domingo, 1 de dezembro de 2019

A morte e a morte de Quincas Berro D’água - VI


Tio Eduardo tinha voltado para o armazém, não podia abandoná-lo só com os empregados, uns calhordas. Tia Marocas prometera vir mais tarde para o velório, precisava passar em casa, deixara tudo ao deus-dará na pressa de saber as novidades. Leonardo, a conselho da própria Vanda, aproveitaria a tarde sem repartição para ir à companhia imobiliária, ultimar o negócio de um terreno a prazo que estavam comprando. Um dia, se Deus ajudasse, teriam sua casa própria.
Haviam estabelecido uma espécie de turnos de revezamento: Vanda e Marocas pela tarde, Leonardo e tio Eduardo pela noite. A ladeira do Tabuão não era lugar onde uma senhora pudesse ser vista à noite, ladeira de má fama, povoada de malandros e mulheres da vida. Na manhã seguinte, toda a família se reuniria para o enterro.
Foi assim que Vanda, à tarde, encontrou-se a sós com o cadáver do pai. Os ruídos de uma vida pobre e intensa, desenvolvendo-se pela ladeira, mal chegavam ao terceiro andar do cortiço onde o morto repousava após a canseira da mudança de roupa. Os homens da empresa funerária haviam feito bom trabalho, eram competentes e treinados. Como disse o santeiro, ao passar um instante para ver como as coisas se apresentavam, nem parecia o mesmo morto. Penteado, barbeado, vestido de negro, camisa alva e gravata, sapatos lustrosos, era realmente Joaquim Soares da Cunha quem descansava no caixão funerário – um caixão régio (constatou satisfeita Vanda), de alças douradas, com uns babados nas bordas. Haviam improvisado com tábuas e tripés de madeira uma espécie de mesa e nela elevava-se o esquife, nobre e severo. Duas velas enormes – círios de altar-mor, orgulhou-se Vanda – lançavam uma chama débil, pois a luz da Bahia entrava pela janela e enchia o quarto de claridade. Tanta luz do sol, tanta alegre claridade, pareceram a Vanda uma desconsideração para com a morte, faziam as velas inúteis, tiravam-lhe o brilho augusto. Por um momento pensou em apagá-las, medida de economia. Mas, como certamente a empresa cobraria a mesma coisa gastassem duas ou dez velas, decidiu fechar a janela e a penumbra fezse no quarto, saltaram as chamas bentas como línguas de fogo. Vanda sentou-se numa cadeira (empréstimo do santeiro), sentia-se satisfeita. Não a simples satisfação do dever filial cumprido, algo mais profundo.
Um suspiro de satisfação escapou-se-lhe do peito. Ajeitou os cabelos castanhos com as mãos, era como se houvesse finalmente domado Quincas, como se lhe houvesse de novo posto as rédeas, aquelas que ele arrancara um dia das mãos fortes de Otacília, rindo-lhe na cara. A sombra de um sorriso aflorou nos lábios de Vanda, que seriam belos e desejáveis não fosse certa rígida dureza a marcá-los. Sentia-se vingada de tudo quanto Quincas fizera a família sofrer, sobretudo a ela própria e a Otacília. Aquela humilhação de anos e anos. Dez anos levara Joaquim essa vida absurda. Rei dos vagabundos da Bahia, escreviam sobre ele nas colunas policiais das gazetas, tipo de rua citado em crônicas de literatos ávidos de fácil pitoresco, dez anos envergonhando a família, salpicando-a com a lama daquela inconfessável celebridade. O cachaceiro-mor de Salvador, o filósofo esfarrapado da rampa do Mercado, o senador das gafieiras, Quincas Berro Dágua, o vagabundo por excelência, eis como o tratavam nos jornais, onde por vezes sua sórdida fotografia era estampada. Meu Deus!, quanto pode uma filha sofrer no mundo quando o destino lhe reserva a cruz de um pai sem consciência de seus deveres.
