sábado, 14 de dezembro de 2019

A forma das coisas

Uma mulher branca pequena e frágil, com o cabelo penteado à Pompadour, veio sacolejando pelo corredor do vagão-restaurante e se enfiou num assento ao lado de uma janela. Anotou seu pedido e então olhou de soslaio por cima da mesa para um fuzileiro naval e uma garota com rosto em forma de coração. De um só golpe, percebeu um anel de ouro no dedo da garota e um cordão de tecido vermelho enrolado em seu cabelo, e decidiu que ela era vulgar; mentalmente, rotulou-a de noiva de guerra. Sorriu timidamente, convidando à conversa.
A garota sorriu de volta: “A senhora deu sorte de chegar tão cedo, porque isto aqui está lotado. Nós nem conseguimos almoçar, pois havia soldados comendo... russos, ou coisa parecida. Nossa, a senhora devia tê-los visto, pareciam Boris Karloff, juro!”. A voz dela soava como um apito de chaleira, o que fez a mulher limpar a garganta. “Sim, com certeza”, ela disse. “Antes desta viagem eu nunca sequer sonhei que houvesse tantos no mundo, eu me refiro aos soldados. A gente nunca percebe até entrar num trem. Eu me pergunto: de onde vêm todos eles?”
Dos comitês de recrutamento”, disse a garota, depois deu uma risadinha ridícula.
O marido dela corou, constrangido. “A senhora vai até o fim da linha?”
Presumivelmente, mas este trem é lento como... como...”
Melaço!”, exclamou a garota, e continuou, no mesmo fôlego: “Nossa, estou tão excitada, a senhora nem imagina. Passei o dia todo praticamente grudada na paisagem. Lá onde eu nasci, no Arkansas, é tudo meio achatado, então eu sinto um calafrio desde a ponta dos dedos do pé quando vejo essas montanhas”. E, virando-se para o marido: “Bem, você acha que estamos na Carolina?”.
Ele olhou para fora pela janela, onde o lusco-fusco se espessava na vidraça. Captando prontamente a luz azul e as corcovas das colinas, que se fundiam e ecoavam umas às outras. Apertando os olhos, ele encarou de novo o brilho do vagão-restaurante. “Deve ser a Virgínia”, arriscou, e deu de ombros.
De repente, do lado dos vagões de passageiros, um soldado veio cambaleando na direção deles e desabou como um trapo no lugar vazio à mesa. Era pequeno, e o uniforme se derramava sobre ele num amontoado de dobras. O rosto, magro e anguloso, contrastava palidamente com o do fuzileiro, e o cabelo preto à escovinha brilhava sob a luz como um gorro de pele de foca. Com olhos cansados estudando nebulosamente os três, como se separado deles por uma tela, ele tocou nervoso as duas divisas costuradas em sua manga.
A mulher, contrafeita, se deslocou e se apertou junto à janela. Depois de pensar um pouco, rotulou-o de bêbado, e, ao ver a garota franzir o nariz, soube que ela compartilhava o veredicto.
Enquanto o negro de roupa branca descarregava a bandeja, o cabo disse: “O que eu quero é café, um bule grande, e uma dose dupla de creme”.
A garota afundou o garfo no frango com creme. “Bem, você não acha um horror o que esse pessoal cobra pela comida?”
E então começou. A cabeça do cabo passou a bambolear em contorções curtas incontroláveis. Uma pausa indolente com a cabeça caída de forma grotesca para a frente; uma convulsão muscular sacudindo o pescoço para os lados. A boca esticada de maneira asquerosa e as veias do pescoço retesadas.
Oh, meu Deus”, gritou a garota, e a mulher deixou cair a faca de manteiga e automaticamente cobriu os olhos com uma mão suscetível. O fuzileiro olhou sem expressão por um momento, e então, recuperando-se depressa, sacou um maço de cigarros.
Ei, amigo”, disse, “acho melhor você pegar um.”
Por favor, obrigado... muito gentil”, murmurou o soldado, depois bateu o punho esbranquiçado na mesa. Os talheres estremeceram, a água se derramou dos copos. Um silêncio pairou no ar por um instante, e uma explosão de gargalhadas ecoou pelo vagão.
Então a garota, consciente da cortesia, esticou um cacho de cabelo atrás da orelha. A mulher ergueu os olhos e mordeu o lábio quando viu o cabo tentando acender o cigarro.
