quarta-feira, 16 de outubro de 2019

O acordo agrícola

Como os criadores justificavam seu comportamento? Enquanto os caçadores-coletores tinham pouca consciência dos danos que infligiam ao ecossistema, os fazendeiros sabiam perfeitamente o que estavam fazendo. Sabiam que estavam explorando animais domésticos e os submetendo aos desejos e caprichos humanos. Justificavam suas ações em nome de novas religiões teístas, que se espalharam e se disseminaram na esteira da Revolução Agrícola. Essas religiões sustentavam que o Universo não é um parlamento de seres, e sim uma teocracia governada por um grupo de deuses grandiosos — ou talvez por um único e maiúsculo Deus. Normalmente não associamos essa ideia à agricultura, mas ao menos no início as religiões eram um empreendimento agrícola. A teologia, a mitologia e a liturgia de religiões como o judaísmo, o hinduísmo e o cristianismo giravam a princípio em torno das relações entre humanos, plantas domesticadas e animais em fazendas de criação.
O judaísmo bíblico, por exemplo, contemplava camponeses e pastores. A maior parte de seus mandamentos trata da vida no campo e em aldeias, e suas celebrações mais importantes eram os festivais de colheita. As pessoas hoje imaginam o antigo templo em Jerusalém como uma espécie de grande sinagoga onde sacerdotes de túnicas brancas como a neve davam as boas-vindas a peregrinos devotos; coros melodiosos cantavam salmos, e o incenso perfumava o ar. Na verdade, era algo muito mais parecido com um cruzamento de um matadouro com uma churrascaria. Os peregrinos não vinham de mãos vazias. Traziam consigo um fluir interminável de ovelhas, cabras, galinhas e outros animais, que eram sacrificados no altar divino, depois cozidos e comidos. Os coros que entoavam os salmos quase não eram ouvidos acima dos berros e balidos de bezerros e cabritos. Sacerdotes em roupas ensanguentadas cortavam a garganta das vítimas, colhiam em jarros o sangue que esguichava e o derramavam sobre o altar. O perfume do incenso se misturava aos odores de sangue coagulado e de carne assada, enquanto enxames de moscas-varejeiras zumbiam por toda parte (ver, por exemplo, Números 28, Deuteronômio 12 e 1 Samuel 2). Uma família judaica moderna que comemora uma festa religiosa com um churrasco no gramado está muito mais próxima do espírito dos tempos bíblicos do que uma família ortodoxa que passa esse dia estudando escrituras numa sinagoga. As religiões teístas, assim como o judaísmo bíblico, justificavam a economia agrícola com novos mitos cosmológicos. As religiões animistas descreviam o Universo como uma grande ópera chinesa com um elenco ilimitado de atores de todos os matizes. Elefantes e carvalhos, crocodilos e rios, montanhas e rãs, fantasmas e fadas, anjos e demônios — cada um desempenhava um papel na ópera cósmica.
As religiões teístas reescreveram o texto, fazendo do Universo um sombrio drama de Ibsen com apenas dois personagens: o homem e Deus. Anjos e demônios de algum modo sobreviveram à transição e tornaram-se mensageiros e servos dos grandes deuses. Mas o restante do elenco animista — todos os animais, plantas e demais fenômenos naturais — foi transformado em um cenário silencioso. De fato, alguns animais eram considerados sagrados para este ou aquele deus, e muitos deuses apresentavam feições de animais: o deus egípcio Anúbis tinha cabeça de chacal, e mesmo Jesus Cristo era frequentemente descrito como um cordeiro. Mas os antigos egípcios podiam dizer com facilidade qual era a diferença entre Anúbis e um chacal comum que se esgueirava na aldeia para caçar galinhas, e nenhum açougueiro cristão jamais confundiu o cordeiro sob sua faca com Jesus.
Normalmente pensamos que as religiões teístas santificavam os grandes deuses. Tendemos a esquecer que elas santificavam humanos também. Até então, o Homo sapiens tinha sido apenas um ator num elenco de milhares. No novo drama teísta, o Sapiens tornou-se o herói principal em torno do qual girava todo o Universo.
