Continuamos
a rastejar através do estreito corredor, passando junto às rodas
dos carros. Volks, corcéis, opalas, galaxies, kombis, brasílias,
camionetes, caminhões, limusines, trailers, micro-ônibus, peruas,
passats, emepês. Veículos imensos, outros mínimos, enferrujados,
apodrecidos.
Depenados
por dentro. Os próprios donos, ao abandoná-los, ou os saqueadores,
mais tarde, levaram tudo. Assentos, relógios, toca-fitas, rádios,
minitevês, telefones, conta-giros, volantes, ar-condicionado,
amplificadores, desembaçador, antena elétrica, sistema de alarme.
Trava,
console, minibar, vidros ray-ban, aquecedor, e toda a parafernália
que transmitia a sensação de status, conferia poder. Os saqueadores
eram organizados e temidos, caçados, da mesma maneira que no antigo
Egito procuravam-se e combatiam-se os saqueadores de tumbas reais.
Carcaças
vazias, desnecessárias. Mostruários da inutilidade, provas dos
símbolos ilusórios que foram. Ali se desmantelavam corroídos,
ocos, demonstração de um sonho perecível que se esgotou muito
antes do despertar. E a lembrança, agora, é tênue, se esvai a cada
dia.
– Daquele
pilar em diante, podemos ir em pé.
– Já
era tempo.
– Vamos
junto à amurada, é mais fácil caminhar por ali.
– Perdi
a noção do tempo. Imagina que horas são?
– Que
horas são? O que interessa, Souza?
– Costume.
– Mania.
Não aguento, o dia inteiro naquele elevador, as pessoas me
perguntado: que horas são, por favor? Que horas são? Os que não
perguntam consultam o relógio assim que fecho a porta do elevador. E
agora você!
– Você
anda irritado, Tadeu!
– E
você, comportado. O que aconteceu, Souza? Está diferente, todo
cheio de hábitos!
No
pilar, uma frase meio apagada, escrita com spray vermelho: Mercúrio
não é vitamina. Há dez anos, a cidade inteira tinha sido
tomada por inscrições na última campanha em defesa do meio. Os
Civiltares caçaram os pichadores até exterminá-los. O Esquema foi
à televisão.
“Não
precisamos que lembrem nossos deveres”, disse o presidente.
“Estamos alertas aos problemas, equipes estudam, comissões
trabalham. Necessitamos de tranquilidade para solucionar as questões
que afetam o povo. Os agitadores serão combatidos dentro da lei e da
ordem. Implacavelmente.”
Hoje
a população está convencida. Mas o Esquema mantém o sistema de
persuasão em estado latente. As campanhas foram iniciativa das
agências de publicidade para ganhar favores governamentais.
Programas na televisão, curta-metragens nos cinemas, slogans na
Rádio Geral. Envolventes, sufocantes.
Vivendo
intoxicados, abordados por todos os lados. Pelo ar e com os métodos
de insinuação, não mais sutis, com que nos bombardeiam. Dopados.
Quantas vezes me vi automaticamente a defender o Esquema. E então me
surpreendia com o desdobramento inexplicável que se produzia em mim.
Estava
falando, e me via falando. Eu era o outro a me contemplar. Um ser que
ouvia a mim mesmo, duplicado. Surpreso, menos com a duplicação do
que com as ideias que escutava. Pensei que estivesse louco, contei a
Adelaide, ela recomendou o médico, é claro. Mas um psiquiatra
significa Isolamento.
– Pronto,
agora a gente anda direito.
– E
talvez você possa me dizer onde estamos indo?
– Nem
falamos nisso, hein?
– O
que mostra minha confiança em você.
– Vamos
para a nossa reservinha.
– Não
é uma reservinha multi-internacional?
– Não
é nem intermunicipal.
– Reservinha
do quê?
– Faz
anos que a gente trabalha no projeto. Está dando certo, ainda que as
condições sejam difíceis. Temos um bom número de animais.
– Animais?
De verdade?
– Souza,
das poucas coisas que os laboratórios do Esquema ainda não
conseguiram foram animais factícios. Essa não dá! Há quanto tempo
fabricam ovos? Mas são ovos que não chocam, não se reproduzem.
Falta o essencial.
– Tadeu,
Tadeu! Olha bem o que está dizendo. O que está admitindo!
– Admito
o essencial, não tenho como fugir.
– E
esses animais?
