Nando
acordou de uma noite de pesadelos ansioso por fazer alguma coisa que
o lavasse e purificasse das imagens terríveis de Francisca em seus
braços, de Leslie banhado de sangue, de Maria do Egito varada pela
peixeira de Nequinho, e de uma estranha Virgem Maria presidindo este
mundo violento e impuro. Leslie tinha sido grosseiro com ele ao
voltar e encontrá-lo conversando com Winifred e Francisca. Ninguém
tinha tido ideia de ir buscá-lo no Engenho para lhe dar a boa
notícia de que acabara a crise de Maria do Egito; ele, Leslie, que
tanto se esforçara e se angustiara, tinha ficado sem a notícia e
sem transporte. Quanto ao padrezinho, que não movera uma palha na
história toda, refestelava-se entre as moças e esquecia o amigo.
Nando não acordou pensando com raiva nas palavras de Leslie. Ao
contrário. Pensou em si mesmo. Precisava fazer imediatamente alguma
coisa certa e útil. E principalmente limpa, limpa. Abriu de par em
par a janela ao nascente e viu de chofre a obra boa e humilde a
fazer: reconduziria Maria do Egito a sua casa e pediria em seguida a
d. Anselmo que o deixasse ficar, como padre, no Senhora do O até que
se restabelecesse lá a justiça de Deus. Devia uma obra assim aos
seus amigos, que faziam o bem com tanta naturalidade. E ia já,
depressa, antes que de novo se emaranhasse em dúvidas. Apanharia
Levindo para vir com ele ao Engenho, Levindo tão puro e solar,
guardião de Francisca.
Levindo
se espantou com a visita matutina de Nando e sorriu seu bom sorriso
de sempre. Mas depois de ouvir o plano de Nando balançou
negativamente a cabeça:
— Bichados,
Nando, todos bichados esses engenhos. Nem com um milhão de boas
ações a gente dá jeito neles. Jesus Cristo teve que acabar com a
Roma dos césares, não teve, para implantar a Roma dele?
Nando
sorriu, sentindo-se cheio de um novo furor evangélico.
— Hoje
— disse Nando — quem se recusa a falar em Roma sou eu. Vamos
conversar com Nequinho.
Quando
chegaram ao Senhora do O só encontraram na choupana a mãe de Maria
do Egito. Enquanto Levindo ia buscar Nequinho no eito, Nando
conversou com a mulher magra e de feições baças, sem expressão.
Nando lhe disse que Maria do Egito estava “boa”, que o filho não
nasceria mais, que ela agora podia voltar para casa. A mulher dizia
que sim com a cabeça enquanto fazia uns embrulhos de jornal.
— Não
é bom que Maria do Egito vai voltar para casa? — disse Nando.
— Nequinho
é que vai dizer.
— Mas
Nequinho agora não tem mais razão de abandonar a filha. Você quer
que ela volte, não quer?
— Este
embrulho é o enxovalzinho de Maria — disse a velha.
— Ela
ia se casar?
— Bem.
Nada ainda marcado na folhinha. Mas moça na idade precisa não estar
desprevenida.
— Sim,
sim. Ela casa. Mas você não me respondeu. Você quer que Maria
volte, não quer?
— Deus
Nosso Senhor sabe como eu quero, seu padre. Mas querer de mulher é
diferente de querer de homem.
— Nequinho
também vai querer a filha em casa.
— Nequinho
vai arranjar a casa.
Nando
só entendeu depois o que é que a mulher queria dizer porque vinha
entrando Nequinho, ao lado de um Levindo cabisbaixo. A mulher falou:
— Seu
padre estava dizendo, Nequinho, que a do Egito pode voltar para casa.
— É
— disse Nequinho —, o moço seu Levindo me falava também. Maria
do Egito não tem mais semente ruim no ventre. Só ficou sem seu
sangue de virgem.
— Você
agora recebe ela, não recebe? — disse Nando.
— Recebe
— disse Levindo. — Maria do Egito está “perdoada”. Só que
não pode voltar para a casa dela aqui.
— Por
quê? — disse Nando.
— Porque
o patrão mandou a gente embora, não é mesmo? — disse Nequinho. —
A gente tem que sair que ele tem precisão da casa.
Nando
sentiu uma obscura vergonha, não sabia bem de que, ou de quem.
— Eu
vou falar com seu patrão — disse. — É o capataz que ele tem que
mandar embora.
— Diz
que ele já voltou — disse Nequinho. — Ainda não apareceu na
lavoura mas já voltou.