Os deuses, enquanto isso, receberam dois papéis inter-relacionados para representar. Primeiro, eles explicaram o que há de tão especial no que tange ao Sapiens e por que os humanos deveriam dominar e explorar todos os outros organismos. O cristianismo, por exemplo, sustentava que os humanos deveriam manter o domínio sobre o resto da criação porque o Criador lhe outorgara essa autoridade. Além disso, de acordo com o cristianismo, Deus atribuiu uma alma imortal somente aos humanos. Uma vez que o destino dessa alma eterna é o ponto crucial de todo o cosmo cristão, e uma vez que animais não têm alma, eles são meramente figurantes. Assim, os humanos tornam-se o ápice da criação, ao passo que todos os demais organismos são empurrados para o segundo plano.
Em segundo lugar, os deuses teriam de realizar uma mediação entre os humanos e o ecossistema. No cosmo animista, todos falavam com todos diretamente. Se precisasse de alguma coisa de um caribu, de uma figueira, das nuvens ou das rochas, você mesmo se dirigia a eles. No cosmo teísta, todas as entidades não humanas foram silenciadas. Consequentemente, não é mais possível falar com árvores e com animais. O que fazer, então, quando alguém quisesse que as árvores dessem mais frutos, as vacas dessem mais leite, as nuvens trouxessem mais chuvas e os gafanhotos deixassem suas colheitas em paz? É aí que os deuses entram em cena. Eles prometiam chuva, fertilidade e proteção, contanto que os humanos fizessem algo em troca. Essa era a essência do acordo agrícola. Os deuses salvaguardavam e multiplicavam a produção agrícola e, em troca, os humanos tinham de compartilhar sua produção com os deuses. Esse acordo servia a ambas as partes, à custa do restante do ecossistema.
No Nepal, devotos da deusa Gadhimai comemoram seu festival a cada cinco anos na aldeia de Bariyapur. Em 2009 estabeleceu-se um recorde: 250 mil animais foram sacrificados à deusa. Um motorista local explicou a um jornalista britânico visitante: “Se queremos algo e viemos aqui com uma oferenda à deusa, em cinco anos todos os nossos sonhos estarão realizados”.
Grande parte da mitologia teísta explica os detalhes sutis desse acordo. A epopeia mesopotâmica de Gilgamesh conta que, quando os deuses enviaram um dilúvio para destruir o mundo, quase todos os humanos e animais pereceram. Só então os precipitados deuses se deram conta de que não restara ninguém para lhes fazer sacrifícios. Ficaram loucos de fome e de aflição. Felizmente, uma família humana tinha sobrevivido, graças à previsão do deus Enki, que instruíra o pio Utnapishtim a se abrigar numa grande arca de madeira na companhia de seus parentes e de uma coleção representativa de animais. Quando as águas do dilúvio baixaram e esse Noé mesopotâmico saiu de sua arca, a primeira coisa que fez foi sacrificar alguns animais aos deuses. Então, continua a epopeia, todos os grandes deuses correram para lá: “Os deuses farejaram o sabor/ os deuses farejaram o doce sabor/ os deus enxamearam como moscas em torno da oferenda”. 27 A história bíblica do dilúvio (escrita mais de mil anos depois da versão mesopotâmica) também relata que, imediatamente após deixar a arca, “Noé construiu um altar para o Senhor e, tomando alguns de seus animais limpos e de suas aves limpas, ele sacrificou sobre ele oferendas ardentes. O Senhor sentiu o agradável aroma e disse consigo mesmo: ‘Nunca mais amaldiçoarei a terra por causa dos humanos’” (Gênesis 8,20-1).
