sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Últimas palavras

Escrevo tateando letras. Experiência curiosa, pois não posso ler o que escrevi. Portanto, não escrevo para mim.
Para quem escrevo?
Escrevo para quem fui. Talvez aquela que deixei um dia persista ainda, em pé e parada e fúnebre, num desvão do tempo – numa curva, numa encruzilhada – e de alguma forma misteriosa consiga ler as linhas que aqui vou traçando, sem as ver.
Ludo, querida: sou feliz agora.
Cega, vejo melhor do que tu. Choro pela tua cegueira, pela tua infinita estupidez. Teria sido tão fácil abrires a porta, tão fácil saíres para a rua e abraçares a vida. Vejo-te a espreitar pelas janelas, aterrorizada, como uma criança que se debruça sobre a cama, na expectativa de monstros.
Monstros, mostra-me os monstros: essas pessoas nas ruas. A minha gente.
Lamento tanto o tanto que perdeste.
Lamento tanto.
Mas não é idêntica a ti a infeliz humanidade?
José Eduardo Agualusa, in Teoria geral do esquecimento

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