Aqui, permita-me”, ela se ofereceu.
Sua mão tremia tanto que o primeiro fósforo apagou. Quando a segunda tentativa atingiu o alvo, ela conseguiu dar um sorriso banal. Passado algum tempo, ele se acalmou. “Estou tão envergonhado... por favor, me desculpem.”
Ah, nós entendemos”, disse a mulher.
Entendemos perfeitamente.”
Doeu?”, perguntou a garota.
Não, não, não dói.”
Eu fiquei assustada porque pensei que doesse. Dá a impressão que dói. Imagino que é meio como um soluço, não é?” Sobressaltou-se, como se alguém a tivesse chutado.
O cabo passou o dedo pela borda da mesa e disse: “Eu estava ótimo até entrar no trem. Eles disseram que eu ficaria bem. Disseram: ‘Você está cem por cento, soldado’. Mas é a excitação, você saber que está nos Estados Unidos e livre e que a maldita espera acabou”. Esfregou o olho. “Desculpem”, disse.
O garçom começou a servir o café, e a mulher tentou ajudá-lo. Com um empurrão irritado ele afastou a mão dela. “Pode deixar, por favor. Eu sei como fazer!” Constrangida e confusa, ela se virou para a janela e viu seu rosto espelhado ali. O rosto era calmo, e isso a surpreendeu, porque ela sentia uma irrealidade desnorteante, como se oscilasse entre dois momentos de um sonho. Canalizando os pensamentos para outro lugar, ela acompanhou a solene viagem do garfo do fuzileiro do prato à boca. A garota agora comia muito vorazmente, mas a comida da mulher estava esfriando.
Então começou de novo, não de modo tão violento quanto antes. No clarão bruto do farol de um trem vindo em direção contrária o reflexo distorcido se embotou, e a mulher deu um suspiro.
Ele praguejava baixinho, e parecia mais que estava rezando. Então agarrou freneticamente os lados da cabeça, comprimindo-a com força.
Escute, amigo, é melhor você arranjar um médico”, sugeriu o fuzileiro.
A mulher estendeu a mão e a pousou no braço dele. “Há algo que eu possa fazer?”, disse.
O que eles costumavam fazer para parar isso era olhar nos meus olhos... enquanto estou olhando para os olhos de alguém, passa.”
Ela inclinou o rosto para perto do dele. “Isso”, disse ele, acalmando-se instantaneamente, “isso, muito bem. Você é um doce.”
Onde foi?”, disse ela.
Ele franziu o cenho e disse: “Houve muitos lugares... são meus nervos. Estão estraçalhados”.
E para onde você está indo agora?”
Para a Virgínia.”
E lá é sua casa, não é?”
É, é lá que fica minha casa.”
A mulher sentiu os dedos doerem e afrouxou o aperto repentinamente intenso no braço dele. “É lá que é sua casa, e você deve se lembrar que a outra não tem importância.”
Sabe de uma coisa?”, ele murmurou. “Eu te amo. Eu te amo porque você é muito tola e muito inocente e porque você nunca vai saber nada além do que vê nas fotografias. Eu te amo porque estamos na Virgínia e eu estou quase em casa.” Abruptamente a mulher desviou os olhos. Uma tensão ofendida impregnou o silêncio.
Então você acha que é só isso?”, disse ele. Inclinou-se sobre a mesa e passou preguiçosamente a mão no rosto. “Tem isso, mas também tem a dignidade. E quando acontece com pessoas que a gente sempre conheceu? Você acha que eu quero sentar a uma mesa com elas ou com alguém como você e deixá-las enjoadas? Acha que eu quero assustar uma criança como esta aqui e pôr ideias na cabeça dela sobre o homem dela! Estou esperando há meses, e eles me dizem que estou bem, mas na primeira vez...” Parou, e suas sobrancelhas se juntaram.
A mulher pôs furtivamente duas notas sobre sua conta e empurrou a cadeira para trás. “Agora você me deixaria passar, por favor?”, disse.
O cabo se levantou e ficou ali olhando para o prato intocado da mulher. “Coma, desgraçada”, disse. “Você tem de comer!” E então, sem olhar para trás, desapareceu na direção dos vagões de passageiros.
A mulher pagou o café.
Truman Capote, in 20 contos de Truman Capote

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