Semanas
seguintes, meu padrinho só falou nos jagunços. Dito que Joca Ramiro
era um chefe cursado: muitos iguais não nascem assim ― dono de
glórias! Aquela turma de cabras, tivesse sorte, podia impor caráter
ao Governo. Meu padrinho levara aquele dia todo no meio deles.
Contava! o cuidado nos arranjos, as coisas todas regradas, aquele
dormir de ordem, aquela autoridade enorme no entremeamento. Nem nada
faltava. As sacas de farinha, tantas e tantas arrobas de carne de
sol, a munição bem zelada, caixote com pães de sabão para cada um
lavar a roupa e o corpo. Até tinham um mestre-ferrador, com sua
tendinha e os pertences! uma bigorna e as tenazes, fole de mão,
ferramenta exata; e capanga de alveitar, com vários sortidos flames
de sangrar cavalos adoecidos. E as mais coisas meu padrinho descrevia
com muito agrado, de que tinha ouvido sincera narração. As lutas
dos joca-ramiros, os barulhos, as manhas traçadas para se ganhar em
combate, maço de estórias de toda raça de artes e estratagemas. De
ouvir meu padrinho contar aquilo, se comprazendo sem singeleza,
começava a dar em mim um enjoo. Parecia que ele queria se emprestar
a si as façanhas dos jagunços, e que Joca Ramiro estava ali junto
de nós, obedecendo mandados, e que a total valentia pertencia a ele,
Selorico Mendes. Meu padrinho era antipático. Ficava alterando os
assuntos.
Não
estou caçando desculpa para meus errados, não, o senhor reflita. O
que me agradava era recordar aquela cantiga, estúrdia, que reinou
para mim no meio da madrugada, ah, sim. Simples digo ao senhor!
aquilo molhou minha ideia. Aire, me adoçou tanto, que dei para
inventar, de espírito, versos naquela qualidade. Fiz muitos, montão.
Eu mesmo por mim não cantava, porque nunca tive entoo de voz, e meus
beiços não dão para saber assoviar. Mas reproduzia para as
pessoas, e todo o mundo admirava, muito recitados repetidos. Agora,
tiro sua atenção para um ponto! e ouvindo o senhor concordará com
o que, por mesmo eu não saber, não digo. Pois foi ― que eu
escrevi os outros versos, que eu achava, dos verdadeiros assuntos,
meus e meus, todos sentidos por mim, de minha saudade e tristezas.
Então? Mas esses, que na ocasião prezei, estão goros, remidos, em
mim bem morreram, não deram cinza. Não me lembro de nenhum deles,
nenhum. O que eu guardo no giro da memória é aquela madrugada
dobrada inteira! os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e
árvores, o refinfim do orvalho, a estrela-d’alva, os grilinhos do
campo, o pisar dos cavalos e a canção de Siruiz. Algum significado
isso tem?
Meu
padrinho Selorico Mendes me deixava viver na lordeza. No São
Gregório, do razoável de tudo eu dispunha, querer querendo. E, de
trabalhar seguido, eu nem carecia. Fizesse ou não fizesse, meu
padrinho me apreciava; mas não me louvava. Uma coisa ele não
tolerava, e era só! que alguém indagasse justo quanto era o
dinheiro que ele tinha. Com isso eu nunca somei, não sou especúla.
Eu vivia com o meu bom corpo. Alguém há de achar algum regime
melhor?
Mas,
um dia ― de tanto querer não pensar no princípio disso, acabei me
esquecendo quem ― me disseram que não era à-toa que minhas
feições de mim o tonto houve ― o mundo todo me desproduzia, numa
grande desonra. Pareceu até que, de algum encoberto jeito, eu
daquilo já sabia. Assim já tinha ouvido de outros, aos pedacinhos,
ditos e indiretas, que eu desouvia. Perguntar a ele, fosse? Ah, eu
não podia, não. Perguntar a mais pessoa nenhuma; chegava. Não
desesquentei a cabeça. Ajuntei meus trens, minhas armas, selei um
cavalo, fugi de lá. Fui até na cozinha, conduzi um naco de carne,
dois punhados de farinha no bornal. Achasse algum dinheiro à mão,
pegava; disso eu não tinha nenhum escrúpulo. Virei bem fugido.
