domingo, 6 de outubro de 2019

Outro caminho para Maria do Egito

Nando acordou de uma noite de pesadelos ansioso por fazer alguma coisa que o lavasse e purificasse das imagens terríveis de Francisca em seus braços, de Leslie banhado de sangue, de Maria do Egito varada pela peixeira de Nequinho, e de uma estranha Virgem Maria presidindo este mundo violento e impuro. Leslie tinha sido grosseiro com ele ao voltar e encontrá-lo conversando com Winifred e Francisca. Ninguém tinha tido ideia de ir buscá-lo no Engenho para lhe dar a boa notícia de que acabara a crise de Maria do Egito; ele, Leslie, que tanto se esforçara e se angustiara, tinha ficado sem a notícia e sem transporte. Quanto ao padrezinho, que não movera uma palha na história toda, refestelava-se entre as moças e esquecia o amigo. Nando não acordou pensando com raiva nas palavras de Leslie. Ao contrário. Pensou em si mesmo. Precisava fazer imediatamente alguma coisa certa e útil. E principalmente limpa, limpa. Abriu de par em par a janela ao nascente e viu de chofre a obra boa e humilde a fazer: reconduziria Maria do Egito a sua casa e pediria em seguida a d. Anselmo que o deixasse ficar, como padre, no Senhora do O até que se restabelecesse lá a justiça de Deus. Devia uma obra assim aos seus amigos, que faziam o bem com tanta naturalidade. E ia já, depressa, antes que de novo se emaranhasse em dúvidas. Apanharia Levindo para vir com ele ao Engenho, Levindo tão puro e solar, guardião de Francisca.

