sábado, 19 de outubro de 2019

Beleza

A mais nobre necessidade do homem é servida pela natureza, nomeadamente: o amor à Beleza.
Os antigos gregos chamavam ao mundo kosmos, beleza.
A constituição de todas as coisas ou o poder plástico do olho humano são tais, que as formas primordiais como o céu, a montanha, a árvore e o animal nos provocam deleite em si e por si mesmas. Um gozo que surge de seu perfil, cor, movimento e maneira de agrupá-las. Isso parece dever-se em parte ao olho mesmo, que é o melhor dos artistas. Mediante a ação recíproca de sua estrutura e das leis da luz, produz-se a perspectiva, que integra cada massa de objetos – qualquer que seja seu caráter em um colorido e bem sombreado globo, de tal modo que ali onde os objetos individuais são vulgares e anódinos, a paisagem que eles compõem é bem acabada e simétrica.
E, assim como o olho é o melhor dos compositores, a luz é a primeira entre os pintores. Não há objeto tão execrável que não se torne bonito sob a luz intensa. E o estímulo que esta oferece aos sentidos, e uma espécie de infinitude que possui, como o espaço e o tempo, fazem com que toda a matéria se alvoroce. Até um cadáver tem sua beleza peculiar. Mas, aparte essa graça geral difundida pela natureza, quase todas e cada uma das formas são agradáveis aos olhos, como provam nossas intermináveis imitações de algumas delas: a bolota, a uva, a pinha, a espiga de trigo, o ovo, as asas e o corpo da maioria dos pássaros, a garra do leão, a serpente, a borboleta, as conchas marinhas, as chamas, as nuvens, os brotos, as folhas e as formas de numerosas árvores, como a palmeira.
Para um melhor exame, podemos distribuir em três partes os aspectos da Beleza:

1. Em primeiro lugar, a mera percepção das formas naturais é um gozo. Tanto necessita o homem do influxo das formas e ações da natureza que, em suas funções inferiores, parecem jazer dentro dos confins dos bens materiais e da beleza. Ao corpo e a mente viciados por uma tarefa ou uma companhia perniciosas, a natureza os cura e lhes devolve seu templo. O comerciante ou o letrado que se aparta do estrépito e do tumulto das ruas e olha o céu e os bosques, volta a ser um homem. Em sua calma eterna, reencontra-se consigo mesmo. O olho parece exigir para sua saúde um horizonte. Nunca nos cansamos, contanto que possamos ver longe o bastante.
Porém, em outras horas, a Natureza satisfaz apenas com seu encanto, sem mescla alguma de benefício corpóreo.
Contemplo desde o cume da colina que se instala detrás da minha casa o espetáculo do amanhecer, desde a aurora até o pôr-do-sol, e sinto o que um anjo sentiria. As largas, esbeltas franjas de nuvens flutuam como peixes no mar de luz purpúrea. Desde a terra, como se fosse uma praia, observo esse mar silente. Imagino-me participando de suas rápidas transformações; o ativo encantamento move minha poeira, e eu me dilato e inspiro, em uníssono com a brisa matinal. Como nos diviniza a natureza com uns poucos e baratos elementos! Dá-me a saúde e o dia, e toda a pompa dos imperadores se me tornará ridícula. A aurora é minha Assíria, o crepúsculo e o claro da lua são minha Pafos e inimagináveis reinos de fantasia; o largo meio-dia será a Inglaterra dos meus sentidos e entendimento; a noite, minha Alemanha da filosofia mística e sonhos.
Não menos excelso – salvo pelo fato de que nossa suscetibilidade é menor de tarde – foi o delicioso crepúsculo de ontem. No poente, as nuvens se dividiam e voltavam a se dividir em flocos rosados com tons de indizível maciez, e o ar de janeiro era tão vivo e suave que entrar em casa causaria um pesar. O que é que queria nos dizer a natureza? Acaso não tinha nenhum significado o vívido repouso do vale detrás do moinho, que nem Homero nem Shakespeare haviam podido recriar em palavras para mim? As árvores desfolhadas se tornam flamejantes espirais no ocaso, sobre a tela de fundo do Leste azulado, e as estrelas dos mortos cálices das flores, e cada tronco seco e cada restolho queimado de geada contribuem em algo com a muda música.
Os habitantes das cidades supõem que a paisagem do campo só é amável durante metade do ano. Eu me comprazo com a graça da cena invernal e creio que nos chega tanto como as influências cordiais do verão. Para o olho atento, cada momento do ano tem sua própria beleza, e em um mesmo lugar do campo contempla-se hora após hora um quadro que não se viu jamais e que jamais se voltará a ver. Os céus mudam a cada instante e refletem sua glória ou sua desdita pelas planícies abaixo.
De uma semana para outra, o estágio das plantações nas fazendas vizinhas altera a expressão da terra. A sucessão das plantas locais nos pastos e caminhos, silencioso relógio mediante o qual o tempo marca as horas estivais, faria perceptíveis até as divisões do dia a um fino observador.
Revoadas de pássaros e insetos, pontuais como as plantas, seguem-se umas às outras, e em um ano cabem todos. Nas águas correntes, a variedade é ainda maior. Em julho, nos baixios de nosso amável rio, florescem em grandes leitos as pontederias azuis, frequentadas por borboletas amarelas em contínuo movimento. A arte não pode rivalizar com esta pompa de ouro e púrpura. O rio está, em verdade, perpetuamente engalanado, e enverga a cada mês um novo adorno.
Mas esta beleza da natureza que se vê e sente como tal é a menor de suas partes. Os espetáculos do dia, a orvalhada manhã, o arco-íris, montanhas, hortos floridos, estrelas, o claro da lua, as sombras na água quieta e assim sucessivamente, se perseguidos com demasiado afinco, tornam-se meros espetáculos e zombam de nós com sua irrealidade. Saia de sua casa para ver a lua, e não passa de lantejoula; não será tão agradável como quando sua luz alumbra a sua viagem indispensável. Quem pode capturar a beleza que tremeluz nas amarelas tardes de outubro? Tente pegá-la, e já se foi; é apenas uma miragem vista pelas janelas da diligência.