— O
patrão indenizou Nequinho — disse Levindo. — Deu uns cobres a
ele. Isso quer dizer que se Nequinho não for embora por bem, some aí
numa tocaia. Como bom cristão, Nequinho já se resignou. Ele vai
embora e o capataz volta.
Nando
ia falando num impulso:
— Nequinho...
Nando
ia dizer a Nequinho que gritasse, que fizesse frente ao capataz, que
iriam os dois ao patrão. Mas viu com amargura Nequinho que o olhava
como quem teme perder um aliado. Nequinho disse:
— Seu
padre falou que a gente tem que perdoar quem faz mal à gente, não
falou? Assim falou mesmo quando a semente do capataz grelava no
ventrezinho de Maria do Egito, não foi assim?
Nando
assentiu com a cabeça.
— Pode
trazer a menina — disse Nequinho sem olhar ninguém.
— Vamos
à casa de Leslie — disse Nando —, vamos ver Maria do Egito.
Winifred
recebeu os dois, olhando-os com o mesmo espanto que sentira Levindo
ao ver Nando chegando de manhã para buscá-lo.
— Senhor,
que visita honrosa — sorriu Winifred.
— A
visita é mais para Maria do Egito — disse Levindo. — Nando está
vendo se a leva de volta para o pai e a mãe. O diabo é que Nequinho
já foi despedido, indenizado, cancelado do Senhora do O.
— Eu
acho — disse Winifred — que Maria do Egito não volta para o pai
não.
— Volta
— disse Nando —, claro que volta.
Maria
do Egito estava ainda no quarto, mas sentada numa cadeira de braços.
Sentada com leveza, as mãos sem sangue apenas tocando o forro, quase
pedindo desculpas. Quando Nando e Levindo se aproximaram, dando bom
dia, Maria do Egito se limitou a um rápido aceno de cabeça, mais de
bicho ensinado que de gente. E assim também, com frases rápidas,
que não pareciam precedidas de qualquer reflexão, respondeu às
perguntas.
— Teu
pai Nequinho agora recebe você de volta, minha filha — disse
Nando. — Já falamos com ele.
— Não
paga a pena não, seu padre — disse Maria do Egito.
— O
que é que não paga a pena? — disse Nando. — Voltar para a casa
de seu pai?
— Ele
não está mais com raiva de você não — disse Winifred.
— E
vocês vão morar num outro engenho — disse Levindo. — Você fica
com Nequinho e sua mãe. O resto é gente nova.
— Paga
a pena não — disse Maria do Egito.
— Mas
você... A gente sabe — disse Nando — que seu pai foi injusto.
Teve tanto ódio do homem que desonrou você que era quase como se
você tivesse culpa também. Mas agora, Maria do Egito, você não
vai se vingar do seu pai, não é assim?
Maria
do Egito fitou Nando com uma cara meio espantada.
— Você
não teve culpa nenhuma, minha filha, nós sabemos disto. E agora seu
pai sabe também. Ele só queria o seu bem.
Maria
do Egito levantou mais ainda as mãos dos braços da cadeira num
gesto indefinível.
— Bem
capaz, seu padre.
— E
então? Você volta para sua casa, não é?
— Se
seu padre quiser muito. Se vosmicês quiserem. Mas não vai ser para
moradia efetiva.
— Não
entendo, minha filha — disse Nando. — Sua casa não é a de seu
pai e sua mãe?
— Depois
eu visito eles, se eles quiserem me ver.
Levindo
segurou o braço de Nando com força.
— Não
amole mais a menina, Nando. Você é que precisa entender. Moça que
mora com o pai é moça-moça, moça-donzela. Só deixa de ser
donzela quando casa e Maria do Egito é solteira. E não vai casar,
vai?
Nando
não respondeu e Levindo continuou:
— Não
vai, não é? Pois então vai fazer carreira nos prostíbulos.
Entendeu? Isto é uma convenção pacífica, matéria aceita.
As
mãos de Maria do Egito pousavam de novo, tranquilas e leves, nos
braços da cadeira. Não havia mais nada a dizer. Winifred, Nando e
Levindo saíram do quarto.
— Maria
do Egito tem me pedido para ir à casa dela, buscar uns lençóis e
umas pecinhas de enxoval que estava colecionando aos poucos — disse
Winifred. — Ela conhece uma moça lá do Engenho que entrou para
uma pensão de mulheres onde a madama cobra menos pelo quarto quando
a mulher leva sua roupa de cama. Maria do Egito parece que tem três
lençóis e resolveu tomar o mesmo caminho da outra.
Antonio
Callado, in Quarup
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