O
pai virou-se para o círculo de homens:
— É
duro quando alguém tem que fazer como nós. Nós tinha a nossa
fazendinha própria. Não andava por aí com uma mão na frente e
outra atrás. Esses diabo desses trator acabaram com tudo.
Um
jovem alto e magro, de sobrancelhas amarelecidas pela ação do sol,
ergueu vagarosamente a cabeça.
— Cês
eram meeiros? — perguntou.
— É.
Antes, a terra era só da gente.
O
jovem tornou a olhar em frente.
— Que
nem nós — disse.
— Felizmente
já não vai durar muito — disse o pai. — A gente vai pro Oeste.
Ali tem muito trabalho e, quem sabe?, podemo até arrumar um
pedacinho de terra outra vez, com água e tudo.
Num
canto da varanda se encontrava um homem esfarrapado. De seu casaco
preto pendiam as tiras do pano rasgado, e os joelhos de suas calças
estavam completamente gastos. Tinha o rosto negro da sujeira e
sulcado por onde o suor correra. Espichou a cabeça em direção ao
pai.
— Então
vocês devem ter economizado um bocado.
— Não,
a gente não conseguiu economizar dinheiro nenhum — disse o pai. —
Mas a nossa família é grande e todos podem trabalhar. E lá no
Oeste, eles pagam bons salários. A gente economiza e então compra
um pedaço de terra outra vez.
O
homem esfarrapado encarou o pai e depois riu, e seu riso atingiu a
tonalidade de um relincho prolongado. O círculo de faces virou-se
para o homem que ria. O relincho degenerou num acesso de tosse. Os
olhos do homem estavam vermelhos e lacrimejavam quando, afinal, ele
controlou seus espasmos.
— Vocês
vão... vocês vão pro Oeste? Ó Deus do céu! — Começou a rir
novamente. — Vão pro Oeste... bons salários, hem?... Deus do céu!
— Parou e acrescentou em tom irônico: — Colher laranjas, não é?
E pêssegos, não é?
O
pai falou cheio de dignidade:
— A
gente pega o serviço que tiver. E lá tem serviço à beça...
O
homem esfarrapado relinchou com mais discrição.
Tom
irritou-se:
— Que
é que você acha de tão engraçado nisso?
O
homem esfarrapado calou a boca e olhou carrancudo para as tábuas do
piso da varanda:
— Aposto
que vocês todos vão pra Califórnia — disse, por fim.
— Pois
eu já lhe disse isso uma vez? — falou o pai.
O
esfarrapado disse lentamente:
— Eu...
eu estou justamente voltando de lá. Passei lá algum tempo.
Todos
os rostos dirigiram-se a ele. Os homens não se mexiam. O cicio da
lamparina degenerou num suspiro, e o dono do acampamento deixou
pousar os pés dianteiros de sua cadeira no chão, ergueu-se e
bombeou a lamparina, até que o cicio tornou a se fortalecer,
vibrando de novo, agudo. Sentou-se de novo, mas não a recostou mais
à parede. O esfarrapado tornou a falar:
— Voltei
para morrer de fome. Prefiro morrer de fome o mais rápido possível.
— Mas
que diabo você tá dizendo, afinal de contas? — disse o Pai. —
Eu tenho um papel que diz que eles pagam bons salários e li no
jornal que eles tão precisando de gente pra fazer a colheita.
— Vocês
não têm mais a casa, se quisesse voltar?
— Não
— disse o pai. — O trator derrubou tudo. Expulsaram a gente.
— Então
vocês não voltava de jeito nenhum pra casa?
— É
claro que não.
— Então
não adianta eu desencorajar vocês.
— Nem
vai conseguir. Pois se eu vi esse papel que dizia assim que eles
precisava de gente pras colheita. Se eles não precisassem, pra que
gastar tanto dinheiro com os impressos? Não iam nem espalhar essa
papelada por aí se não precisassem de gente.
— Bom,
não adianta eu dizer nada.
O
pai disse, colérico:
— Agora
que já começou a falar besteira, não vai se calar, não. Eu vi, eu
mesmo vi esse papel impresso, ouviu? Tava lá direitinho: “Precisa-se
de gente.” E você aí rindo e dizendo que é mentira. Quem é que
tá mentindo, afinal de contas?
O
esfarrapado olhou bem nos olhos irritados do pai. Parecia triste.
— O
papel disse a verdade — falou. — Eles precisam mesmo de gente.
— Então
por que é que você anda rindo tanto?
— É
porque vocês não sabe que espécie de gente eles precisam.
— Como,
que espécie de gente?
O
esfarrapado tomou uma decisão:
— Escute
aqui — disse. — Quanta gente o papel diz que eles precisam?
— Oitocentos,
e num lugar só.
— É
um papel cor de laranja, né?
— É,
por quê?
— Tem
o nome do camarada... fulano de tal... empreiteiro?
O
pai meteu a mão no bolso e retirou o impresso dobrado.
— Isso
mesmo — disse.
— Como
é que você sabia?