A história do dilúvio tornou-se o mito fundador do mundo agrícola. É possível obviamente atribuir-lhe um efeito mais ambientalista. O dilúvio poderia nos ensinar que nossas ações podem arruinar o ecossistema inteiro, e os humanos estão encarregados por determinação divina de proteger o restante da criação. Mas interpretações tradicionais o veem como uma prova da supremacia humana e da inutilidade dos animais. Segundo essas interpretações, Noé foi instruído a salvar o ecossistema inteiro para poder proteger os interesses comuns de deuses e humanos, e não os interesses dos animais. Organismos não humanos não têm valor intrínseco e existem somente para nosso benefício.
Afinal, quando “o Senhor viu quão grande se tornara a iniquidade da raça humana”, Ele decidiu “varrer da face da Terra a raça humana que criei — e com eles os animais, as aves e as criaturas que rastejam no solo — pois arrependo-me de tê-los criado” (Gênesis 6,7). A Bíblia acha que é perfeitamente correto destruir todos os animais como punição pelos crimes do Homo sapiens, como se a existência de girafas, pelicanos e joaninhas tivesse perdido todo propósito em razão do mal comportamento dos humanos. A Bíblia não conseguiria imaginar um cenário no qual Deus se arrependesse de ter criado o Homo sapiens, varresse esse macaco pecaminoso da face da Terra e depois passasse a eternidade se divertindo com os trejeitos de avestruzes, cangurus e pandas.
As religiões teístas, entretanto, adotam certas crenças amigáveis em relação aos animais. Os deuses conferiram ao homem autoridade sobre o reino animal, mas essa autoridade carrega algumas responsabilidades. Por exemplo, aos judeus foi ordenado permitir que os animais descansem no shabat e, na medida do possível, evitar causar-lhes sofrimentos desnecessários. (Contudo, sempre que os interesses entravam em conflito, os dos humanos se sobrepunham aos dos animais.) 
Um conto talmúdico relata que, a caminho do matadouro, um bezerro fugiu e buscou refúgio com o rabi Iehuda Hanassi, um dos fundadores do judaísmo rabínico. O bezerro enfiou a cabeça sob as túnicas esvoaçantes do rabi e começou a chorar. Mas o rabi empurrou o animal e disse: “Vá. Você foi criado exatamente para esse fim”. Como o rabi não demonstrou misericórdia, Deus o puniu, e ele padeceu de uma doença dolorosa durante treze anos. Então, um dia, ao limpar a casa do rabi e encontrar alguns ratos recém-nascidos, um criado começou a varrê-los para fora. O rabi Iehuda correu para salvar as criaturas indefesas, ordenando ao criado que as deixasse em paz, porque “Deus é bom para todos e tem compaixão por tudo o que criou” (Salmos 145,9). Como o rabi demonstrou compaixão por esses ratos, Deus demonstrou compaixão pelo rabi, e ele foi curado de sua doença.
Outras religiões, particularmente o jainismo, o budismo e o hinduísmo, demonstraram grande empatia pelos animais. Elas enfatizam a conexão entre os humanos e o restante do ecossistema, e seu principal mandamento ético consiste em evitar matar qualquer ser vivo. Enquanto o bíblico “Não matarás” se refere apenas a humanos, o antigo princípio indiano do ahimsa (não violência) estende-se a todo ser sensível. Monges jainistas são especialmente cuidadosos com relação a isso. Eles sempre cobrem suas bocas com um pano branco, para não inalar nenhum inseto, e sempre que caminham levam uma vassoura para delicadamente varrer toda formiga ou besouro de seu caminho.
No entanto, todas as religiões agrícolas — inclusive o jainismo, o budismo e o hinduísmo — encontraram motivos para justificar a superioridade humana e a exploração dos animais (se não pela carne, então pelo leite e pela força muscular). Todas alegavam que uma hierarquia natural dos seres autorizava os humanos a controlar e usar outros animais, contanto que certas restrições fossem respeitadas. O hinduísmo, por exemplo, santificou as vacas e proibiu o consumo de carne bovina, mas também apresentou a justificativa definitiva para a indústria de laticínios, alegando que vacas são criaturas generosas e positivamente anseiam por partilhar seu leite com a humanidade.
