para acocorar e prosear caçamos um pé de fôgo. Novidade nenhuma, o senhor sabe ― em roda de fogueira, toda conversa é miudinhos tempos. Algum explicava os combates com Zé Bebelo, nós o nosso: roteiro todo da viagem, aos poucos para se historiar. Mas Diadorim sendo tão galante moço, as feições finas caprichadas. Um ou dois, dos homens, não achavam nele jeito de macheza, ainda mais que pensavam que ele era novato. Assim loguinho, começaram, aí, gandaiados. Desses dois, um se chamava de alcunha o Fancho-Bode, tratantaz. O outro, um tribufú, se dizia Fulorêncio, veja o senhor. Mau par. A fumaça dos tições deu para a cara de Diadorim ― Fumacinha é do lado ― do delicado... ― o Fancho-Bode teatrou. Consoante falou soez, com soltura, com propósito na voz. A gente, quietos. Se vai lá aceitar rixa assim de graça? Mas o sujeito não queria pazear. Se levantou, e se mexeu de modo, fazendo xetas, mengando e castanhetando, numa dansa de furta-passo. Diadorim se esteve em pé, se arredou de perto da fogueira; vi e mais vi: ele apropriar espaços. Mas esse Fancho-Bode era abusado, vinha querer dar umbigada. E o outro, muito comparsa, lambuzante preto, estumou, assim como fingiu falsete, cantarolando pelo nariz:

Pra gaudêr, Gaudêncio
E aqui pra o Fulorêncio?...

Aquilo lufou! De rempe, tudo foi um ão e um cão, mas, o que havia de haver, eu já sabia... Oap!: o assoprado de um refugão, e Diadorim entrava de encontro no Fancho-Bode, arrumou mão nele, meteu um sopapo: ― um safano nas queixadas e uma sobarbada ― e calçou com o pé, se fez em fúria. Deu com o Fancho-Bode todo no chão, e já se curvou em cima! e o punhal parou ponta diantinho da goela do dito, bem encostado no gogó, da parte de riba, para se cravar deslizado com bom apôio, e o pico em pele, de belisco, para avisar do gosto de uma boa-morte; era só se soltar, que, pelo peso, um fato se dava. O fechabrir de olhos, e eu também tinha agarrado meu revólver. Arre, eu não queria presumir de prevenir ninguém, mais queria mesmo era matar, se carecesse. Acho que notaram. Ao que, em hora justa e certa, nunca tive medo. Notaram. Farejaram pressentindo! como cachorro sabe. Ninguém não se meteu, pois desapartar assim é perigoso. Aquele Fulorêncio instantâneo esbarrou com os acionados indecentes, me menos olhou uma vez, daí não quis me encarar mais. ― Coca, bronco! ― Diadorim mandou o Fancho se levantasse! que puxasse também da faca, viesse melhor se desempenhar! Mas o Fancho-Bode se riu, amistoso safado, como tudo tivesse constado só duma brincadeira! ― Oxente! Homem tu é, mano-velho, patrício! Estava escabreado. Dava nôjo, ele, com a cara suja de maus cabelos, que cresciam por todo lado. Guardei meu revólver, respeitavelmente. Aqueles dois homens não eram medrosos; só que não tinham os interesses de morrer tão cedo assim. Homem é rosto a rosto; jagunço também! é no quem-com-quem. E eles dois não estavam ali muito estimados. Comprazendo conosco, outros companheiros deram ar de amizade. E mesmo, por gracejo cordial, o Fulorêncio me perguntou! ― Mano Velho, me compra o que eu sonhei hoje? Divertindo, também, para o ar dei resposta! ― Só se for com dinheiro da mãe do jacaré...Todos riram. De mim não riram. O Fulorêncio riu também, mas riso de velho. Cá pensei, silencioso, silenciosinho! Um dia um de nós dois agora tem de comer o outro... Ou, se não, fica o assunto para os nossos netos, ou para os netos dos nossos filhos... Tudo em mais paz, me ofereceram: bebi da januária azulosa ― um gole me foi: cachaça muito nomeada. Aquela noite, dormi conseguintemente.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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