terça-feira, 26 de novembro de 2019

Sartre e Huston


Em outubro de 1959, Jean-Paul Sartre passou vários dias no castelo de John Huston, na Irlanda, para tratar do roteiro sobre Freud que Huston lhe encomendara. O roteiro, que chegou a ser publicado como livro, daria um filme de sete horas. E quando Huston pediu para Sartre reescrevê-lo, ficou ainda mais longo. Por isso conversariam. Infelizmente, não havia nem uma câmera nem um gravador por perto, naqueles brumosos dias de outono irlandês. Mas tanto Sartre quanto Huston escreveram a respeito do encontro. Ou desencontro. Numa carta mandada do castelo para Simone de Beauvoir, Sartre diz que a Irlanda parece um país agonizante. Todos emigraram para a América, deixando para trás uma paisagem “pré-lunar”. E é assim que Sartre descreve a paisagem interior de “mon boss, le grand Huston”. Ruínas, casas abandonadas, uma terra desolada com vestígios de presença humana, mas da qual o homem emigrou. “Não sei para onde”, escreve Sartre. Huston não é exatamente triste. É vazio, salvo nos seus momentos de vaidade infantil quando veste seu smoking vermelho. E é impossível reter sua atenção por mais de cinco minutos. Um dia, falando sobre Freud, Huston revela a Sartre que no seu inconsciente não existe nada. “E o tom indicava o sentido ‘mais nada’, nem mesmo velhos desejos inalcançados”, diz Sartre. “Une grosse lacune.”
Já Huston escreveria, nas suas memórias, que nunca tinha conhecido alguém mais teimoso e categórico do que Sartre. “É impossível conversar com ele. É impossível interrompê-lo. Aconteceu uma vez que, exausto com o esforço, eu saí da sala por instantes. O som da voz dele me acompanhou, e quando voltei ele continuava falando. Não tinha se dado conta da minha ausência.”
Huston fez seu filme sobre Freud, mas não com o script de Sartre. E jamais saberemos o que realmente aconteceu dentro daquele castelo úmido, entre dois ícones irreconciliáveis do século. Une grosse lacune, sem dúvida.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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