2. A presença de um elemento superior, a saber, o elemento espiritual, é essencial para sua perfeição. A alta e divina beleza que pode ser amada sem enlanguescimento é aquela que se encontra combinada com a humana vontade. A beleza é o selo que Deus põe sobre a virtude.
Toda ação natural é graciosa; o é também todo ato heroico, que faz resplandecer o lugar e sua audiência. As grandes ações nos ensinam que o universo é propriedade de todos e de cada um dos indivíduos que nele habitam. Cada ser racional tem por dote e herança a natureza inteira. É sua, se assim o deseja. Pode desfazer-se dela, fugir a algum rincão e abdicar de seu reino, como o faz a maioria dos homens, mas sua própria constituição lhe confere direitos intrínsecos sobre aquele mundo, e o levará em seu interior em proporção à energia de seu pensamento e de sua vontade.
Todas as coisas pelas quais os homens aram, constroem ou navegam obedecem à virtude”, disse Salústio.
Os ventos e as ondas...” – diz Gibbon – “...acompanham sempre os mais hábeis marinheiros.”
O mesmo ocorre com o sol e a lua e todas as estrelas.
Quando se leva a cabo um ato nobre – talvez, por sorte, em um cenário de grande beleza natural; quando Leônidas e seus trezentos mártires levam todo um dia para morrer, e primeiro o sol e logo a lua vêm vê-los naquele íngreme desfiladeiro das Termópilas; quando Arnold Winkelried, nos altos Alpes, sob a sombra da avalanche, reúne ao seu lado um feixe de lanças austríacas para dar passagem a seus camaradas; não têm direito esses heróis a ornar com a beleza do lugar a beleza de suas façanhas? Quando a caravela de Colombo se aproxima das costas da América – tendo adiante os selvagens alinhados na praia, saídos de suas cabanas de juncos; por trás o mar, e de ambos os lados as montanhas arroxeadas do arquipélago das Bahamas –, cabe separar o homem desse quadro vívido?
Não está revestido pelas formas do Novo Mundo, com suas filas de palmeiras e suas matas como cortinas legítimas? A beleza natural sempre se filtra furtiva como o ar, e envolve as grandes ações. Quando Sir Harry Vane era arrastrado pelas ladeiras de Tower Hill, sentado em um trenó a caminho da morte, como o grande defensor das leis inglesas, alguém na multidão gritou para ele “Jamais te sentastes em um trono mais glorioso!”. Charles II, para intimidar os cidadãos de Londres, ordenou que o patriota Lord Russell fosse conduzido à forca em um carro aberto, passando pelas ruas principais da cidade. “No entanto,” agrega seu biógrafo, “a multidão imaginava ver a liberdade e a virtude sentadas ao seu lado.” Na vida privada, em meio a sórdidos objetivos, um ato de verdade ou heroísmo parece atrair para si simultaneamente o céu como templo e o sol como vela. A natureza estende seus braços para acolher o homem, bastando apenas que seus pensamentos sejam de igual grandeza. Voluntariamente, ela segue os seus passos com o rosa e o violeta, e cede suas linhas de graça e imponência para adornar sua criança querida. Basta deixar que seus pensamentos sejam de igual abrangência, e a moldura se ajustará ao quadro. Um homem virtuoso vive em uníssono com as obras da natureza e se converte na figura central da esfera visível. Homero, Píndaro, Sócrates, Fócion, se associam apropriadamente em nossa memória com a geografia e o clima da Grécia. O céu e a terra visíveis simpatizavam com Jesus. E na vida comum, quem quer que haja visto uma pessoa de caráter forte e gênio feliz, terá notado o quão facilmente arrasta consigo todas as coisas – os seres humanos, as opiniões, a época – e a natureza se subordina a um homem.