Assim, os humanos se comprometeram com um “acordo agrícola”. Segundo esse acordo, as forças cósmicas lhes deram o domínio sobre outros animais, sob a condição de que os humanos cumprissem com certas obrigações para com os deuses, a natureza e os próprios animais. Era fácil acreditar na existência desse pacto cósmico porque ele refletia a rotina cotidiana de vida agrícola.
Caçadores-coletores não se viam como seres superiores porque raramente tinham consciência do impacto que provocavam no ecossistema. Um grupo típico, com algumas dezenas de membros, estava cercado por milhares de animais selvagens, e sua sobrevivência dependia de saberem compreender e respeitar os desejos desses animais. Coletores de alimento tinham de se perguntar constantemente com o que sonhavam os veados e no que pensavam os leões. Sem isso, não conseguiriam caçar o veado nem escapar aos leões.
Os agricultores, em contraste, viviam num mundo controlado e moldado pelos sonhos e pensamentos humanos. Os humanos ainda estavam sujeitos a forças naturais formidáveis, como tempestades e terremotos, mas eram muito menos dependentes da vontade de outros animais. Um garoto de fazenda aprendia desde cedo a montar um cavalo, arrear um touro, fustigar um burro teimoso e levar as ovelhas para o pasto. Era fácil e tentador acreditar que essas atividades do dia a dia refletiam ou a ordem natural das coisas ou a vontade dos céus.
A Revolução Agrícola foi assim uma revolução tanto econômica quanto religiosa. Novos tipos de relações econômicas emergiram juntamente com novos tipos de crenças religiosas que justificavam a exploração brutal de animais. Esse processo antigo pode se testemunhado ainda hoje quando as últimas comunidades restantes de caçadores-coletores adotam a agricultura. Nos anos recentes, os caçadores-coletores Nayaka, do sul da Índia, adotaram algumas práticas agrícolas como a de criação de gado, de galinhas, e o cultivo do chá. Não é de surpreender que também tenham adquirido novas atitudes em relação a animais, e que adotem também posturas diferentes para animais (e plantas) domésticos em comparação com organismos selvagens.
Na língua nayaka, um ser vivo possuidor de uma personalidade única é chamado de mansan. Quando questionados pelo antropólogo Danny Naveh, eles explicaram que todos os elefantes são mansan. “Vivemos na floresta, eles vivem na floresta. Somos todos mansan… Assim como os ursos, os veados e os tigres. Todos os animais da floresta.” E quanto às vacas? “Vacas são diferentes. É preciso conduzi-las para toda parte.” E as galinhas? “Elas não são nada. Não são mansan.” E as árvores na floresta? “Sim — as árvores vivem por muito tempo.” E o chá verde? “Ora, esse eu cultivo, para vender as folhas de chá e comprar o que preciso na loja. Não, eles não são mansan.”
A degradação de animais, de seres conscientes que merecem respeito à mera condição de propriedade, raramente ficou só no caso de vacas e galinhas. A maior parte das sociedades agrícolas começou a tratar várias classes de pessoas como se fossem também propriedade. No antigo Egito, na Israel bíblica e na China medieval, era comum escravizar humanos, torturá-los e executá-los até mesmo devido a transgressões banais. Assim como camponeses não consultam vacas e galinhas sobre como conduzir a fazenda, governantes nem sequer sonhavam em pedir aos camponeses suas opiniões quanto a como governar o reino. E quando grupos étnicos ou comunidades religiosas entravam em conflito, frequentemente se desumanizavam reciprocamente. Descrever “os outros” como animais sub-humanos era o primeiro passo para tratá-los como tais. A fazenda agrícola tornou-se assim o protótipo de novas sociedades, que incluíam os empolados senhores, as raças inferiores destinadas a serem exploradas, animais selvagens prontos para serem exterminados, e um grande Deus acima de tudo, dando Sua bênção a esse arranjo todo.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: uma breve história do amanhã

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