— Olha
aqui — falou o esfarrapado. — Esse homem diz que precisa de
oitocentas pessoas. Ele manda imprimir cinco mil desses papelzinhos,
e umas vinte mil pessoas leem. Aí vão pra lá pelo menos umas duas,
três mil pessoas, por causa desses papéis. Pessoas que já nem
sabem onde têm a cabeça de tanta preocupação.
— Isso
não tem sentido! — clamou o pai.
— Vai
fazer sentido quando falarem com o sujeito que mandou distribuir
esses papéis. Vocês vão ver ele, e também os outros que trabalham
pra ele. Vocês vão pernoitar nas valas das estradas, junto com
outras cinquenta famílias mais. E ele vai procurar descobrir se
vocês têm ainda alguma comida. E quando vocês não tiverem mais
nada pra comer, ele vai perguntar: querem trabalhar? E vocês
respondem: queremos, sim senhor. Que bom se o senhor arrumasse
trabalho pra gente! E ele diz: acho que posso arranjar alguma coisa
pra vocês. E vocês perguntam: quando podemos começar? E ele vai
dizer a você pra onde devem ir, e quando, e depois ele vai embora.
Precisa talvez de umas duzentas pessoas, mas fala com quinhentas,
pelo menos, que passam a notícia adiante, e quando você chegar no
lugar marcado já encontra ali mais de mil pessoas. Aí esse sujeito
que falou com você diz: eu pago vinte cents a hora. E aí pelo
menos metade das pessoas vai embora. Mas ainda ficam outros
quinhentos que tão morrendo de fome e que querem trabalhar nem que
seja pra poder comprar pão. E esse sujeito tem um contrato com o
dono da fazenda que diz que essa gente toda vai trabalhar na colheita
de pêssegos ou nos algodoal. Compreende agora? Quanto mais gente
esfomeada ele arranja, menos precisa pagar como salário. E ele
prefere gente que tem filhos, porque aí... ora, não quero aumentar
a desilusão de vocês. — O círculo de faces encarou-o com frieza.
Os olhos mediam suas palavras. O esfarrapado ficou constrangido. —
Eu diss’que não valia a pena dizer essas coisas e acabei dizendo.
Vocês têm que continuar a viagem, tá certo. Não podem voltar
mais. — O silêncio pendia sobre a varanda. A lamparina ciciava e
uma nuvem de mosquitos dançava incessantemente em torno da luz. O
esfarrapado continuava nervoso. — Vou dizer a vocês o que devem
fazer quando aquele sujeito vier e disser que tem trabalho para
vocês. Perguntem a ele quanto paga. Digam pra ele dar por escrito
quanto vai pagar. Digam isso pra ele. Se não fizerem isso, vão ser
levados pelo papo-furado dele.
O
dono inclinou-se na sua cadeira para ver melhor o esfarrapado coberto
de sujeira. Coçou a pele entre os cabelos grisalhos do peito e disse
com frieza:
— Escuta,
cê não é um desses agitadores que andam por aí, hem? Um desses
que arranjam encrencas para os trabalhadores?
E
o esfarrapado clamou:
— Eu?
Você tá maluco!
— É
porque andam muitos desses por aqui — disse o dono. — Só vivem
provocando ódio. Faz o pessoal ficar maluco. Vivem metendo o bedelho
no que não lhes diz respeito. Um dia vão ser todos enforcados,
esses derrotistas. Ou então vamo expulsar eles do país, é isso! Se
um homem quiser trabalhar... bem. Se não quiser, que vá pro
inferno. Mas não venha provocar encrencas.
O
esfarrapado empertigou-se:
— Bom,
eu só queria avisar a vocês, pessoal. Agora já sabem como é —
disse. — A mim me custou um ano inteiro saber disso tudo. Me custou
a vida da mulher e de dois filhos. Mas vocês não querem acreditar.
Não devia dizer nada, é o que é. Eu também não quis acreditar
quando alguém me disse isso. Não, não, vocês não podem
acreditar! Quando as crianças estavam deitadas na tenda de barriga
inchada, só pele e osso, e tremiam e choravam que nem cachorrinhos,
eu saí feito louco pra arrumar trabalho, nem que fosse pra ganhar
uma miséria. Não queria salário, não queria dinheiro! — gritou.
— Queria era só um pouquinho de leite, um punhado de farinha, uma
colherada de banha! Meu Deus!... Depois veio o médico-legista. As
crianças morreram do coração, ele disse. Escreveu isso num papel
que trouxe. Tremiam, isso sim, e tinham a barriga inchada que nem
bexiga de porco.
Os
homens em volta estavam silenciosos, bocas entreabertas. E sua
respiração saía opressa. Escutavam.
O
esfarrapado olhou em volta, depois virou as costas ao grupo e
caminhou rapidamente até sumir na escuridão. A escuridão tragou-o,
mas seus passos arrastados por muito tempo ainda eram audíveis sobre
o concreto da estrada, onde um carro o tornou visível por um
instante à luz de seus faróis, a arrastar-se pela faixa, cabeça
pendente sobre o peito e mãos nos bolsos do casaco preto.