Toquei direto para o Curralim.
Razão
por que fiz? Sei ou não sei. De ás, eu pensava claro, acho
que de bês não pensei não. Eu queria o ferver. Quase mesmo
aquilo me engrossava, desarrazoado, feito o vício dum ruim prazer.
Eu fazia minha raiva. Raiva bem não era, isto é: só uma espécie
de despique a dentro, o vexame que me inçava não me dava rumo para
continuação. Único reger era me empinar e assoprar em esta minha
cabeça, aí a confusão e desordem e altos desesperos. Arremessei o
cavalo, galopei demais. Não ia para a casa de Nhô Marôto. Ante
antes ia para o seo Assis Wababa ― aquela hora eu queria só gente
estranha, muito estrangeira, estrangeira inteira! Só fosse um pouco
para ver a Rosauarda, essa assim eu amava? Ah, não. Gostasse da
Rosauarda, mas aí nas delícias dela minha ideia não podendo se
firmar ― porque aumentava o desamparo de minha vergonha. Ia para a
escola de Mestre Lucas. A lá, perto da casa de Mestre Lucas, morava
um senhor chamado Dodó Meirelles, que tinha uma filha chamada
Miosótis. Assim, à parva, às tantices, essa mocinha Miosótis
também tinha sido minha namorada, agora por muitos momentos eu
achava consolo em que ela me visse ― que soubesse: eu, com minhas
armas matadeiras, tinha dado revolta contra meu padrinho, pelo
cerrado a fora, capaz de capaz! Daí, a Mestre Lucas eu tinha de dar
uma explicação. Eu não gostava daquela Miosótis, ela era uma
bobinhã, no São Gregório nunca tinha pensado nela; gostava era de
Rosauarda. Mas Nhô Marôto havia de logo saber que eu tivesse
chegado no Curralim, e meu padrinho ia ter o pronto aviso. Mandava
alguém me buscar. Vinha, ele. Não me importava. De repente, eu
sabia: o que eu estava querendo era isso mesmo. Ele viesse, me
pedisse para voltar, me prometendo tudo, ah, até nos meus pés se
ajoelhava. E não viesse? Se demorasse a vir? Aí, o que era que eu
ia fazer, caçar meio de vida, aturar remoque sei lá de todos, me
repartir no miudinho de cada dia, tão penoso aborrecido. A bis,
então, cresceu minha raiva. Tive outras lágrimas nos bobos olhos.
Adramado pensei em minha mãe, com todo querer, e afirmei alto que
seria só por conta dela que eu estava procedendo pelo avesso,
gritei. Mas aquilo se fingia mal, espécie de minha vergonha esteve
sendo maior. Como o cavalo, em rogo de misericórdia, escureceu o
pêlo de todo suor. Sosseguei as esporas. Viemos a passo de marcha.
Eu tinha medo por causa de minha vida, quando entramos no Curralinho.
Em
casa de seo Assis Wababa, me deram trato regozijante. No que jantei,
ri, conversei. Só a praga duma surpresa me declararam! a de que a
Rosauarda agora estava sendo noiva, para se casar com um Salino
Cúri, outro turco negociante, nos derradeiros meses para lá vindo.
Assumi, em trela, tristeza e alívio ― aquele amor não seria mesmo
para mim, pelos motivos pessoais. Nublo em que me vi, mas me
governei! trancei as pernas, comecei cara de falar pouco, senhor-não,
senhor-sim, acautelado sisudo, e indagando dos grandes preços; assim
fossem cuidar que essa minha viagem era por tramar importante encargo
para o meu padrinho Selorico Mendes. Seo Assis Wababa oxente se
prazia, aquela noite, com o que o Vupes noticiava! que em breves
tempos os comercial de todo valor. Seo Assis Wababa se engordava
concordando, trouxe canjirão de vinho. Me alembro! eu entrei no que
imaginei ― na ilusãozinha de que para mim também estava tudo
assim resolvido, o progresso moderno! e que eu me representava ali
rico, estabelecido. Mesmo vi como seria bom, se fosse verdade.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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