terça-feira, 1 de outubro de 2019

O criador e as criaturas

Mais triste do que um escritor virar seu próprio discípulo é quando ele vira um dos seus próprios personagens. No fim da vida, vejam só o que aconteceu com Tolstói. De senhor invisível e ubíquo que era, corporificou-se enfim num daqueles fanáticos que abundavam na Rússia do seu tempo, os chamados “inocentinhos”, o último dos quais nada tinha de inocente: Rasputin.
Romancista mesmo é aquele cujas criaturas assumem vida própria e não lembram o pai. Ainda no outro dia dizia eu ao nosso Josué Guimarães que o que tinham de bom os seus personagens é que não se pareciam com ele. Um elogio, como se vê.
Pois, embora possa servir eventualmente de ótimo material, o eu de um romancista sempre é “le haissable moi”.
E, por exemplo, que pensaria ele, o velho Machado romancista, do burocrata Joaquim Maria Machado de Assis, tão pontilhoso, ou do acadêmico do mesmo nome, tão convencional?
Creio que pensaria isso mesmo…
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

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