A
cultura jurídica estabelece um círculo de preservação admirável,
nestes períodos retrocessivos de indiferença, medo e sicofantismo,
contra a infecção reinante. O trato usual do direito, o hábito do
seu estudo, a influência penetrante da sua assimilação, nos
acostumam a viver na razão, na lógica, na equidade, na moral, nos
ensinam e predispõem a desprezar a força. Quando esta se apodera de
uma sociedade, e, sob a pressão do seu contacto, a desmedula, a
esvazia, a consome, a prostitui, a cadaveriza, cobrindo-a de vermes,
as associações do gênero da vossa abrem, aos refratários, um
refúgio abençoado. E, se um dia, após as longas tribulações
desse gênero de tifismo, a coletividade em perigo emerge, afinal,
desmorrendo, recobra a consciência de si mesma, convalesce na
inteligência, na energia, no asseio, na honra, então nestes centros
de reação persistente é que ela vem encontrar o tabernáculo das
tradições da sua dignidade.
Outras
não devem ser as afinidades, que aproximam do meu o vosso espírito,
e embebem a solenidade que nos une deste alvoroço, desta efusão,
deste suave calor reconfortante. Vinte anos há que me eu mato,
clamando aos meus concidadãos contra a imoralidade e a baixeza da
força, apostolando-lhes a nobreza e a santidade da lei. Toda a
existência do nosso regímen se tem consumido nesse incessante
conflito entre o princípio do bem e o do mal, com a prevalência,
por derradeiro, do princípio do mal sobre o do bem. O meu papel,
nesta fase histórica, espelha, dia a dia, esta luta. Outra coisa não
sou eu, se alguma coisa tenho sido, senão o mais irreconciliável
inimigo do governo do mundo pela violência, o mais fervoroso
predicante do governo do homem pelas leis.
Se
de algum modo mereci a fortuna da vossa eleição, de certo não foi
por este. Os frutos da minha vida são escassos e tristes, bem que os
seus ideais tenham sido grandes e belos. Muito é o bem a que tenho
aspirado; mas o colhido, muito pouco. Não será, logo, pelo acervo
dos resultados, que me teria feito digno do ingresso ao vosso
consórcio. O que eu, aos vossos olhos, realmente valer, só se
explicará, já se vê, pela excelência das convicções, que têm
moldado o caráter da minha passagem por entre os meus
contemporâneos, e determinaram no meio deles a minha posição
atual.
Duas
profissões tenho amado sobre todas: a imprensa e a advocacia. Numa e
noutra me votei sempre à liberdade e ao direito. Nem numa nem noutra
conheci jamais interesses, ou fiz distinção de amigos a inimigos,
toda vez que se tratava de servir ao direito, ou à liberdade.
Rui
Barbosa, in Antologia
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