– Começou
há trinta anos. Ou mais. Não sou bom para datas. Havia uma reserva
em Sorocaba. Naquele tempo a cidade era desligada de São Paulo. Os
cientistas de lá conseguiram reproduzir em cativeiro animais que
estavam para se extinguir. Trabalharam e conservaram exemplares como
o cisne-de-pescoço-preto, a anta, as emas, o pato-de-crista. Não
vou te dizer tudo, você vai ver daqui a pouco. Quando as indústrias
ocuparam totalmente Sorocaba, Votorantim, Brigadeiro Tobias, São
Roque, Cotia, as prefeituras desapropriaram, exterminaram a reserva.
Animais e aves permaneceram engaiolados por semanas. Muitos morreram
enquanto os cientistas testavam contatos. Naquele tempo, a gente já
desenvolvia pesquisas com verduras e frutas, lutando contra o solo
contaminado por chumbo. Os animais vieram para a reserva que fica na
altura do antigo quartel de Barueri.
– A
região do lixo! No Sítio do Inferno?
A
freeway estendia-se por sobre um campo branco-amarelado. Como se
fosse um minideserto, raso, plano. O valo seco do Tietê cortava a
extensão ao meio. Centenas de estatuetas escuras povoavam o
descampado. Pareciam de gesso, porcelana envelhecida, cerâmica
cozida, louça, sei lá.
Dava
a impressão de ter sido um grande jardim, em que a vegetação secou
e as estatuetas sobraram, solitárias, desamparadas. Curioso, a gente
vive anos numa cidade e não a conhece. Jamais ouvi falar que por
estes lados tivesse algum parque, horto. Teria sido particular?
– E
aqui, Tadeu?
– É
a Várzea dos Pássaros de Pó.
– Nunca
ouvi falar.
– Era
uma várzea alagada. O Tietê enchia, inundava as margens. Houve
tempo em que foi a zona de hortas. Fazia parte do cinturão verde.
Olhe as estátuas. O que são?
– Aves.
– Pois
é. Elas vieram do litoral. Atravessaram a serra do Mar e desceram
aqui. Nunca mais voaram.
– Por
que para cá?
– Instinto
de bicho, decerto. Ninguém consegue explicar. Dizem que nos alagados
havia alimentação. Bichinhos, caranguejos, todo esse tipo de
coisas. Então os pássaros vinham.
– Vinham
do litoral?
– Eles
se alimentavam de peixes, coisa da água. Quando não encontraram
mais o que comer no mar, subiram. Tentaram mudar de hábitat.
– Não
voavam por causa da mudança?
– Não.
Quando mergulhavam no mar, voltavam com o corpo cheio de óleo.
Ficava difícil voar. As aves que chegaram aqui são heroicas. O
último voo. Chegaram, desceram, tornaram-se bichos de asas que não
voariam mais. Com o sol, presume-se que o óleo endureceu, fechou os
poros. Elas morreram. Foram cobertas pela poeira, tornaram-se o que
você vê aí.
– Até
que é bonito!
– Bonito!
O pior é que é bonito.
Lua
fraca, começava a amanhecer. Fazia tempo que eu não passava a noite
acordado, pensava que não conseguiria mais. Por trás das montanhas
desenhava-se uma fita de luz. Descemos por uma escada de cordas, meus
pés mergulharam numa camada macia de pó que me bateu na canela.
Por
dentro dos montes havia atalhos. Um labirinto. Eu via brinquedos,
utensílios de cozinha, galões, bolas, letreiros, as milhares de
coisas produzidas em plástico. Que o plástico substituíra tudo, o
alumínio, a madeira, os tecidos. Amontoavam-se. Coloridos e
amassados, indestrutíveis.
– Prepare-se.
Isso é quase sagrado. Se você me entende.
Ficamos
em silêncio. Eu imaginava que estava comovido. Sentia um frio na
barriga. Tadeu virou-se, caminhou alguns passos. Entrávamos na
reservinha. Percebi o cheiro de bosta animal. Puxa, foi ao fundo do
estômago. Me esfriou. Mas não gelou tanto quanto o grito de dor que
Tadeu deu.
Parei.
O grito parecia não acabar mais. Não sei se era o eco, ou se Tadeu
possuía tal força nos pulmões. Atrás dele, eu não via nada, o
atalho era estreito. O grito me paralisava, assustava. Via Tadeu
tremendo. Teria sofrido um ataque? Virou-se para mim, perplexo, com
lágrimas.
– Olhe
só. Olhe sóóóóóóóóóó.
Mordia
os lábios, o sangue escorria. Era mais que dor que ele sofria.
Tremia convulsivamente. Na sua idade, não ia aguentar. Segurei suas
mãos. Ele me apertou, como quem precisa de apoio. Precisava mesmo.
Ele não estava mais à minha frente. Eu também via, e não
acreditava. Não podia.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Nas verás país nenhum
Nenhum comentário:
Postar um comentário