quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Cinquenta anos depois


Devo ter lido o livro O apanhador no campo de centeio do J. D. Salinger umas duas ou três vezes quando tinha pouco mais do que a idade do seu herói, Holden Caulfield. Fui procurá-lo agora para ler de novo e não encontrei — e foi melhor assim. Os livros que nos encantaram na juventude tendem a perder seu encanto com o tempo, e o que antes era mágica vira banalidade. Com o cinema acontece a mesma coisa e são poucos os filmes, como Sob o domínio do mal, que ficam cada vez mais inteligentes.
Mas no caso de O apanhador desiludir-se com ele 50 anos depois talvez faça parte da experiência da sua leitura. No sentido daquele enólogo francês contratado para orientar a plantação de vinhedos e instalar uma vinícola, com tudo para produzir um vinho igual ao francês na Califórnia e que no fim de seu trabalho disse: “Pronto, agora é só esperar 300 anos.” Se você, jovem, está recém-descobrindo o romance do Salinger, leia-o agora, depois espere 50 anos para ler de novo, e aí conversaremos.
Pois o livro é sobre o que todos nós fomos na adolescência, revoltados incompreendidos, nos achando melhores do que os adultos porque ainda não éramos ridículos como eles, e sobre a maior banalidade de todas, a protobanalidade que embala boa parte da arte humana: a perda da inocência da infância, a sua corrupção pela vida. Se o leitor também é um jovem, não identifica a banalidade, ou a toma como uma sacada e se encanta com ela. Cinquenta anos depois, a banalidade fica evidente e isto de certa forma redime o livro, que tinha outras qualidades além do seu apelo a angústias juvenis.
Lembro-me de ler que os tradutores sugeriram outro título em português, em vez da versão literal de The Catcher in the Rye: O sentinela do abismo. Seria perfeito. O apanhador no campo de centeio tentava evitar que as crianças deixassem seu território mágico e se precipitassem, por assim dizer, na vida adulta, onde nunca mais seriam inocentes ou felizes. Reler o livro 50 anos depois deve ser como endossar a sua banalidade com um testemunho. Estamos lendo do fundo do abismo, e damos fé.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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