segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Um general e um poeta

Cada homem que chegava da derrota e do cativeiro era uma novela com capítulos, prantos, risos, solidão, amores. Algumas destas histórias eram surpreendentes.
Conheci um general de aviação, alto e ascético, homem de academia militar e com toda classe de credenciais. Andava ali pelas ruas de Paris, sombra quixotesca da terra espanhola, idoso e vertical como um choupo de Castilla.
Quando o exército franquista dividiu em duas a zona republicana, esse general Herrera devia patrulhar na escuridão absoluta, inspecionar as defesas, dar ordens para um lado e outro. Com seu avião inteiramente às escuras, nas noites mais tenebrosas, sobrevoava o campo inimigo. De vez em quando um disparo franquista passava roçando o seu aparelho. Aprendeu então o método Braille. Quando dominou a escrita dos cegos viajava em suas perigosas missões, lendo com os dedos, enquanto lá embaixo ardiam o fogo e a dor da guerra civil. Contou-me o general que tinha conseguido ler O Conde de Montecristo e que ao iniciar Os Três Mosqueteiros foi interrompida sua leitura noturna de cego pela derrota e em seguida o exílio.
Outra história que recordo com grande emoção é a do poeta andaluz Pedro Garfias, que foi parar no desterro no castelo de um lorde, na Escócia. No castelo estava sempre só e Garfías, andaluz inquieto, ia todo dia à taberna do condado e silenciosamente, pois não falava inglês mas apenas um espanhol gitano que eu mesmo não entendia, bebia melancolicamente sua solitária cerveja. O mudo freguês chamou a atenção do taberneiro. Certa noite, quando já todos os frequentadores tinham ido embora, o taberneiro rogou que ele ficasse e continuaram bebendo em silêncio junto ao fogo da lareira, que crepitava e falava pelos dois.
Tornou-se um rito este convite. Cada noite Garfias era acolhido pelo taberneiro, solitário como ele, sem mulher e sem família. Pouco a pouco suas línguas se soltaram. Garfias contava-lhe toda a guerra da Espanha com interjeições, com juramentos, com imprecações muito andaluzas. O taberneiro escutava-o em silêncio religioso sem entender naturalmente uma só palavra.
Por sua vez o escocês começou a contar suas desventuras, provavelmente a história de sua mulher que o abandonou, provavelmente as proezas dos filhos cujos retratos de uniforme militar adornavam a chaminé. Digo provavelmente porque, durante os longos meses que duraram estas estranhas conversas, Garfias tampouco entendeu uma palavra.
No entanto a amizade dos dois homens solitários que falavam apaixonadamente cada um de seus assuntos e em seu idioma, inacessível para o outro, foi se acrescentando. E os encontros a cada noite e a conversa até o amanhecer converteram-se numa necessidade para ambos.
Quando Garfias teve que partir para o México despediram-se bebendo e falando, abraçando-se e chorando. A emoção que os unia tão profundamente era a separação de suas solidões.
Pedro – disse muitas vezes ao poeta – que achas que te contava?
Nunca entendi uma só palavra, Pablo, mas quando eu o escutava tive sempre a sensação, a certeza de compreendê-lo. E quando eu falava estava certo de que ele também me compreendia.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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