Levindo se espantou com a visita matutina de Nando e sorriu seu bom sorriso de sempre. Mas depois de ouvir o plano de Nando balançou negativamente a cabeça:
Bichados, Nando, todos bichados esses engenhos. Nem com um milhão de boas ações a gente dá jeito neles. Jesus Cristo teve que acabar com a Roma dos césares, não teve, para implantar a Roma dele?
Nando sorriu, sentindo-se cheio de um novo furor evangélico.
Hoje — disse Nando — quem se recusa a falar em Roma sou eu. Vamos conversar com Nequinho.
Quando chegaram ao Senhora do O só encontraram na choupana a mãe de Maria do Egito. Enquanto Levindo ia buscar Nequinho no eito, Nando conversou com a mulher magra e de feições baças, sem expressão. Nando lhe disse que Maria do Egito estava “boa”, que o filho não nasceria mais, que ela agora podia voltar para casa. A mulher dizia que sim com a cabeça enquanto fazia uns embrulhos de jornal.
Não é bom que Maria do Egito vai voltar para casa? — disse Nando.
Nequinho é que vai dizer.
Mas Nequinho agora não tem mais razão de abandonar a filha. Você quer que ela volte, não quer?
Este embrulho é o enxovalzinho de Maria — disse a velha.
Ela ia se casar?
Bem. Nada ainda marcado na folhinha. Mas moça na idade precisa não estar desprevenida.
Sim, sim. Ela casa. Mas você não me respondeu. Você quer que Maria volte, não quer?
Deus Nosso Senhor sabe como eu quero, seu padre. Mas querer de mulher é diferente de querer de homem.
Nequinho também vai querer a filha em casa.
Nequinho vai arranjar a casa.
Nando só entendeu depois o que é que a mulher queria dizer porque vinha entrando Nequinho, ao lado de um Levindo cabisbaixo. A mulher falou:
Seu padre estava dizendo, Nequinho, que a do Egito pode voltar para casa.
É — disse Nequinho —, o moço seu Levindo me falava também. Maria do Egito não tem mais semente ruim no ventre. Só ficou sem seu sangue de virgem.
Você agora recebe ela, não recebe? — disse Nando.
Recebe — disse Levindo. — Maria do Egito está “perdoada”. Só que não pode voltar para a casa dela aqui.
Por quê? — disse Nando.
Porque o patrão mandou a gente embora, não é mesmo? — disse Nequinho. — A gente tem que sair que ele tem precisão da casa.
Nando sentiu uma obscura vergonha, não sabia bem de que, ou de quem.
Eu vou falar com seu patrão — disse. — É o capataz que ele tem que mandar embora.
Diz que ele já voltou — disse Nequinho. — Ainda não apareceu na lavoura mas já voltou.
O patrão indenizou Nequinho — disse Levindo. — Deu uns cobres a ele. Isso quer dizer que se Nequinho não for embora por bem, some aí numa tocaia. Como bom cristão, Nequinho já se resignou. Ele vai embora e o capataz volta.
Nando ia falando num impulso:
Nequinho...
Nando ia dizer a Nequinho que gritasse, que fizesse frente ao capataz, que iriam os dois ao patrão. Mas viu com amargura Nequinho que o olhava como quem teme perder um aliado. Nequinho disse:
Seu padre falou que a gente tem que perdoar quem faz mal à gente, não falou? Assim falou mesmo quando a semente do capataz grelava no ventrezinho de Maria do Egito, não foi assim?
Nando assentiu com a cabeça.
Pode trazer a menina — disse Nequinho sem olhar ninguém.
Vamos à casa de Leslie — disse Nando —, vamos ver Maria do Egito.
Winifred recebeu os dois, olhando-os com o mesmo espanto que sentira Levindo ao ver Nando chegando de manhã para buscá-lo.
Senhor, que visita honrosa — sorriu Winifred.
A visita é mais para Maria do Egito — disse Levindo. — Nando está vendo se a leva de volta para o pai e a mãe. O diabo é que Nequinho já foi despedido, indenizado, cancelado do Senhora do O.
Eu acho — disse Winifred — que Maria do Egito não volta para o pai não.
Volta — disse Nando —, claro que volta.
Maria do Egito estava ainda no quarto, mas sentada numa cadeira de braços. Sentada com leveza, as mãos sem sangue apenas tocando o forro, quase pedindo desculpas. Quando Nando e Levindo se aproximaram, dando bom dia, Maria do Egito se limitou a um rápido aceno de cabeça, mais de bicho ensinado que de gente. E assim também, com frases rápidas, que não pareciam precedidas de qualquer reflexão, respondeu às perguntas.
Teu pai Nequinho agora recebe você de volta, minha filha — disse Nando. — Já falamos com ele.
Não paga a pena não, seu padre — disse Maria do Egito.
O que é que não paga a pena? — disse Nando. — Voltar para a casa de seu pai?
Ele não está mais com raiva de você não — disse Winifred.
E vocês vão morar num outro engenho — disse Levindo. — Você fica com Nequinho e sua mãe. O resto é gente nova.
Paga a pena não — disse Maria do Egito.
Mas você... A gente sabe — disse Nando — que seu pai foi injusto. Teve tanto ódio do homem que desonrou você que era quase como se você tivesse culpa também. Mas agora, Maria do Egito, você não vai se vingar do seu pai, não é assim?
Maria do Egito fitou Nando com uma cara meio espantada.
Você não teve culpa nenhuma, minha filha, nós sabemos disto. E agora seu pai sabe também. Ele só queria o seu bem.
Maria do Egito levantou mais ainda as mãos dos braços da cadeira num gesto indefinível.
Bem capaz, seu padre.
E então? Você volta para sua casa, não é?
Se seu padre quiser muito. Se vosmicês quiserem. Mas não vai ser para moradia efetiva.
Não entendo, minha filha — disse Nando. — Sua casa não é a de seu pai e sua mãe?
Depois eu visito eles, se eles quiserem me ver.
Levindo segurou o braço de Nando com força.
Não amole mais a menina, Nando. Você é que precisa entender. Moça que mora com o pai é moça-moça, moça-donzela. Só deixa de ser donzela quando casa e Maria do Egito é solteira. E não vai casar, vai?
Nando não respondeu e Levindo continuou:
Não vai, não é? Pois então vai fazer carreira nos prostíbulos. Entendeu? Isto é uma convenção pacífica, matéria aceita.
As mãos de Maria do Egito pousavam de novo, tranquilas e leves, nos braços da cadeira. Não havia mais nada a dizer. Winifred, Nando e Levindo saíram do quarto.
Maria do Egito tem me pedido para ir à casa dela, buscar uns lençóis e umas pecinhas de enxoval que estava colecionando aos poucos — disse Winifred. — Ela conhece uma moça lá do Engenho que entrou para uma pensão de mulheres onde a madama cobra menos pelo quarto quando a mulher leva sua roupa de cama. Maria do Egito parece que tem três lençóis e resolveu tomar o mesmo caminho da outra.
Antonio Callado, in Quarup

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