Como
os criadores justificavam seu comportamento? Enquanto os
caçadores-coletores tinham pouca consciência dos danos que
infligiam ao ecossistema, os fazendeiros sabiam perfeitamente o que
estavam fazendo. Sabiam que estavam explorando animais domésticos e
os submetendo aos desejos e caprichos humanos. Justificavam suas
ações em nome de novas religiões teístas, que se espalharam e se
disseminaram na esteira da Revolução Agrícola. Essas religiões
sustentavam que o Universo não é um parlamento de seres, e sim uma
teocracia governada por um grupo de deuses grandiosos — ou talvez
por um único e maiúsculo Deus. Normalmente não associamos essa
ideia à agricultura, mas ao menos no início as religiões eram um
empreendimento agrícola. A teologia, a mitologia e a liturgia de
religiões como o judaísmo, o hinduísmo e o cristianismo giravam a
princípio em torno das relações entre humanos, plantas
domesticadas e animais em fazendas de criação.
O
judaísmo bíblico, por exemplo, contemplava camponeses e pastores. A
maior parte de seus mandamentos trata da vida no campo e em aldeias,
e suas celebrações mais importantes eram os festivais de colheita.
As pessoas hoje imaginam o antigo templo em Jerusalém como uma
espécie de grande sinagoga onde sacerdotes de túnicas brancas como
a neve davam as boas-vindas a peregrinos devotos; coros melodiosos
cantavam salmos, e o incenso perfumava o ar. Na verdade, era algo
muito mais parecido com um cruzamento de um matadouro com uma
churrascaria. Os peregrinos não vinham de mãos vazias. Traziam
consigo um fluir interminável de ovelhas, cabras, galinhas e outros
animais, que eram sacrificados no altar divino, depois cozidos e
comidos. Os coros que entoavam os salmos quase não eram ouvidos
acima dos berros e balidos de bezerros e cabritos. Sacerdotes em
roupas ensanguentadas cortavam a garganta das vítimas, colhiam em
jarros o sangue que esguichava e o derramavam sobre o altar. O
perfume do incenso se misturava aos odores de sangue coagulado e de
carne assada, enquanto enxames de moscas-varejeiras zumbiam por toda
parte (ver, por exemplo, Números 28, Deuteronômio 12 e 1 Samuel 2).
Uma família judaica moderna que comemora uma festa religiosa com um
churrasco no gramado está muito mais próxima do espírito dos
tempos bíblicos do que uma família ortodoxa que passa esse dia
estudando escrituras numa sinagoga. As religiões teístas, assim
como o judaísmo bíblico, justificavam a economia agrícola com
novos mitos cosmológicos. As religiões animistas descreviam o
Universo como uma grande ópera chinesa com um elenco ilimitado de
atores de todos os matizes. Elefantes e carvalhos, crocodilos e rios,
montanhas e rãs, fantasmas e fadas, anjos e demônios — cada um
desempenhava um papel na ópera cósmica.
As
religiões teístas reescreveram o texto, fazendo do Universo um
sombrio drama de Ibsen com apenas dois personagens: o homem e Deus.
Anjos e demônios de algum modo sobreviveram à transição e
tornaram-se mensageiros e servos dos grandes deuses. Mas o restante
do elenco animista — todos os animais, plantas e demais fenômenos
naturais — foi transformado em um cenário silencioso. De fato,
alguns animais eram considerados sagrados para este ou aquele deus, e
muitos deuses apresentavam feições de animais: o deus egípcio
Anúbis tinha cabeça de chacal, e mesmo Jesus Cristo era
frequentemente descrito como um cordeiro. Mas os antigos egípcios
podiam dizer com facilidade qual era a diferença entre Anúbis e um
chacal comum que se esgueirava na aldeia para caçar galinhas, e
nenhum açougueiro cristão jamais confundiu o cordeiro sob sua faca
com Jesus.
Normalmente
pensamos que as religiões teístas santificavam os grandes deuses.
Tendemos a esquecer que elas santificavam humanos também. Até
então, o Homo sapiens tinha sido apenas um ator num elenco de
milhares. No novo drama teísta, o Sapiens tornou-se o herói
principal em torno do qual girava todo o Universo.