Os
homens sentiam-se inquietos. Alguém disse:
— Bom...
já tá ficando tarde. Eu vou é dormir.
O
dono disse:
— Deve
ser um sujeito desses amalucados. Tem muitos assim agora, andando
pelas estradas. — Depois ficou calado. Tornou a encostar a sua
cadeira à parede e pôs-se a coçar o pescoço com os dedos.
Tom
disse:
— Acho
que ainda vou falar um pouco com a mãe. Depois vamos embora. — E
os dois Joad saíram de perto da varanda.
— Imagina
se esse camarada falou a verdade... — disse o pai.
O
pregador respondeu:
— Decerto
falou a verdade. A verdade do que aconteceu com ele. Não inventou
nada.
— E
com a gente, como é que vai ser? — perguntou Tom. — Será que
vai ser a mesma coisa?
— Não
sei — disse Casy.
— Também
não sei — disse o Pai.
Foram
andando até a tenda — o pedaço de lona estirado sobre quatro
estacas. Escuridão e silêncio reinavam no interior. Quando iam
chegando perto, uma forma cinzenta agitou-se próximo à entrada,
tomando proporções humanas. Era a mãe que vinha ao encontro deles.
— Tão
todos dormindo — disse ela. — A avó também, graças a Deus. —
Depois ela viu que era Tom quem vinha. — Como é que ocê veio para
cá? — perguntou ansiosa. — Houve alguma coisa?
— Não,
senhora, que nada! A gente fez o conserto — disse Tom. — Podemos
continuar a viagem quando estiverem prontos.
— Graças
a Deus — disse a mãe. — Precisamo andar depressa. Já quase não
aguento mais. Quero ver um pouco de verde, e quero ver fartura!
Quanto mais depressa, melhor.
O
pai pigarreou.
— Agora
mesmo um camarada teve dizendo...
Tom
pegou-o pelo braço e sacudiu-o ligeiramente.
— Engraçado,
o que ele teve dizendo... — falou. — Diss’que tem gente à beça
indo pra lá, como se nós não soubesse disso.
A
mãe lançou-lhes um olhar através da escuridão. Dentro da tenda,
Ruthie tossia e ressonava alto.
— Lavei
as crianças — disse a mãe. — Foi a primeira vez que eles deram
bastante água. Deixei o balde lá fora, que é pra se vocês também
se lavar. A gente se suja muito nessas viagens.
— Tão
todos lá dentro? — perguntou o pai.
— Todos,
menos o Connie e a Rosasharn. Eles querem dormir lá fora. Diss’que
aí na tenda é muito quente.
O
pai observou, em tom ranzinza:
— Essa
Rosasharn tá ficando muito cheia de dedos, toda não me toques.
— É
porque é a primeira vez — disse a mãe. — Ela e o Connie só
vivem falando disso. Cê também era a mesma coisa.
— Bom,
precisamos ir agora — disse Tom. — Vamos parar um pouco adiante,
aí na estrada. Prestem atenção, se a gente não enxergar vocês.
Vamo ficar do lado direito.
— E
o Al? Fica aqui?
— Fica.
Por isso é que tio John vem com a gente. Boa noite, mãe.
Atravessaram
o acampamento adormecido. Diante de uma das tendas ardia uma fogueira
fraca e vacilante, ao pé da qual uma mulher estava acocorada
preparando a refeição da manhã seguinte. O cheiro de feijão que
ela cozinhava era forte e apetitoso.
— Que
bom um prato de feijão agora — disse Tom polidamente, ao passar
pela mulher.
A
mulher riu baixinho.
— Tá
às suas ordens... quando tiver pronto. É só vir até aqui, ao
nascer do sol.
— Muito
brigado, dona — disse Tom.
Ele,
tio John e Casy passaram pela varanda. O dono ainda ali estava,
sentado na cadeira, e a lamparina ciciava e flamejava. Voltou a
cabeça para os três homens que iam passando.
— Precisa
botar gasolina nessa lamparina — disse-lhe Tom.
— Pra
quê? Tá na hora de fechar.
— Agora
não entra mais nenhum meio dólar rolando pela estrada, hem? —
disse Tom.
Os
pés da cadeira pousaram no chão.
— Mas
que camarada metido a besta! Eu te conheço, rapaz. Cê é também
desses encrenqueiros que andam por aí.
— Pois
sou, mesmo — disse Tom. — Sou um bolchevista.
— É
isso. Tem muitos da tua espécie.
Tom
riu quando iam saindo pelo portão em direção ao Dodge. Abaixou-se
para apanhar um torrão de terra e jogou-o com força contra a luz
que ardia na varanda. Eles ouviram o projétil bater de encontro à
casa e viram o dono do acampamento erguer-se num pulo e esticar a
cabeça para a frente, sondando a escuridão. Tom acionou o motor do
automóvel, que retomou a estrada. Escutou com atenção o barulho do
motor, receando ouvir pancadas estranhas. A estrada deslizava na
penumbra, sob a luz fraca dos faróis.
John
Steinbeck, in
As vinhas da ira
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