quinta-feira, 3 de outubro de 2019

“Traga-me espanhóis”

Mas a vida me tirou logo dali. As notícias aterradoras da emigração espanhola chegavam ao Chile. Mais de quinhentos mil homens e mulheres, combatentes e civis, tinham cruzado a fronteira francesa. Na França o governo de León Blum, pressionado pelas forças reacionárias, acumulou-os em campos de concentração, espalhou-os em fortalezas e prisões, manteve-os amontoados nas regiões africanas junto ao Saara.
O governo do Chile tinha mudado. Os mesmos avatares do povo espanhol tinham fortalecido as forças populares chilenas e agora tínhamos um governo progressista.
Esse governo da frente popular do Chile decidiu me enviar à França para cumprir a mais nobre missão que exerci em minha vida: a de tirar espanhóis de suas prisões e enviá-los à minha pátria. Assim podia minha poesia espalhar-se como uma luz radiante, vinda da América, entre esses montões de homens carregados como ninguém de sofrimento e heroísmo. Assim minha poesia chegaria a se confundir com a ajuda material da América que, ao receber os espanhóis, pagava uma dívida imemorial.
Quase inválido, recém-operado, com uma perna engessada – tais eram minhas condições físicas naquele momento –, saí de meu retiro e me apresentei ao presidente da república. Dom Pédro Aguirre Cerda recebeu-me com afeto.
Sim, traga-me milhares de espanhóis. Temos trabalho para todos. Traga-me pescadores. Traga-me bascos, castelhanos, estremenhos.
E poucos dias depois, ainda engessado, fui à França para buscar espanhóis para o Chile.
Tinha um cargo concreto. Era cônsul encarregado da emigração espanhola - assim dizia a nomeação. Apresentei exultante minhas credenciais à embaixada do Chile em Paris.
Governo e situação política não eram os mesmos em minha pátria mas a embaixada em Paris não tinha mudado. A possibilidade de enviar espanhóis ao Chile enfurecia os empertigados diplomatas. Instalaram-me numa sala perto da cozinha, hostilizaram-me de todas as maneiras até negar-me papel de escrever. Já começava a chegar às portas do edifício da embaixada a onda dos indesejáveis: combatentes feridos, juristas e escritores, profissionais que tinham perdido suas clínicas, operários de todas as especialidades.
Como conseguiam chegar apesar dos pesares até minha sala e como meu escritório era no quarto andar, inventaram algo diabólico: suspenderam o funcionamento do elevador. Muitos dos espanhóis eram feridos de guerra e sobreviventes do campo africano de concentração e cortava o coração vê-los subir penosamente ao quarto andar, enquanto os ferozes funcionários se compraziam com minhas dificuldades.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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