Os
deuses, enquanto isso, receberam dois papéis inter-relacionados para
representar. Primeiro, eles explicaram o que há de tão especial no
que tange ao Sapiens e por que os humanos deveriam dominar e
explorar todos os outros organismos. O cristianismo, por exemplo,
sustentava que os humanos deveriam manter o domínio sobre o resto da
criação porque o Criador lhe outorgara essa autoridade. Além
disso, de acordo com o cristianismo, Deus atribuiu uma alma imortal
somente aos humanos. Uma vez que o destino dessa alma eterna é o
ponto crucial de todo o cosmo cristão, e uma vez que animais não
têm alma, eles são meramente figurantes. Assim, os humanos
tornam-se o ápice da criação, ao passo que todos os demais
organismos são empurrados para o segundo plano.
Em
segundo lugar, os deuses teriam de realizar uma mediação entre os
humanos e o ecossistema. No cosmo animista, todos falavam com todos
diretamente. Se precisasse de alguma coisa de um caribu, de uma
figueira, das nuvens ou das rochas, você mesmo se dirigia a eles. No
cosmo teísta, todas as entidades não humanas foram silenciadas.
Consequentemente, não é mais possível falar com árvores e com
animais. O que fazer, então, quando alguém quisesse que as árvores
dessem mais frutos, as vacas dessem mais leite, as nuvens trouxessem
mais chuvas e os gafanhotos deixassem suas colheitas em paz? É aí
que os deuses entram em cena. Eles prometiam chuva, fertilidade e
proteção, contanto que os humanos fizessem algo em troca. Essa era
a essência do acordo agrícola. Os deuses salvaguardavam e
multiplicavam a produção agrícola e, em troca, os humanos tinham
de compartilhar sua produção com os deuses. Esse acordo servia a
ambas as partes, à custa do restante do ecossistema.
No
Nepal, devotos da deusa Gadhimai comemoram seu festival a cada cinco
anos na aldeia de Bariyapur. Em 2009 estabeleceu-se um recorde: 250
mil animais foram sacrificados à deusa. Um motorista local explicou
a um jornalista britânico visitante: “Se queremos algo e viemos
aqui com uma oferenda à deusa, em cinco anos todos os nossos sonhos
estarão realizados”.
Grande
parte da mitologia teísta explica os detalhes sutis desse acordo. A
epopeia mesopotâmica de Gilgamesh conta que, quando os deuses
enviaram um dilúvio para destruir o mundo, quase todos os humanos e
animais pereceram. Só então os precipitados deuses se deram conta
de que não restara ninguém para lhes fazer sacrifícios. Ficaram
loucos de fome e de aflição. Felizmente, uma família humana tinha
sobrevivido, graças à previsão do deus Enki, que instruíra o pio
Utnapishtim a se abrigar numa grande arca de madeira na companhia de
seus parentes e de uma coleção representativa de animais. Quando as
águas do dilúvio baixaram e esse Noé mesopotâmico saiu de sua
arca, a primeira coisa que fez foi sacrificar alguns animais aos
deuses. Então, continua a epopeia, todos os grandes deuses correram
para lá: “Os deuses farejaram o sabor/ os deuses farejaram o doce
sabor/ os deus enxamearam como moscas em torno da oferenda”. 27 A
história bíblica do dilúvio (escrita mais de mil anos depois da
versão mesopotâmica) também relata que, imediatamente após deixar
a arca, “Noé construiu um altar para o Senhor e, tomando alguns de
seus animais limpos e de suas aves limpas, ele sacrificou sobre ele
oferendas ardentes. O Senhor sentiu o agradável aroma e disse
consigo mesmo: ‘Nunca mais amaldiçoarei a terra por causa dos
humanos’” (Gênesis 8,20-1).
