sábado, 26 de outubro de 2019

Solilóquio derramado

Rio, 22 de outubro de 1947.

Prezado Allyrio: tenho procurado avistar-me com Monte Brito, mas esse seu amigo é vaporoso, é abstrato, abala-me as convicções, atira-me ao idealismo, insinua-me a suspeita de que um ser livre de carne e osso é capaz de escrever extensos rodapés. Na livraria e no jornal percebemos a sombra de Monte Brito: em vão nos esforçamos por ver-lhe a figura, ponderável, com as suas fraquezas e as suas incongruências, imperceptíveis na folha onde se alarga e aprofunda o pensamento. Você, ótimo Allyrio, me afirma conhecer de perto o vivente singular. Não indago mistérios — e, como a asserção me é útil, peço-lhe que transmita à personagem fugitiva, pelos meios convenientes, este solilóquio derramado.
Quero referir-me ao longo ensaio de Monte Brito, exposto no O Jornal em seis domingos. Tendo fornecido assunto ao homem, deveria achar-me vaidoso, imaginar haver ganho nestes últimos tempos algumas polegadas. Não sucede, porém, isso, pois as minhas letras apenas serviram de pretexto ao admirável estudo: com elas ou com outra qualquer matéria-prima, as largas colunas teriam sido lançadas no suplemento, graves e valiosas.
Assim, recolho-me discreto, dou a Fabiano, Luís da Silva e Paulo Honório o mérito escasso que eles tiveram na vida. Ao ler Monte Brito, muitas vezes me pareceu distinguir os meus insetos sociais através de uma lente de microscópio. Nesse aumento excessivo com certeza surgiram pormenores invisíveis a olho nu, mas convém antes de tudo mencionar a honestidade rigorosa do observador: as criaturas, ampliadas e vistas sob luz forte, de nenhum modo se deturparam: as conclusões nasceram de fatos irrecusáveis.
É essa a principal virtude, suponho, do seu amigo, rara num país onde não precisamos justificar opiniões. A nossa crítica, decisiva, dogmática, pouca importância liga às cobaias que lhe chegam às garras; tem preguiça de investigar, arroja-se a dissertações inoportunas, falsifica um texto com citações inverídicas. Naturalmente não são todos os críticos: aludo aos que procedem assim.
Nem sempre, julgo, o comportamento leviano revela irresponsabilidade ou malícia: enxergaremos nele talvez deficiência de método. Em vez de se considerar um livro, medi-lo, pesá-lo, toma-se de ordinário uma parte dele, abandonando passagens nocivas a afirmações apriorísticas. Desse modo um católico provará que também sou católico; outros alinharão princípios morais, quererão obrigar-me a escorar-me neles. Pregam-nos rótulos, matriculam-nos à força numa ou noutra escola; exumam padroeiros exóticos, os figurinos que dizem adotarmos. Como se tivéssemos a pretensão de avizinhar-nos dessa gente grande. Enfim nos atribuem as suas ideias, as suas preferências, os seus ódios.
Pergunto a mim mesmo se poderia ser de outra forma, se não estão certos. Devem estar. Não somos nunca, é possível, inteiramente objetivos: reproduzimo-nos tentando ocupar-nos de outra pessoa. Monte Brito, porém, identifica-se tanto com as minhas histórias que nos dá a impressão esquisita de sair de si mesmo, analisar, comparar, aceitando casos e indivíduos como estão no romance, bem ou mal, não como ele acaso desejasse vê-los. Nada trunca, nada enxerta.
Se não me engano, é razoável imputarmos isso a uma concordância de juízos. Como admitimos certo número de noções e apreciamos de igual jeito a sociedade, não lhe terá sido muito difícil explicar e comentar sem receber choques, sem ferir-se em nenhuma aresta.
Aliás, excluindo essa analogia de conceitos, alcançaremos uma interpretação verdadeira? As minhas narrativas, confessemos, são chinfrins, mas foram construídas na terra, as minhas mãos bisonhas pretenderam cavar alicerces. Não terá isso contribuído para que Monte Brito me olhasse com simpatia? Se eu conseguisse uma obra-prima isenta de realidade, feita com pedaços de sonho, não lhe torceria Monte Brito o nariz? Foi, presumo, a afinidade que lhe excitou a perspicácia e o levou a descobrir nos meus escritos o material necessário ao seu trabalho. Isso e o conhecimento perfeito da região estudada por mim, dos nossos hábitos, da nossa economia, das nossas tradições, da nossa língua.
Vistas a distância, essas coisas se mostram às vezes desprovidas de interesse; buscamos selecionar minúcias, agrupá-las — e os leitores recebem delas um reflexo pálido e frio. Certas observações perturbam a rotina, lesam modelos consagrados. Se exibirmos, por exemplo, desavenças familiares, pais a brigar com filhos, arrepiar-se-ão como se resvalássemos em sacrilégio. Não investigam se as discórdias existem: preferem negá-las, reputar-nos inimigos por nos arriscarmos a desacatar os seus padrões velhos.
Monte Brito e eu percorremos o sertão do Nordeste — e não temos conveniência em cantar loas aos mandantes de lá.
Teve o bom gosto de não me oferecer amabilidades irritantes, comuns na literatura nacional. À míngua de substância, é frequente rechearem-se artigos com adjetivos. E já alguém se lembrou de ornando um cavalheiro vastamente impresso e discutido elogiar-lhe as gravatas. Veja só, um homem trata de poesia e desce a usar recursos de natureza indumentária. Longe disso, Monte Brito desdenhou até a minha sintaxe, que afinal é superior à roupa. Muitos agradecimentos a ele, prezado Allyrio. E abraços para você.
Graciliano Ramos
Graciliano Ramos, in Garranchos

Nenhum comentário:

Postar um comentário