sábado, 23 de novembro de 2019

Santos que tenho devoção

Estendeu-me a mão e analisei que esta se casava perfeitamente com sua voz, formosa e cheia, sábia e bondosa. Ela sorriu irônica enquanto eu lhe beijava a mão.
E, no último instante, voltou-se de novo para mim e disse:
Quero dizer-lhe mais uma palavra a propósito de Goethe. O que lhe aconteceu em relação a Goethe, de quem não pode suportar certas representações, acontece comigo em relação aos santos.
Aos santos? Você é tão religiosa assim?
Não, não sou religiosa, infelizmente, mas já fui noutra época e mais tarde voltarei a ser. Agora não tenho tempo para isso.
Não tem tempo? É preciso tempo para ser religioso?
Claro que sim. Para sermos religiosos, é preciso tempo, muito tempo. Ter independência de tempo! Não se pode ser formalmente religiosa e viver ao mesmo tempo na realidade e levar as coisas a sério: o tempo, o dinheiro, o bar Odeon e tudo o mais.
Compreendo. Mas o que foi que disse a propósito dos santos?
Bem, há muitos santos pelos quais tenho devoção: Santo Estêvão, São Francisco e outros. Às vezes vejo imagens deles e também do Salvador e da Virgem Santíssima, imagens tão piegas, tão falsas e estúpidas que não posso suportar, como lhe aconteceu com a gravura de Goethe. Quando vejo uma imagem tão melosa e apalermada do Salvador ou do Santo de Assis, que os outros acham tão devota e edificante, considero-a um insulto ao verdadeiro Salvador e penso: Ah! Ele viveu e sofreu tão terrivelmente para que as pessoas se contentem com uma estampa tão idiota? Apesar disso, sei também que a imagem que faço do Salvador ou de São Francisco não passa de uma imagem humana que não alcança nem de leve a imagem original, e que o Salvador por sua vez acharia a imagem interior que faço d'Ele, tão estúpida e insuficiente quanto acho aquelas estampas medíocres. Estou-lhe dizendo isto, não pata lhe dar razão por seu mau humor e sua fúria contra o retrato de Goethe; não, nisso você não tem razão. Digo-lhe simplesmente para demonstrar-lhe que posso compreendê-lo Vocês, os artistas e os eruditos, têm coisas singulares no miolo, mas no fundo não passam de pessoas iguais as outras, e nós também temos nossos sonhos e fantasias na cabeça. Também notei, ilustre senhor, que teve certa vacilação em me contar sua história sobre Goethe, que teve de esforçar-se para compartilhar suas ideias com uma moça simples como eu. Por isso quis demonstrar-lhe que não precisava esforçar-se tanto. Compreendo-o perfeitamente. Bem, já disse o que queria e agora você vai para a cama. Ela se foi e uma velha criada subiu comigo dois lances de escada. Primeiro perguntou-me onde estava minha bagagem e quando se inteirou de que eu não trazia nenhuma, tive de Pagar-lhe o pouso adiantado. Depois levou-me por uma escavelha e escura até um quarto e me deixou só. Ali havia uma cama de madeira estreita e dura, e da parede pendiam uma espada e um cromo de Garibaldi, além de uma coroa de flores murchas de alguma festa de associação. Eu teria dado tudo por um pijama. Mas ao menos havia água e uma pequena toalha, podia lavar-me; depois meti-me vestido na cama deixei a luz acesa e tive tempo para refletir. Então acertei contas com Goethe. Fora esplêndido que me visitasse em sonhos E aquela maravilhosa jovem, se pelo menos eu lhe soubesse o nome! De repente uma pessoa, uma pessoa viva percute a campânula de cristal da minha apatia e me estende a mão, uma mão boa, bela, cálida! De repente, voltam a surgir coisas que me afetam, nas quais posso pensar com alegria, com preocupação, com interesse! De repente, uma porta que se abre e por ela entra a vida para mim! Talvez possa voltar a viver, talvez possa voltar a ser gente. Minha alma, que havia tombado adormecida no frio e quase se enregela, respira de novo e volta a bater sonolenta as pequenas asas débeis. Goethe estivera comigo. Uma jovem me animara a comer, a beber e a dormir, se mostrara amável comigo, me havia sorrido e me chamara de criança tola. E aquela maravilhosa amiga me havia falado também sobre os santos e me mostrara que até em minha prodigiosa esquisitice eu não estava só, nem era incompreendido, nem era uma enfermiça exceção, mas que tinha irmãos que me compreendiam. Voltaria a vê-la? Com certeza! Podia confiar nela: “Palavra é palavra”.
Hermann Hesse, in O lobo da estepe

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