sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Autores atores

No filme O diário de Bridget Jones tem uma cena em que aparece o escritor Salman Rushdie. A cena é de um lançamento literário em Londres e Rushdie faz o papel dele mesmo. Nada de mais. Tema para teste de memória ou passatempo trivial: de quantos escritores fazendo pontas em filmes você consegue se lembrar? Alguns fizeram mais do que pontas. Truman Capote era o dono da casa onde acontecem os crimes naquela comédia policial escrita por Neil Simon, cujo título, claro, só me ocorrerá quando você já estiver lendo isto. Capote, que nunca fez muito sucesso na França, porque lá “capote” é o apelido de camisinha e o gosto francês pela ironia não vai tão longe, só podia mesmo fazer um personagem fictício. Nem ele conseguiria interpretar o próprio Truman Capote convincentemente. No Roma, de Fellini, Gore Vidal aparece na Piazza Santa Maria in Trastevere cercado de admiradores e diz uma frase para a câmera. Algo na linha do que Karl Kraus disse sobre Viena, que lá estava se ensaiando o fim do mundo, ou coisa parecida. Woody Allen já usou vários escritores – como Susan Sontag e E. L. Doctorow — fazendo depoimentos para a câmera, mas a aparição mais memorável de um escritor de verdade num filme dele foi a de Marshall McLuhan. Allen e outro discutem as teses de McLuhan numa fila de cinema e o debate só é resolvido com a convocação do próprio McLuhan, que por acaso está no saguão e dá os esclarecimentos pedidos — ou confunde ainda mais a questão, não me lembro. E me lembro do William Styron em outra comédia sendo acossado por um jovem escritor atrás de conselhos, com cara de quem preferia não ter aceito o convite.
Salman Rushdie, no simpático filme da Bridget Jones, só estaria seguindo uma tradição, mas não faz muito ele não aparecia nem em filmes nem em qualquer outro lugar. Estava escondido da vingança muçulmana por ter escrito Os versos satânicos. Parece que a sentença de morte foi suspensa, mas Rushdie pode ter decidido fugir da vida real para a ficção dos outros, convencido de que é mais seguro dar um toque de realismo a um mundo imaginário do que participar do que outro autor, John Le Carré, chama de “teatro do real”, onde sua vida de verdade corre perigo. No teatro do real há sempre o risco de confundirem o autor com seus escritos e pedirem satisfações pessoais, e não demora os autores precisarão de atores para representá-los em público. Já nos filmes em que participam eles podem ser eles mesmos, sem a necessidade de dublês. Ainda mais que são quase sempre cenas de coquetel.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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