quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Verão

Ilustração: Darcy Penteado

Desse antigo verão que me alterou a vida restam ligeiros traços apenas.
E nem deles posso afirmar que efetivamente me recorde. O hábito me leva a criar um ambiente, imaginar fatos a que atribuo realidade. Sem dúvida as árvores se despojaram e enegreceram, o açude estancou, as porteiras dos currais se abriram, inúteis. É sempre assim. Contudo ignoro se as plantas murchas e negras foram vistas nessa época ou em secas posteriores, e guardo na memória um açude cheio, coberto de aves brancas e de flores. A respeito de currais há uma estranha omissão. Estavam na vizinhança, provavelmente, mas isto é conjectura. Talvez até o mínimo necessário para caracterizar a fazenda meio destruída não tenha sido observado depois. Certas coisas existem por derivação e associação; repetem-se, impõem-se — e, em letra de forma, tomam consistência, ganham raízes. Dificilmente pintaríamos um verão nordestino em que os ramos não estivessem pretos e as cacimbas vazias.
Reunimos elementos considerados indispensáveis, jogamos com eles, e se desprezamos alguns, o quadro parece incompleto.
O meu verão é incompleto. O que me deixou foi a lembrança de importantes modificações nas pessoas. De ordinário pachorrentas, azucrinaram-se como tanajuras, zonzas. Findaram as longas conversas no alpendre, as visitas, os risos sonoros, os negócios lentos; surgiram rostos sombrios e rumores abafados. Enorme calor, nuvens de poeira. E no calor e na poeira homens indo e vindo sem descanso, molhados de suor, aboiando monotonamente.
Pela primeira vez falaram-me no diabo. É possível que tenham falado antes, mas foi aí que fixei o nome deste espírito: sem conhecê-lo direito, soube que ele andava solto nos redemoinhos que varriam o pátio, misturado a folhas e garranchos.
Um dia faltou água em casa. Tive sede e recomendaram-me paciência. A carga de ancoretas chegaria logo. Tardou, a fonte era distante — e fiquei horas numa agonia, rondando o pote, com brasas na língua. Essa dor esquisita perturbou-me em excesso. Nos sofrimentos habituais eu percebia gestos desarrazoados, palavras coléricas. A minha vida era um extenso enleio que sobressaltos agitavam. Para bem dizer, eu flutuava, pequeno e leve. De repente, um choque, novos choques, estremecimentos dolorosos. Impossível queixar-me agora. Não me dirigiam ameaças, abrandavam, e as recusas apareciam quase doces. Na verdade não recusavam. Num minuto haveria muitos canecos de água.
Chorei, embalei-me nas consolações, e os minutos foram pingando, vagarosos.
A boca enxuta, os beiços gretados, os olhos turvos, queimaduras interiores.
Sono, preguiça — e estirei-me num colchão ardente. As pálpebras se alongavam, coriáceas, o líquido obsessor corria nas vozes que me acalentavam, umedecia-me a pele, esvaía-se de súbito. E em redor os objetos se deformavam, trêmulos. Veio a imobilidade, veio o esquecimento. Não sei quanto durou o suplício.
Vivia a surpreender-me. E as surpresas se multiplicavam. Amaro e José Baía, armados de facões, estariam enchendo cestos com pedaços de mandacaru?
Os sentidos me diziam que sim, mas isto discordava dos serviços comuns.
Tentava esclarecer-me, largava uma interrogação maluca. Não indagava o motivo de se encherem os cestos, perguntava se eles realmente se enchiam. Caso me confirmassem a observação, eu continuaria a importunar os empregados, inteirar-me-ia de que aquilo era alimento para os animais. Não me ligavam importância. Amaro fungava, resmungava, franzia a cara cabeluda; José Baía pilheriava. Por quê? Não era tão fácil asseverarem que estavam cortando mandacaru nos cestos? Eu necessitava uma autoridade, um apoio. Desconfiava da coisa próxima, vista, ouvida, pegada, mas em geral admitia sem esforço o que me contavam.
Aceitei, pois, o cavalo-do-cão, o bicho que o diabo monta quando faz estrepolias pelo mundo. Há outra espécie de cavalo-do-cão, um inseto negro, de asas grandes, barulhento. O que o diabo utilizava nas viagens devia ser como este, negro, barulhento e muito maior. Acreditei nele, dócil, porque o homônimo concreto lhe forneceu alguns caracteres, porque a voz da experiência o revelou, enfim porque nos redemoinhos que açoitavam a catinga pelada havia provavelmente um ser furioso, soprando, assobiando, torcendo paus e rebentando galhos.
Essa criatura de sonho e bagunça, um cavalo de asas, não me causou espanto.
Espanto, e enorme, senti ao enxergar meu pai abatido na sala, o gesto lento. Habituara-me a vê-lo grave, silencioso, acumulando energia para gritos medonhos. Os gritos vulgares perdiam-se; os dele ocasionavam movimentos singulares: as pessoas atingidas baixavam a cabeça, humildes, ou corriam a executar ordens. Eu era ainda muito novo para compreender que a fazenda lhe pertencia. Notava diferenças entre os indivíduos que se sentavam nas redes e os que se acocoravam no alpendre. O gibão de meu pai tinha diversos enfeites; no de Amaro havia numerosos buracos e remendos. As nossas roupas grosseiras pareciam-me luxuosas comparadas à chita de Sinha Leopoldina, à camisa de José Baía, sura, de algodão cru. Os caboclos se estazavam, suavam, prendiam arame farpado nas estacas. Meu pai vigiava-os, exigia que se mexessem desta ou daquela forma, e nunca estava satisfeito, reprovava tudo, com insultos e desconchavos. Permanente, essa birra tornava-se razoável e vantajosa: curvara espinhaços, retesara músculos, cavara na piçarra e na argila o açude que se cobrira de patos, mergulhões e flores de baronesa. Meu pai era terrivelmente poderoso, e essencialmente poderoso. Não me ocorria que o poder estivesse, fora dele, de repente o abandonasse, deixando-o fraco e normal, um gibão roto sobre a camisa curta.
Sentado junto às armas de fogo e aos instrumentos agrícolas, em desânimo profundo, as mãos inertes, pálido, o homem agreste murmurava uma confissão lamentosa à companheira. As nascentes secavam, o gado se finava no carrapato e na morrinha. Estranhei a morrinha e estranhei o carrapato, forças evidentemente maiores que as de meu pai. Não entendi o sussurro lastimoso, mas adivinhei que ia surgir transformação. A vila, uma loja e impotência e as lágrimas não nos comoviam. Hoje acho naturais as violências que o cegavam. Se ele estivesse embaixo, livre de ambições, ou em cima, na prosperidade, eu e o moleque José teríamos vivido em sossego. Mas no meio, receando cair, avançando a custo, perseguido pelo verão, arruinado pela epizootia, indeciso, obediente ao chefe político, à justiça e ao fisco, precisava desabafar, soltar a zanga concentrada. Aperreava o devedor e afligia-se temendo calotes. Venerava o credor e, pontual no pagamento, economizava com avareza.
Só não economizava pancadas e repreensões. Éramos repreendidos e batidos.
Graciliano Ramos, in Infância

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