Mas agora sentia-se contente: olhando o cadáver no caixão quase luxuoso, de roupa negra e mãos cruzadas no peito, numa atitude de devota compunção. As chamas das velas elevavam-se, faziam brilhar os sapatos novos. Tudo decente, menos o quarto, é claro. Um consolo para quem tanto se amofinara e sofrera. Vanda pensou que Otacília sentir-se-ia feliz no distante círculo do universo onde se encontrasse. Porque se impunha finalmente sua vontade, a filha devotada restaurara Joaquim Soares da Cunha, aquele bom, tímido e obediente esposo e pai: bastava levantar a voz e fechar o rosto para tê-lo cordato e conciliador. Ali estava, de mãos cruzadas sobre o peito. Para sempre desaparecera o vagabundo, o rei da gafieira, o patriarca da zona do baixo meretrício. Pena que ele estivesse morto e não pudesse ver-se ao espelho, não pudesse constatar a vitória da filha, da digna família ultrajada.
Quisera Vanda nessa hora de íntima satisfação, de pura vitória, ser generosa e boa. Esquecer os últimos dez anos, como se os homens competentes da funerária os houvessem purificado com o mesmo trapo molhado em sabão com que retiraram a sujeira do corpo de Quincas. Para recordar-se apenas da infância, da adolescência, o noivado, o casamento, e a figura mansa de Joaquim Soares da Cunha meio escondido numa cadeira de lona a ler os jornais, estremecendo quando a voz de Otacília o chamava, repreensiva:
Quincas!
Assim o apreciava, sentia ternura por ele, desse pai tinha saudades, com um pouco mais de esforço seria capaz de comover-se, de sentir-se órfã infeliz e desolada. O calor aumentava no quarto. Fechada a janela, não encontrava a brisa marinha por onde entrar. Tampouco a queria Vanda: mar, porto e brisa, as ladeiras subindo pela montanha, os ruídos da rua faziam parte daquela terminada existência de infame desvario. Ali deviam estar somente ela, o pai morto, o saudoso Joaquim Soares da Cunha e as lembranças mais queridas por ele deixadas. Arranca do fundo da memória cenas esquecidas. O pai a acompanhá-la a um circo de cavalinhos, armado na Ribeira por ocasião de uma festa do Bonfim. Talvez nunca o tivesse visto tão alegre, tamanho homem escarranchado em montaria de criança, a rir às gargalhadas, ele que tão raramente sorria. Recordava também a homenagem que amigos e colegas lhe prestaram, ao ser Joaquim promovido na Mesa de Rendas. A casa cheia de gente. Vanda era mocinha, começava a namorar. Nesse dia quem estourava de contentamento era Otacília, no meio do grupo formado na sala, com discursos, cerveja e uma caneta-tinteiro oferecida ao funcionário. Parecia ela a homenageada. Joaquim ouvia os discursos, apertava as mãos, recebia a caneta sem demonstrar entusiasmo. Como se aquilo o enfastiasse e não lhe sobrasse coragem para dizê-lo. Lembrava-se também da fisionomia do pai quando ela lhe comunicara a próxima visita de Leonardo, afinal resolvido a solicitar-lhe a mão. Abanara a cabeça, murmurando:
Pobre coitado...
Vanda não admitia críticas ao noivo:
Pobre coitado, por quê? É de boa família, está bem empregado, não é de bebedeiras e deboches...
Sei disso... sei disso... Estava pensando noutra coisa.
Era curioso: não se recordava de muitos pormenores ligados ao pai. Como se ele não participasse ativamente da vida da casa. Poderia passar horas a lembrar-se de Otacília, cenas, fatos, frases, acontecimentos onde a mãe estava presente. A verdade é que Joaquim só começara a contar em suas vidas quando, naquele dia absurdo, depois de ter tachado Leonardo de bestalhão, fitou a ela e a Otacília e soltou-lhes na cara, inesperadamente:
Jararacas!
E, com a maior tranquilidade desse mundo, como se estivesse a realizar o menor e mais banal dos atos, foi-se embora e não voltou.