A
história do dilúvio tornou-se o mito fundador do mundo agrícola. É
possível obviamente atribuir-lhe um efeito mais ambientalista. O
dilúvio poderia nos ensinar que nossas ações podem arruinar o
ecossistema inteiro, e os humanos estão encarregados por
determinação divina de proteger o restante da criação. Mas
interpretações tradicionais o veem como uma prova da supremacia
humana e da inutilidade dos animais. Segundo essas interpretações,
Noé foi instruído a salvar o ecossistema inteiro para poder
proteger os interesses comuns de deuses e humanos, e não os
interesses dos animais. Organismos não humanos não têm valor
intrínseco e existem somente para nosso benefício.
Afinal,
quando “o Senhor viu quão grande se tornara a iniquidade da raça
humana”, Ele decidiu “varrer da face da Terra a raça humana que
criei — e com eles os animais, as aves e as criaturas que rastejam
no solo — pois arrependo-me de tê-los criado” (Gênesis 6,7). A
Bíblia acha que é perfeitamente correto destruir todos os animais
como punição pelos crimes do Homo sapiens, como se a
existência de girafas, pelicanos e joaninhas tivesse perdido todo
propósito em razão do mal comportamento dos humanos. A Bíblia não
conseguiria imaginar um cenário no qual Deus se arrependesse de ter
criado o Homo sapiens, varresse esse macaco pecaminoso da face
da Terra e depois passasse a eternidade se divertindo com os
trejeitos de avestruzes, cangurus e pandas.
As
religiões teístas, entretanto, adotam certas crenças amigáveis em
relação aos animais. Os deuses conferiram ao homem autoridade sobre
o reino animal, mas essa autoridade carrega algumas
responsabilidades. Por exemplo, aos judeus foi ordenado permitir que
os animais descansem no shabat e, na medida do possível,
evitar causar-lhes sofrimentos desnecessários. (Contudo, sempre que
os interesses entravam em conflito, os dos humanos se sobrepunham aos
dos animais.)
Um
conto talmúdico relata que, a caminho do matadouro, um bezerro fugiu
e buscou refúgio com o rabi Iehuda Hanassi, um dos fundadores do
judaísmo rabínico. O bezerro enfiou a cabeça sob as túnicas
esvoaçantes do rabi e começou a chorar. Mas o rabi empurrou o
animal e disse: “Vá. Você foi criado exatamente para esse fim”.
Como o rabi não demonstrou misericórdia, Deus o puniu, e ele
padeceu de uma doença dolorosa durante treze anos. Então, um dia,
ao limpar a casa do rabi e encontrar alguns ratos recém-nascidos, um
criado começou a varrê-los para fora. O rabi Iehuda correu para
salvar as criaturas indefesas, ordenando ao criado que as deixasse em
paz, porque “Deus é bom para todos e tem compaixão por tudo o que
criou” (Salmos 145,9). Como o rabi demonstrou compaixão por esses
ratos, Deus demonstrou compaixão pelo rabi, e ele foi curado de sua
doença.
Outras
religiões, particularmente o jainismo, o budismo e o hinduísmo,
demonstraram grande empatia pelos animais. Elas enfatizam a conexão
entre os humanos e o restante do ecossistema, e seu principal
mandamento ético consiste em evitar matar qualquer ser vivo.
Enquanto o bíblico “Não matarás” se refere apenas a humanos, o
antigo princípio indiano do ahimsa (não violência)
estende-se a todo ser sensível. Monges jainistas são especialmente
cuidadosos com relação a isso. Eles sempre cobrem suas bocas com um
pano branco, para não inalar nenhum inseto, e sempre que caminham
levam uma vassoura para delicadamente varrer toda formiga ou besouro
de seu caminho.
No
entanto, todas as religiões agrícolas — inclusive o jainismo, o
budismo e o hinduísmo — encontraram motivos para justificar a
superioridade humana e a exploração dos animais (se não pela
carne, então pelo leite e pela força muscular). Todas alegavam que
uma hierarquia natural dos seres autorizava os humanos a controlar e
usar outros animais, contanto que certas restrições fossem
respeitadas. O hinduísmo, por exemplo, santificou as vacas e proibiu
o consumo de carne bovina, mas também apresentou a justificativa
definitiva para a indústria de laticínios, alegando que vacas são
criaturas generosas e positivamente anseiam por partilhar seu leite
com a humanidade.
