quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Depois da Várzea dos Pássaros de Pó, atingem a região do grande lixo plástico. Paralisados, horrorizados, não acreditam no que estão vendo

Continuamos a rastejar através do estreito corredor, passando junto às rodas dos carros. Volks, corcéis, opalas, galaxies, kombis, brasílias, camionetes, caminhões, limusines, trailers, micro-ônibus, peruas, passats, emepês. Veículos imensos, outros mínimos, enferrujados, apodrecidos.
Depenados por dentro. Os próprios donos, ao abandoná-los, ou os saqueadores, mais tarde, levaram tudo. Assentos, relógios, toca-fitas, rádios, minitevês, telefones, conta-giros, volantes, ar-condicionado, amplificadores, desembaçador, antena elétrica, sistema de alarme.
Trava, console, minibar, vidros ray-ban, aquecedor, e toda a parafernália que transmitia a sensação de status, conferia poder. Os saqueadores eram organizados e temidos, caçados, da mesma maneira que no antigo Egito procuravam-se e combatiam-se os saqueadores de tumbas reais.
Carcaças vazias, desnecessárias. Mostruários da inutilidade, provas dos símbolos ilusórios que foram. Ali se desmantelavam corroídos, ocos, demonstração de um sonho perecível que se esgotou muito antes do despertar. E a lembrança, agora, é tênue, se esvai a cada dia.
Daquele pilar em diante, podemos ir em pé.
Já era tempo.
Vamos junto à amurada, é mais fácil caminhar por ali.
Perdi a noção do tempo. Imagina que horas são?
Que horas são? O que interessa, Souza?
Costume.
Mania. Não aguento, o dia inteiro naquele elevador, as pessoas me perguntado: que horas são, por favor? Que horas são? Os que não perguntam consultam o relógio assim que fecho a porta do elevador. E agora você!
Você anda irritado, Tadeu!
E você, comportado. O que aconteceu, Souza? Está diferente, todo cheio de hábitos!
No pilar, uma frase meio apagada, escrita com spray vermelho: Mercúrio não é vitamina. Há dez anos, a cidade inteira tinha sido tomada por inscrições na última campanha em defesa do meio. Os Civiltares caçaram os pichadores até exterminá-los. O Esquema foi à televisão.
Não precisamos que lembrem nossos deveres”, disse o presidente. “Estamos alertas aos problemas, equipes estudam, comissões trabalham. Necessitamos de tranquilidade para solucionar as questões que afetam o povo. Os agitadores serão combatidos dentro da lei e da ordem. Implacavelmente.”
Hoje a população está convencida. Mas o Esquema mantém o sistema de persuasão em estado latente. As campanhas foram iniciativa das agências de publicidade para ganhar favores governamentais. Programas na televisão, curta-metragens nos cinemas, slogans na Rádio Geral. Envolventes, sufocantes.
Vivendo intoxicados, abordados por todos os lados. Pelo ar e com os métodos de insinuação, não mais sutis, com que nos bombardeiam. Dopados. Quantas vezes me vi automaticamente a defender o Esquema. E então me surpreendia com o desdobramento inexplicável que se produzia em mim.
Estava falando, e me via falando. Eu era o outro a me contemplar. Um ser que ouvia a mim mesmo, duplicado. Surpreso, menos com a duplicação do que com as ideias que escutava. Pensei que estivesse louco, contei a Adelaide, ela recomendou o médico, é claro. Mas um psiquiatra significa Isolamento.
Pronto, agora a gente anda direito.
E talvez você possa me dizer onde estamos indo?
Nem falamos nisso, hein?
O que mostra minha confiança em você.
Vamos para a nossa reservinha.
Não é uma reservinha multi-internacional?
Não é nem intermunicipal.
Reservinha do quê?
Faz anos que a gente trabalha no projeto. Está dando certo, ainda que as condições sejam difíceis. Temos um bom número de animais.
Animais? De verdade?
Souza, das poucas coisas que os laboratórios do Esquema ainda não conseguiram foram animais factícios. Essa não dá! Há quanto tempo fabricam ovos? Mas são ovos que não chocam, não se reproduzem. Falta o essencial.
Tadeu, Tadeu! Olha bem o que está dizendo. O que está admitindo!
Admito o essencial, não tenho como fugir.
E esses animais?