3. Ainda há outro aspecto sobre o qual a beleza do mundo pode ser vista, nomeadamente, quando se transforma em um objeto do intelecto. Além da relação das coisas com a virtude, elas têm uma relação com o pensamento. O intelecto busca a ordem absoluta das coisas, tal como se estivessem na mente de Deus, sem as cores da afeição. As faculdades intelectual e ativa parecem suceder-se uma a outra, e a ação exclusiva de uma gera a ação exclusiva da outra. Há algo mutuamente hostil entre ambas, que é como os períodos alternados de alimentação e trabalho nos animais; cada qual preparando e sendo seguido pelo outro. Assim faz a beleza, que, quanto às ações, como temos visto, vem sem que a busquemos, e vem porque não a buscamos, permanecendo para a apreensão e busca do intelecto; e então, por sua vez, do poder ativo. Nada divino morre. Tudo o que é bom se reproduz eternamente. A beleza da natureza reforma a si mesma na mente, e não para a contemplação estéril, mas para uma nova criação.
Todos os homens são em algum grau impressionados pela face do mundo; alguns homens até o deleite. Este amor pela beleza é o Gosto. Outros têm esse amor em tal excesso que, não satisfeitos em admirar, procuram incorporá-lo em novas formas. A criação de beleza é a Arte.
A produção de uma obra de arte lança alguma luz sobre o mistério da humanidade. Uma obra de arte é uma síntese ou epítome do mundo. É, em miniatura, o resultado ou expressão da natureza; pois ainda que as obras da natureza sejam inumeráveis e todas distintas entre si, o resultado ou expressão de todas elas é similar e único. A natureza é um mar de formas fundamentalmente semelhantes e até unitárias. Uma folha, um raio de sol, uma paisagem, o oceano, exercem um efeito análogo sobre o espírito. O comum a todos eles, essa perfeição e harmonia, é a beleza. O padrão da beleza está dado pelo circuito inteiro de formas naturais, pela totalidade da natureza; os italianos expressaram isso ao definir a beleza como “il piú nell’uno.” Nada é suficientemente belo por si só: o belo somente o é como um todo. Um objeto qualquer é belo unicamente na medida em que sugere esta graça universal. O poeta, o pintor, o escultor, o músico, o arquiteto procuram concentrar esta radiação do mundo em um só ponto, e em seus diversos trabalhos cada qual trata de satisfazer o amor à beleza que o estimula a criar. Assim é a Arte, uma natureza passada através do alambique do homem. Assim, na arte, a natureza opera através da vontade de um homem pleno da beleza das primeiras obras daquela. O mundo existe, portanto, para a alma, com o fim de satisfazer o anseio de beleza. Este elemento chamo de um fim último. Com respeito ao motivo pelo qual a alma busca a beleza, nada se pode indagar nem responder. Em seu sentido mais amplo e profundo, a beleza é uma das expressões do universo. Deus é a suma justiça; a verdade, a bondade e a beleza são diferentes rostos dessa mesma totalidade. Mas a beleza da natureza não é um fim último.
É a arauta de uma beleza interior e eterna, e em si mesma não constitui um bem sólido e satisfatório. Deve ficar como uma parte, e todavia não como a última ou mais alta expressão da causa final da Natureza.
Ralph Waldo Emerson, in Natureza - A Bíblia do Naturalismo

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