quarta-feira, 2 de outubro de 2019

"— Vocês vão... vocês vão pro Oeste? Ó Deus do céu!"

O pai virou-se para o círculo de homens:
É duro quando alguém tem que fazer como nós. Nós tinha a nossa fazendinha própria. Não andava por aí com uma mão na frente e outra atrás. Esses diabo desses trator acabaram com tudo.
Um jovem alto e magro, de sobrancelhas amarelecidas pela ação do sol, ergueu vagarosamente a cabeça.
Cês eram meeiros? — perguntou.
É. Antes, a terra era só da gente.
O jovem tornou a olhar em frente.
Que nem nós — disse.
Felizmente já não vai durar muito — disse o pai. — A gente vai pro Oeste. Ali tem muito trabalho e, quem sabe?, podemo até arrumar um pedacinho de terra outra vez, com água e tudo.
Num canto da varanda se encontrava um homem esfarrapado. De seu casaco preto pendiam as tiras do pano rasgado, e os joelhos de suas calças estavam completamente gastos. Tinha o rosto negro da sujeira e sulcado por onde o suor correra. Espichou a cabeça em direção ao pai.
Então vocês devem ter economizado um bocado.
Não, a gente não conseguiu economizar dinheiro nenhum — disse o pai. — Mas a nossa família é grande e todos podem trabalhar. E lá no Oeste, eles pagam bons salários. A gente economiza e então compra um pedaço de terra outra vez.
O homem esfarrapado encarou o pai e depois riu, e seu riso atingiu a tonalidade de um relincho prolongado. O círculo de faces virou-se para o homem que ria. O relincho degenerou num acesso de tosse. Os olhos do homem estavam vermelhos e lacrimejavam quando, afinal, ele controlou seus espasmos.
Vocês vão... vocês vão pro Oeste? Ó Deus do céu! — Começou a rir novamente. — Vão pro Oeste... bons salários, hem?... Deus do céu! — Parou e acrescentou em tom irônico: — Colher laranjas, não é? E pêssegos, não é?
O pai falou cheio de dignidade:
A gente pega o serviço que tiver. E lá tem serviço à beça...
O homem esfarrapado relinchou com mais discrição.
Tom irritou-se:
Que é que você acha de tão engraçado nisso?
O homem esfarrapado calou a boca e olhou carrancudo para as tábuas do piso da varanda:
Aposto que vocês todos vão pra Califórnia — disse, por fim.
Pois eu já lhe disse isso uma vez? — falou o pai.
O esfarrapado disse lentamente:
Eu... eu estou justamente voltando de lá. Passei lá algum tempo.
Todos os rostos dirigiram-se a ele. Os homens não se mexiam. O cicio da lamparina degenerou num suspiro, e o dono do acampamento deixou pousar os pés dianteiros de sua cadeira no chão, ergueu-se e bombeou a lamparina, até que o cicio tornou a se fortalecer, vibrando de novo, agudo. Sentou-se de novo, mas não a recostou mais à parede. O esfarrapado tornou a falar:
Voltei para morrer de fome. Prefiro morrer de fome o mais rápido possível.
Mas que diabo você tá dizendo, afinal de contas? — disse o Pai. — Eu tenho um papel que diz que eles pagam bons salários e li no jornal que eles tão precisando de gente pra fazer a colheita.
Vocês não têm mais a casa, se quisesse voltar?
Não — disse o pai. — O trator derrubou tudo. Expulsaram a gente.
Então vocês não voltava de jeito nenhum pra casa?
É claro que não.
Então não adianta eu desencorajar vocês.
Nem vai conseguir. Pois se eu vi esse papel que dizia assim que eles precisava de gente pras colheita. Se eles não precisassem, pra que gastar tanto dinheiro com os impressos? Não iam nem espalhar essa papelada por aí se não precisassem de gente.
Bom, não adianta eu dizer nada.
O pai disse, colérico:
Agora que já começou a falar besteira, não vai se calar, não. Eu vi, eu mesmo vi esse papel impresso, ouviu? Tava lá direitinho: “Precisa-se de gente.” E você aí rindo e dizendo que é mentira. Quem é que tá mentindo, afinal de contas?
O esfarrapado olhou bem nos olhos irritados do pai. Parecia triste.
O papel disse a verdade — falou. — Eles precisam mesmo de gente.
Então por que é que você anda rindo tanto?
É porque vocês não sabe que espécie de gente eles precisam.
Como, que espécie de gente?
O esfarrapado tomou uma decisão:
Escute aqui — disse. — Quanta gente o papel diz que eles precisam?
Oitocentos, e num lugar só.
É um papel cor de laranja, né?
É, por quê?
Tem o nome do camarada... fulano de tal... empreiteiro?
O pai meteu a mão no bolso e retirou o impresso dobrado.
Isso mesmo — disse.