Nisso, porém, não queria Vanda pensar. De novo regressou à infância, era ainda ali que encontrava mais precisa a figura de Joaquim. Por exemplo, quando ela, menina de cinco anos, de cabelos cacheados e choro fácil, tivera aquele febrão alarmante. Joaquim não abandonara o quarto, sentado junto ao leito da pequena enferma, a tomar-lhe as mãos, a dar-lhe os remédios. Era um bom pai e bom esposo. Com essa última lembrança, Vanda sentiu-se suficientemente comovida e – houvesse mais pessoas no velório – capaz de chorar um pouco, como é a obrigação de uma boa filha.
Fisionomia melancólica, fitou o cadáver. Sapatos lustrosos, onde brilhava a luz das velas, calça de vinco perfeito, paletó negro assentando, as mãos devotas cruzadas no peito. Pousou os olhos no rosto barbeado. E levou um choque, o primeiro. Viu o sorriso. Sorriso cínico, imoral, de quem se divertia. O sorriso não havia mudado, contra ele nada tinham obtido os especialistas da funerária. Também ela, Vanda, esquecera de recomendar-lhes, de pedir uma fisionomia mais a caráter, mais de acordo com a solenidade da morte. Continuara aquele sorriso de Quincas Berro Dágua e, diante desse sorriso de mofa e gozo, de que adiantavam sapatos novos – novos em folha, enquanto o pobre Leonardo tinha de mandar botar, pela segunda vez, meia-sola nos seus –, de que adiantavam roupa negra, camisa alva, barba feita, cabelo engomado, mãos postas em oração? Porque Quincas ria daquilo tudo, um riso que se ia ampliando, alargando, que aos poucos ressoava na pocilga imunda. Ria com os lábios e com os olhos, olhos a fitarem o monte de roupa suja e remendada, esquecida num canto pelos homens da funerária. O sorriso de Quincas Berro Dágua. E Vanda ouviu, as sílabas destacadas com nitidez insultante, no silêncio fúnebre:
Jararaca!
Assustou-se Vanda, seus olhos fuzilaram como os de Otacília mas seu rosto tornou-se pálido. Era a palavra que ele usava, como uma cusparada, quando, no início dessa loucura, buscavam, ela e Otacília, reconduzi-lo ao conforto da casa, aos hábitos estabelecidos, à perdida decência. Nem agora, morto e estirado num caixão, com velas aos pés, vestido de boas roupas, ele se entregava. Ria com a boca e com os olhos, não era de admirar se começasse a assoviar. E, além do mais, um dos polegares – o da mão esquerda – não estava devidamente cruzado sobre o outro, elevava-se no ar, anárquico e debochativo.
Jararaca! – disse de novo, e assoviou gaiatamente.
Vanda estremeceu na cadeira, passou a mão no rosto – será que estou enlouquecendo? –, sentiu faltar-lhe o ar, o calor fazia-se insuportável, sua cabeça rodava. Uma respiração ofegante na escada: tia Marocas, as banhas soltas, penetrava no quarto. Viu a sobrinha descomposta na cadeira, lívida, os olhos pregados na boca do morto.
Você está abatida, menina. Também com o calor que faz nesse cubículo..
Ampliou-se o sorriso canalha de Quincas ao enxergar o vulto monumental da irmã.
Vanda quis tapar os ouvidos, sabia, por experiência anterior, com que palavras ele amava definir Marocas, mas que adiantam mãos sobre as orelhas para conter voz de morto? Ouviu:
Saco de peidos!
Marocas, mais descansada da subida, sem olhar sequer o cadáver, escancarou a janela:
Botaram perfume nele? Está um cheiro de tontear.
Pela janela aberta, o ruído da rua entrou, múltiplo e alegre, a brisa do mar apagou as velas e veio beijar a face de Quincas, a claridade estendeu-se sobre ele, azul e festiva. Vitorioso sorriso nos lábios, Quincas ajeitou-se melhor no caixão.
Jorge Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro D’água

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