Rio,
22 de outubro de 1947.
Prezado
Allyrio: tenho procurado avistar-me com Monte Brito, mas esse seu
amigo é vaporoso, é abstrato, abala-me as convicções, atira-me ao
idealismo, insinua-me a suspeita de que um ser livre de carne e osso
é capaz de escrever extensos rodapés. Na livraria e no jornal
percebemos a sombra de Monte Brito: em vão nos esforçamos por
ver-lhe a figura, ponderável, com as suas fraquezas e as suas
incongruências, imperceptíveis na folha onde se alarga e aprofunda
o pensamento. Você, ótimo Allyrio, me afirma conhecer de perto o
vivente singular. Não indago mistérios — e, como a asserção me
é útil, peço-lhe que transmita à personagem fugitiva, pelos meios
convenientes, este solilóquio derramado.
Quero
referir-me ao longo ensaio de Monte Brito, exposto no O Jornal
em seis domingos. Tendo fornecido assunto ao homem, deveria achar-me
vaidoso, imaginar haver ganho nestes últimos tempos algumas
polegadas. Não sucede, porém, isso, pois as minhas letras apenas
serviram de pretexto ao admirável estudo: com elas ou com outra
qualquer matéria-prima, as largas colunas teriam sido lançadas no
suplemento, graves e valiosas.
Assim,
recolho-me discreto, dou a Fabiano, Luís da Silva e Paulo Honório o
mérito escasso que eles tiveram na vida. Ao ler Monte Brito, muitas
vezes me pareceu distinguir os meus insetos sociais através de uma
lente de microscópio. Nesse aumento excessivo com certeza surgiram
pormenores invisíveis a olho nu, mas convém antes de tudo mencionar
a honestidade rigorosa do observador: as criaturas, ampliadas e
vistas sob luz forte, de nenhum modo se deturparam: as conclusões
nasceram de fatos irrecusáveis.
É
essa a principal virtude, suponho, do seu amigo, rara num país onde
não precisamos justificar opiniões. A nossa crítica, decisiva,
dogmática, pouca importância liga às cobaias que lhe chegam às
garras; tem preguiça de investigar, arroja-se a dissertações
inoportunas, falsifica um texto com citações inverídicas.
Naturalmente não são todos os críticos: aludo aos que procedem
assim.
Nem
sempre, julgo, o comportamento leviano revela irresponsabilidade ou
malícia: enxergaremos nele talvez deficiência de método. Em vez de
se considerar um livro, medi-lo, pesá-lo, toma-se de ordinário uma
parte dele, abandonando passagens nocivas a afirmações
apriorísticas. Desse modo um católico provará que também sou
católico; outros alinharão princípios morais, quererão obrigar-me
a escorar-me neles. Pregam-nos rótulos, matriculam-nos à força
numa ou noutra escola; exumam padroeiros exóticos, os figurinos que
dizem adotarmos. Como se tivéssemos a pretensão de avizinhar-nos
dessa gente grande. Enfim nos atribuem as suas ideias, as suas
preferências, os seus ódios.
Pergunto
a mim mesmo se poderia ser de outra forma, se não estão certos.
Devem estar. Não somos nunca, é possível, inteiramente objetivos:
reproduzimo-nos tentando ocupar-nos de outra pessoa. Monte Brito,
porém, identifica-se tanto com as minhas histórias que nos dá a
impressão esquisita de sair de si mesmo, analisar, comparar,
aceitando casos e indivíduos como estão no romance, bem ou mal, não
como ele acaso desejasse vê-los. Nada trunca, nada enxerta.
Se
não me engano, é razoável imputarmos isso a uma concordância de
juízos. Como admitimos certo número de noções e apreciamos de
igual jeito a sociedade, não lhe terá sido muito difícil explicar
e comentar sem receber choques, sem ferir-se em nenhuma aresta.
Aliás,
excluindo essa analogia de conceitos, alcançaremos uma interpretação
verdadeira? As minhas narrativas, confessemos, são chinfrins, mas
foram construídas na terra, as minhas mãos bisonhas pretenderam
cavar alicerces. Não terá isso contribuído para que Monte Brito me
olhasse com simpatia? Se eu conseguisse uma obra-prima isenta de
realidade, feita com pedaços de sonho, não lhe torceria Monte Brito
o nariz? Foi, presumo, a afinidade que lhe excitou a perspicácia e o
levou a descobrir nos meus escritos o material necessário ao seu
trabalho. Isso e o conhecimento perfeito da região estudada por mim,
dos nossos hábitos, da nossa economia, das nossas tradições, da
nossa língua.
Vistas
a distância, essas coisas se mostram às vezes desprovidas de
interesse; buscamos selecionar minúcias, agrupá-las — e os
leitores recebem delas um reflexo pálido e frio. Certas observações
perturbam a rotina, lesam modelos consagrados. Se exibirmos, por
exemplo, desavenças familiares, pais a brigar com filhos,
arrepiar-se-ão como se resvalássemos em sacrilégio. Não
investigam se as discórdias existem: preferem negá-las, reputar-nos
inimigos por nos arriscarmos a desacatar os seus padrões velhos.
Monte
Brito e eu percorremos o sertão do Nordeste — e não temos
conveniência em cantar loas aos mandantes de lá.
Teve
o bom gosto de não me oferecer amabilidades irritantes, comuns na
literatura nacional. À míngua de substância, é frequente
rechearem-se artigos com adjetivos. E já alguém se lembrou de
ornando um cavalheiro vastamente impresso e discutido elogiar-lhe as
gravatas. Veja só, um homem trata de poesia e desce a usar recursos
de natureza indumentária. Longe disso, Monte Brito desdenhou até a
minha sintaxe, que afinal é superior à roupa. Muitos agradecimentos
a ele, prezado Allyrio. E abraços para você.
Graciliano
Ramos
Graciliano
Ramos, in Garranchos
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