Como é que você sabia?
Olha aqui — falou o esfarrapado. — Esse homem diz que precisa de oitocentas pessoas. Ele manda imprimir cinco mil desses papelzinhos, e umas vinte mil pessoas leem. Aí vão pra lá pelo menos umas duas, três mil pessoas, por causa desses papéis. Pessoas que já nem sabem onde têm a cabeça de tanta preocupação.
Isso não tem sentido! — clamou o pai.
Vai fazer sentido quando falarem com o sujeito que mandou distribuir esses papéis. Vocês vão ver ele, e também os outros que trabalham pra ele. Vocês vão pernoitar nas valas das estradas, junto com outras cinquenta famílias mais. E ele vai procurar descobrir se vocês têm ainda alguma comida. E quando vocês não tiverem mais nada pra comer, ele vai perguntar: querem trabalhar? E vocês respondem: queremos, sim senhor. Que bom se o senhor arrumasse trabalho pra gente! E ele diz: acho que posso arranjar alguma coisa pra vocês. E vocês perguntam: quando podemos começar? E ele vai dizer a você pra onde devem ir, e quando, e depois ele vai embora. Precisa talvez de umas duzentas pessoas, mas fala com quinhentas, pelo menos, que passam a notícia adiante, e quando você chegar no lugar marcado já encontra ali mais de mil pessoas. Aí esse sujeito que falou com você diz: eu pago vinte cents a hora. E aí pelo menos metade das pessoas vai embora. Mas ainda ficam outros quinhentos que tão morrendo de fome e que querem trabalhar nem que seja pra poder comprar pão. E esse sujeito tem um contrato com o dono da fazenda que diz que essa gente toda vai trabalhar na colheita de pêssegos ou nos algodoal. Compreende agora? Quanto mais gente esfomeada ele arranja, menos precisa pagar como salário. E ele prefere gente que tem filhos, porque aí... ora, não quero aumentar a desilusão de vocês. — O círculo de faces encarou-o com frieza. Os olhos mediam suas palavras. O esfarrapado ficou constrangido. — Eu diss’que não valia a pena dizer essas coisas e acabei dizendo. Vocês têm que continuar a viagem, tá certo. Não podem voltar mais. — O silêncio pendia sobre a varanda. A lamparina ciciava e uma nuvem de mosquitos dançava incessantemente em torno da luz. O esfarrapado continuava nervoso. — Vou dizer a vocês o que devem fazer quando aquele sujeito vier e disser que tem trabalho para vocês. Perguntem a ele quanto paga. Digam pra ele dar por escrito quanto vai pagar. Digam isso pra ele. Se não fizerem isso, vão ser levados pelo papo-furado dele.
O dono inclinou-se na sua cadeira para ver melhor o esfarrapado coberto de sujeira. Coçou a pele entre os cabelos grisalhos do peito e disse com frieza:
Escuta, cê não é um desses agitadores que andam por aí, hem? Um desses que arranjam encrencas para os trabalhadores?
E o esfarrapado clamou:
Eu? Você tá maluco!
É porque andam muitos desses por aqui — disse o dono. — Só vivem provocando ódio. Faz o pessoal ficar maluco. Vivem metendo o bedelho no que não lhes diz respeito. Um dia vão ser todos enforcados, esses derrotistas. Ou então vamo expulsar eles do país, é isso! Se um homem quiser trabalhar... bem. Se não quiser, que vá pro inferno. Mas não venha provocar encrencas.
O esfarrapado empertigou-se:
Bom, eu só queria avisar a vocês, pessoal. Agora já sabem como é — disse. — A mim me custou um ano inteiro saber disso tudo. Me custou a vida da mulher e de dois filhos. Mas vocês não querem acreditar. Não devia dizer nada, é o que é. Eu também não quis acreditar quando alguém me disse isso. Não, não, vocês não podem acreditar! Quando as crianças estavam deitadas na tenda de barriga inchada, só pele e osso, e tremiam e choravam que nem cachorrinhos, eu saí feito louco pra arrumar trabalho, nem que fosse pra ganhar uma miséria. Não queria salário, não queria dinheiro! — gritou. — Queria era só um pouquinho de leite, um punhado de farinha, uma colherada de banha! Meu Deus!... Depois veio o médico-legista. As crianças morreram do coração, ele disse. Escreveu isso num papel que trouxe. Tremiam, isso sim, e tinham a barriga inchada que nem bexiga de porco.
Os homens em volta estavam silenciosos, bocas entreabertas. E sua respiração saía opressa. Escutavam.
O esfarrapado olhou em volta, depois virou as costas ao grupo e caminhou rapidamente até sumir na escuridão. A escuridão tragou-o, mas seus passos arrastados por muito tempo ainda eram audíveis sobre o concreto da estrada, onde um carro o tornou visível por um instante à luz de seus faróis, a arrastar-se pela faixa, cabeça pendente sobre o peito e mãos nos bolsos do casaco preto.