Assim,
os humanos se comprometeram com um “acordo agrícola”. Segundo
esse acordo, as forças cósmicas lhes deram o domínio sobre outros
animais, sob a condição de que os humanos cumprissem com certas
obrigações para com os deuses, a natureza e os próprios animais.
Era fácil acreditar na existência desse pacto cósmico porque ele
refletia a rotina cotidiana de vida agrícola.
Caçadores-coletores
não se viam como seres superiores porque raramente tinham
consciência do impacto que provocavam no ecossistema. Um grupo
típico, com algumas dezenas de membros, estava cercado por milhares
de animais selvagens, e sua sobrevivência dependia de saberem
compreender e respeitar os desejos desses animais. Coletores de
alimento tinham de se perguntar constantemente com o que sonhavam os
veados e no que pensavam os leões. Sem isso, não conseguiriam caçar
o veado nem escapar aos leões.
Os
agricultores, em contraste, viviam num mundo controlado e moldado
pelos sonhos e pensamentos humanos. Os humanos ainda estavam sujeitos
a forças naturais formidáveis, como tempestades e terremotos, mas
eram muito menos dependentes da vontade de outros animais. Um garoto
de fazenda aprendia desde cedo a montar um cavalo, arrear um touro,
fustigar um burro teimoso e levar as ovelhas para o pasto. Era fácil
e tentador acreditar que essas atividades do dia a dia refletiam ou a
ordem natural das coisas ou a vontade dos céus.
A
Revolução Agrícola foi assim uma revolução tanto econômica
quanto religiosa. Novos tipos de relações econômicas emergiram
juntamente com novos tipos de crenças religiosas que justificavam a
exploração brutal de animais. Esse processo antigo pode se
testemunhado ainda hoje quando as últimas comunidades restantes de
caçadores-coletores adotam a agricultura. Nos anos recentes, os
caçadores-coletores Nayaka, do sul da Índia, adotaram algumas
práticas agrícolas como a de criação de gado, de galinhas, e o
cultivo do chá. Não é de surpreender que também tenham adquirido
novas atitudes em relação a animais, e que adotem também posturas
diferentes para animais (e plantas) domésticos em comparação com
organismos selvagens.
Na
língua nayaka, um ser vivo possuidor de uma personalidade única é
chamado de mansan. Quando questionados pelo antropólogo Danny
Naveh, eles explicaram que todos os elefantes são mansan.
“Vivemos na floresta, eles vivem na floresta. Somos todos mansan…
Assim como os ursos, os veados e os tigres. Todos os animais da
floresta.” E quanto às vacas? “Vacas são diferentes. É preciso
conduzi-las para toda parte.” E as galinhas? “Elas não são
nada. Não são mansan.” E as árvores na floresta? “Sim —
as árvores vivem por muito tempo.” E o chá verde? “Ora, esse eu
cultivo, para vender as folhas de chá e comprar o que preciso na
loja. Não, eles não são mansan.”
A
degradação de animais, de seres conscientes que merecem respeito à
mera condição de propriedade, raramente ficou só no caso de vacas
e galinhas. A maior parte das sociedades agrícolas começou a tratar
várias classes de pessoas como se fossem também propriedade. No
antigo Egito, na Israel bíblica e na China medieval, era comum
escravizar humanos, torturá-los e executá-los até mesmo devido a
transgressões banais. Assim como camponeses não consultam vacas e
galinhas sobre como conduzir a fazenda, governantes nem sequer
sonhavam em pedir aos camponeses suas opiniões quanto a como
governar o reino. E quando grupos étnicos ou comunidades religiosas
entravam em conflito, frequentemente se desumanizavam reciprocamente.
Descrever “os outros” como animais sub-humanos era o primeiro
passo para tratá-los como tais. A fazenda agrícola tornou-se assim
o protótipo de novas sociedades, que incluíam os empolados
senhores, as raças inferiores destinadas a serem exploradas, animais
selvagens prontos para serem exterminados, e um grande Deus acima de
tudo, dando Sua bênção a esse arranjo todo.
Yuval
Noah Harari, in Homo Deus: uma breve história do amanhã
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