Começou há trinta anos. Ou mais. Não sou bom para datas. Havia uma reserva em Sorocaba. Naquele tempo a cidade era desligada de São Paulo. Os cientistas de lá conseguiram reproduzir em cativeiro animais que estavam para se extinguir. Trabalharam e conservaram exemplares como o cisne-de-pescoço-preto, a anta, as emas, o pato-de-crista. Não vou te dizer tudo, você vai ver daqui a pouco. Quando as indústrias ocuparam totalmente Sorocaba, Votorantim, Brigadeiro Tobias, São Roque, Cotia, as prefeituras desapropriaram, exterminaram a reserva. Animais e aves permaneceram engaiolados por semanas. Muitos morreram enquanto os cientistas testavam contatos. Naquele tempo, a gente já desenvolvia pesquisas com verduras e frutas, lutando contra o solo contaminado por chumbo. Os animais vieram para a reserva que fica na altura do antigo quartel de Barueri.
A região do lixo! No Sítio do Inferno?
A freeway estendia-se por sobre um campo branco-amarelado. Como se fosse um minideserto, raso, plano. O valo seco do Tietê cortava a extensão ao meio. Centenas de estatuetas escuras povoavam o descampado. Pareciam de gesso, porcelana envelhecida, cerâmica cozida, louça, sei lá.
Dava a impressão de ter sido um grande jardim, em que a vegetação secou e as estatuetas sobraram, solitárias, desamparadas. Curioso, a gente vive anos numa cidade e não a conhece. Jamais ouvi falar que por estes lados tivesse algum parque, horto. Teria sido particular?
E aqui, Tadeu?
É a Várzea dos Pássaros de Pó.
Nunca ouvi falar.
Era uma várzea alagada. O Tietê enchia, inundava as margens. Houve tempo em que foi a zona de hortas. Fazia parte do cinturão verde. Olhe as estátuas. O que são?
Aves.
Pois é. Elas vieram do litoral. Atravessaram a serra do Mar e desceram aqui. Nunca mais voaram.
Por que para cá?
Instinto de bicho, decerto. Ninguém consegue explicar. Dizem que nos alagados havia alimentação. Bichinhos, caranguejos, todo esse tipo de coisas. Então os pássaros vinham.
Vinham do litoral?
Eles se alimentavam de peixes, coisa da água. Quando não encontraram mais o que comer no mar, subiram. Tentaram mudar de hábitat.
Não voavam por causa da mudança?
Não. Quando mergulhavam no mar, voltavam com o corpo cheio de óleo. Ficava difícil voar. As aves que chegaram aqui são heroicas. O último voo. Chegaram, desceram, tornaram-se bichos de asas que não voariam mais. Com o sol, presume-se que o óleo endureceu, fechou os poros. Elas morreram. Foram cobertas pela poeira, tornaram-se o que você vê aí.
Até que é bonito!
Bonito! O pior é que é bonito.
Lua fraca, começava a amanhecer. Fazia tempo que eu não passava a noite acordado, pensava que não conseguiria mais. Por trás das montanhas desenhava-se uma fita de luz. Descemos por uma escada de cordas, meus pés mergulharam numa camada macia de pó que me bateu na canela.
Por dentro dos montes havia atalhos. Um labirinto. Eu via brinquedos, utensílios de cozinha, galões, bolas, letreiros, as milhares de coisas produzidas em plástico. Que o plástico substituíra tudo, o alumínio, a madeira, os tecidos. Amontoavam-se. Coloridos e amassados, indestrutíveis.
Prepare-se. Isso é quase sagrado. Se você me entende.
Ficamos em silêncio. Eu imaginava que estava comovido. Sentia um frio na barriga. Tadeu virou-se, caminhou alguns passos. Entrávamos na reservinha. Percebi o cheiro de bosta animal. Puxa, foi ao fundo do estômago. Me esfriou. Mas não gelou tanto quanto o grito de dor que Tadeu deu.
Parei. O grito parecia não acabar mais. Não sei se era o eco, ou se Tadeu possuía tal força nos pulmões. Atrás dele, eu não via nada, o atalho era estreito. O grito me paralisava, assustava. Via Tadeu tremendo. Teria sofrido um ataque? Virou-se para mim, perplexo, com lágrimas.
Olhe só. Olhe sóóóóóóóóóó.
Mordia os lábios, o sangue escorria. Era mais que dor que ele sofria. Tremia convulsivamente. Na sua idade, não ia aguentar. Segurei suas mãos. Ele me apertou, como quem precisa de apoio. Precisava mesmo. Ele não estava mais à minha frente. Eu também via, e não acreditava. Não podia.
Ignácio de Loyola Brandão, in Nas verás país nenhum

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