sábado, 9 de novembro de 2019

Os clarins da alvorada

Ora bem, senhores; esse oscilante resto do passado, essa mesquinha ruína, essa espécie de mendigo, levou a buzina à boca, soprou de rijo no metal, apelidou a gente, a cidade e o campo, tocou alarma, e toda a terra, ao perto e ao longe, acordou, respondendo. Por essa garganta, em que as cordas vocais devem ter estalado com os anos, pelo instrumento fendido e rechinante dessa traqueia gasta por esse tórax, onde já não borbulham paixões, mas gelam cinzas extintas, — que fôlego misterioso lhe invadiu o seio, lhe dilata o colo, lhe rebenta a boca, lhe enche as roscas do antigo bronze esverdeado, arrancando-lhe esses sons possantes de trombeta, sons desses, a que as almas acorrem, a que as vontades se decidem, a que os corações se arremessam impetuosos, a que se alvoroça a redondeza, buscando nos céus donde vem o clangoroso madrugar da vida?
Não seria, de certo, nem o hálito de um Titão, quanto mais o anélito morrediço de um velhinho, que o peso dos dias averga para a terra, e a que a ferrugem da idade comeu a ressonância da voz.
É o sopro do Senhor, o vento que acorda as águas, agita os oceanos, transporta as areias do deserto, move os baixios das costas, desanuvia ou escurece os horizontes. Só ele poderia desencadear, numa atmosfera de calmaria morta, de inveterada imobilidade, esta correnteza violenta, que sussurra como o tropel de exércitos em marcha, e retumba como o trovejar de cataratas despenhosas.
Escutai o rumor que engrossa e se avizinha. Diríeis que embocou pelas grotas da antiga Vila Rica, pelas velhas galerias abandonadas, e traz o eco das jazidas que se reanimam, o canto dos garimpeiros ao coruscar do oiro nas pepitas do torrão revolvido.
Diríeis que passou pelas bocas do Morro Velho, que se encostou aos vãos hiantes das suas escavações habitadas pelo murmurinho dos mineradores, e hauriu daquelas profundezas os segredos cativos, há séculos de séculos, nas entranhas da terra, para lhe semear deles, e lhe fecundar com eles a superfície cansada.
Diríeis que se espraiou nas chãs de Belo Horizonte, e ali se carregou do bulício festival dos espaços, da orquestra das cores do infinito, das emanações do éter remoto, onde giram os mundos, e vem com a aragem livre das esplanadas, com os sussurros da esperança nos longes do céu.
Diríeis que saiu da virgindade e do silêncio da mata mineira, embebido no rugir da consciência das coisas, testemunha acorrentada e impaciente das misérias do homem.
Diríeis, enfim, que aqui, neste centro de trabalho, nas indústrias de Juiz de Fora, essa torrente de energia em vibração intensa encontrou o seu órgão, o boqueirão, por onde resfolega, por onde ventaneia, por onde atroa, por onde se sente que Minas respira, que Minas vive, que Minas desperta, que Minas se levanta, Minas, a que, onde esteja, leva consigo o peã irresistível, o hino da vitória.
Donde surgiu esta comoção do ambiente? Donde, o aeremoto benfazejo? De uma palavra dita. De uma palavra dita, senhores, de um Fiat, se operou a criação toda. De uma palavra anunciada, um Surrexit, emergiu o mundo cristão. De uma palavra pregada, Reconstrução, vai surgir o futuro brasileiro. Reconstrução pela resistência. Reconstrução pela verdade. Reconstrução pela justiça. Reconstrução pela lei. Reconstrução pela moralidade. Reconstrução pelo civismo. Reconstrução pela fé, origem de todas as coisas, base de todas as reconstruções.
Vai surgir, disse eu. Surgirá, de feito, se o quiserdes. A revolução moral de 1910 hibernou nove anos na vossa mágoa, na vossa decepção, na vossa saudade. Não deixeis hibernar, a que se começa a pronunciar em 1919. Depende só de que vos não esqueçais do exemplo dado, da experiência adquirida.
O “velho”, o “velhinho” toca o termo da sua carreira. Breve terá livrado ele da sua presença odiosa os ostracistas do regímen, que lhe pagou a criação com a proscrição.
Mas, por um que vai, milhares doutros aí se acham para embocar os clarins de alvorada.
Rui Barbosa, in Antologia

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