Os homens sentiam-se inquietos. Alguém disse:
Bom... já tá ficando tarde. Eu vou é dormir.
O dono disse:
Deve ser um sujeito desses amalucados. Tem muitos assim agora, andando pelas estradas. — Depois ficou calado. Tornou a encostar a sua cadeira à parede e pôs-se a coçar o pescoço com os dedos.
Tom disse:
Acho que ainda vou falar um pouco com a mãe. Depois vamos embora. — E os dois Joad saíram de perto da varanda.
Imagina se esse camarada falou a verdade... — disse o pai.
O pregador respondeu:
Decerto falou a verdade. A verdade do que aconteceu com ele. Não inventou nada.
E com a gente, como é que vai ser? — perguntou Tom. — Será que vai ser a mesma coisa?
Não sei — disse Casy.
Também não sei — disse o Pai.
Foram andando até a tenda — o pedaço de lona estirado sobre quatro estacas. Escuridão e silêncio reinavam no interior. Quando iam chegando perto, uma forma cinzenta agitou-se próximo à entrada, tomando proporções humanas. Era a mãe que vinha ao encontro deles.
Tão todos dormindo — disse ela. — A avó também, graças a Deus. — Depois ela viu que era Tom quem vinha. — Como é que ocê veio para cá? — perguntou ansiosa. — Houve alguma coisa?
Não, senhora, que nada! A gente fez o conserto — disse Tom. — Podemos continuar a viagem quando estiverem prontos.
Graças a Deus — disse a mãe. — Precisamo andar depressa. Já quase não aguento mais. Quero ver um pouco de verde, e quero ver fartura! Quanto mais depressa, melhor.
O pai pigarreou.
Agora mesmo um camarada teve dizendo...
Tom pegou-o pelo braço e sacudiu-o ligeiramente.
Engraçado, o que ele teve dizendo... — falou. — Diss’que tem gente à beça indo pra lá, como se nós não soubesse disso.
A mãe lançou-lhes um olhar através da escuridão. Dentro da tenda, Ruthie tossia e ressonava alto.
Lavei as crianças — disse a mãe. — Foi a primeira vez que eles deram bastante água. Deixei o balde lá fora, que é pra se vocês também se lavar. A gente se suja muito nessas viagens.
Tão todos lá dentro? — perguntou o pai.
Todos, menos o Connie e a Rosasharn. Eles querem dormir lá fora. Diss’que aí na tenda é muito quente.
O pai observou, em tom ranzinza:
Essa Rosasharn tá ficando muito cheia de dedos, toda não me toques.
É porque é a primeira vez — disse a mãe. — Ela e o Connie só vivem falando disso. Cê também era a mesma coisa.
Bom, precisamos ir agora — disse Tom. — Vamos parar um pouco adiante, aí na estrada. Prestem atenção, se a gente não enxergar vocês. Vamo ficar do lado direito.
E o Al? Fica aqui?
Fica. Por isso é que tio John vem com a gente. Boa noite, mãe.
Atravessaram o acampamento adormecido. Diante de uma das tendas ardia uma fogueira fraca e vacilante, ao pé da qual uma mulher estava acocorada preparando a refeição da manhã seguinte. O cheiro de feijão que ela cozinhava era forte e apetitoso.
Que bom um prato de feijão agora — disse Tom polidamente, ao passar pela mulher.
A mulher riu baixinho.
Tá às suas ordens... quando tiver pronto. É só vir até aqui, ao nascer do sol.
Muito brigado, dona — disse Tom.
Ele, tio John e Casy passaram pela varanda. O dono ainda ali estava, sentado na cadeira, e a lamparina ciciava e flamejava. Voltou a cabeça para os três homens que iam passando.
Precisa botar gasolina nessa lamparina — disse-lhe Tom.
Pra quê? Tá na hora de fechar.
Agora não entra mais nenhum meio dólar rolando pela estrada, hem? — disse Tom.
Os pés da cadeira pousaram no chão.
Mas que camarada metido a besta! Eu te conheço, rapaz. Cê é também desses encrenqueiros que andam por aí.
Pois sou, mesmo — disse Tom. — Sou um bolchevista.
É isso. Tem muitos da tua espécie.
Tom riu quando iam saindo pelo portão em direção ao Dodge. Abaixou-se para apanhar um torrão de terra e jogou-o com força contra a luz que ardia na varanda. Eles ouviram o projétil bater de encontro à casa e viram o dono do acampamento erguer-se num pulo e esticar a cabeça para a frente, sondando a escuridão. Tom acionou o motor do automóvel, que retomou a estrada. Escutou com atenção o barulho do motor, receando ouvir pancadas estranhas. A estrada deslizava na penumbra, sob a luz fraca dos faróis.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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