segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Direito e liberdade

A cultura jurídica estabelece um círculo de preservação admirável, nestes períodos retrocessivos de indiferença, medo e sicofantismo, contra a infecção reinante. O trato usual do direito, o hábito do seu estudo, a influência penetrante da sua assimilação, nos acostumam a viver na razão, na lógica, na equidade, na moral, nos ensinam e predispõem a desprezar a força. Quando esta se apodera de uma sociedade, e, sob a pressão do seu contacto, a desmedula, a esvazia, a consome, a prostitui, a cadaveriza, cobrindo-a de vermes, as associações do gênero da vossa abrem, aos refratários, um refúgio abençoado. E, se um dia, após as longas tribulações desse gênero de tifismo, a coletividade em perigo emerge, afinal, desmorrendo, recobra a consciência de si mesma, convalesce na inteligência, na energia, no asseio, na honra, então nestes centros de reação persistente é que ela vem encontrar o tabernáculo das tradições da sua dignidade.
Outras não devem ser as afinidades, que aproximam do meu o vosso espírito, e embebem a solenidade que nos une deste alvoroço, desta efusão, deste suave calor reconfortante. Vinte anos há que me eu mato, clamando aos meus concidadãos contra a imoralidade e a baixeza da força, apostolando-lhes a nobreza e a santidade da lei. Toda a existência do nosso regímen se tem consumido nesse incessante conflito entre o princípio do bem e o do mal, com a prevalência, por derradeiro, do princípio do mal sobre o do bem. O meu papel, nesta fase histórica, espelha, dia a dia, esta luta. Outra coisa não sou eu, se alguma coisa tenho sido, senão o mais irreconciliável inimigo do governo do mundo pela violência, o mais fervoroso predicante do governo do homem pelas leis.
Se de algum modo mereci a fortuna da vossa eleição, de certo não foi por este. Os frutos da minha vida são escassos e tristes, bem que os seus ideais tenham sido grandes e belos. Muito é o bem a que tenho aspirado; mas o colhido, muito pouco. Não será, logo, pelo acervo dos resultados, que me teria feito digno do ingresso ao vosso consórcio. O que eu, aos vossos olhos, realmente valer, só se explicará, já se vê, pela excelência das convicções, que têm moldado o caráter da minha passagem por entre os meus contemporâneos, e determinaram no meio deles a minha posição atual.
Duas profissões tenho amado sobre todas: a imprensa e a advocacia. Numa e noutra me votei sempre à liberdade e ao direito. Nem numa nem noutra conheci jamais interesses, ou fiz distinção de amigos a inimigos, toda vez que se tratava de servir ao direito, ou à liberdade.
Rui Barbosa, in Antologia

Nenhum comentário:

Postar um comentário