sábado, 5 de outubro de 2019

Ajuntei meus trens e fui

Semanas seguintes, meu padrinho só falou nos jagunços. Dito que Joca Ramiro era um chefe cursado: muitos iguais não nascem assim ― dono de glórias! Aquela turma de cabras, tivesse sorte, podia impor caráter ao Governo. Meu padrinho levara aquele dia todo no meio deles. Contava! o cuidado nos arranjos, as coisas todas regradas, aquele dormir de ordem, aquela autoridade enorme no entremeamento. Nem nada faltava. As sacas de farinha, tantas e tantas arrobas de carne de sol, a munição bem zelada, caixote com pães de sabão para cada um lavar a roupa e o corpo. Até tinham um mestre-ferrador, com sua tendinha e os pertences! uma bigorna e as tenazes, fole de mão, ferramenta exata; e capanga de alveitar, com vários sortidos flames de sangrar cavalos adoecidos. E as mais coisas meu padrinho descrevia com muito agrado, de que tinha ouvido sincera narração. As lutas dos joca-ramiros, os barulhos, as manhas traçadas para se ganhar em combate, maço de estórias de toda raça de artes e estratagemas. De ouvir meu padrinho contar aquilo, se comprazendo sem singeleza, começava a dar em mim um enjoo. Parecia que ele queria se emprestar a si as façanhas dos jagunços, e que Joca Ramiro estava ali junto de nós, obedecendo mandados, e que a total valentia pertencia a ele, Selorico Mendes. Meu padrinho era antipático. Ficava alterando os assuntos.
Não estou caçando desculpa para meus errados, não, o senhor reflita. O que me agradava era recordar aquela cantiga, estúrdia, que reinou para mim no meio da madrugada, ah, sim. Simples digo ao senhor! aquilo molhou minha ideia. Aire, me adoçou tanto, que dei para inventar, de espírito, versos naquela qualidade. Fiz muitos, montão. Eu mesmo por mim não cantava, porque nunca tive entoo de voz, e meus beiços não dão para saber assoviar. Mas reproduzia para as pessoas, e todo o mundo admirava, muito recitados repetidos. Agora, tiro sua atenção para um ponto! e ouvindo o senhor concordará com o que, por mesmo eu não saber, não digo. Pois foi ― que eu escrevi os outros versos, que eu achava, dos verdadeiros assuntos, meus e meus, todos sentidos por mim, de minha saudade e tristezas. Então? Mas esses, que na ocasião prezei, estão goros, remidos, em mim bem morreram, não deram cinza. Não me lembro de nenhum deles, nenhum. O que eu guardo no giro da memória é aquela madrugada dobrada inteira! os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim do orvalho, a estrela-d’alva, os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos e a canção de Siruiz. Algum significado isso tem?
Meu padrinho Selorico Mendes me deixava viver na lordeza. No São Gregório, do razoável de tudo eu dispunha, querer querendo. E, de trabalhar seguido, eu nem carecia. Fizesse ou não fizesse, meu padrinho me apreciava; mas não me louvava. Uma coisa ele não tolerava, e era só! que alguém indagasse justo quanto era o dinheiro que ele tinha. Com isso eu nunca somei, não sou especúla. Eu vivia com o meu bom corpo. Alguém há de achar algum regime melhor?
Mas, um dia ― de tanto querer não pensar no princípio disso, acabei me esquecendo quem ― me disseram que não era à-toa que minhas feições de mim o tonto houve ― o mundo todo me desproduzia, numa grande desonra. Pareceu até que, de algum encoberto jeito, eu daquilo já sabia. Assim já tinha ouvido de outros, aos pedacinhos, ditos e indiretas, que eu desouvia. Perguntar a ele, fosse? Ah, eu não podia, não. Perguntar a mais pessoa nenhuma; chegava. Não desesquentei a cabeça. Ajuntei meus trens, minhas armas, selei um cavalo, fugi de lá. Fui até na cozinha, conduzi um naco de carne, dois punhados de farinha no bornal. Achasse algum dinheiro à mão, pegava; disso eu não tinha nenhum escrúpulo. Virei bem fugido. Toquei direto para o Curralim.
Razão por que fiz? Sei ou não sei. De ás, eu pensava claro, acho que de bês não pensei não. Eu queria o ferver. Quase mesmo aquilo me engrossava, desarrazoado, feito o vício dum ruim prazer. Eu fazia minha raiva. Raiva bem não era, isto é: só uma espécie de despique a dentro, o vexame que me inçava não me dava rumo para continuação. Único reger era me empinar e assoprar em esta minha cabeça, aí a confusão e desordem e altos desesperos. Arremessei o cavalo, galopei demais. Não ia para a casa de Nhô Marôto. Ante antes ia para o seo Assis Wababa ― aquela hora eu queria só gente estranha, muito estrangeira, estrangeira inteira! Só fosse um pouco para ver a Rosauarda, essa assim eu amava? Ah, não. Gostasse da Rosauarda, mas aí nas delícias dela minha ideia não podendo se firmar ― porque aumentava o desamparo de minha vergonha. Ia para a escola de Mestre Lucas. A lá, perto da casa de Mestre Lucas, morava um senhor chamado Dodó Meirelles, que tinha uma filha chamada Miosótis. Assim, à parva, às tantices, essa mocinha Miosótis também tinha sido minha namorada, agora por muitos momentos eu achava consolo em que ela me visse ― que soubesse: eu, com minhas armas matadeiras, tinha dado revolta contra meu padrinho, pelo cerrado a fora, capaz de capaz! Daí, a Mestre Lucas eu tinha de dar uma explicação. Eu não gostava daquela Miosótis, ela era uma bobinhã, no São Gregório nunca tinha pensado nela; gostava era de Rosauarda. Mas Nhô Marôto havia de logo saber que eu tivesse chegado no Curralim, e meu padrinho ia ter o pronto aviso. Mandava alguém me buscar. Vinha, ele. Não me importava. De repente, eu sabia: o que eu estava querendo era isso mesmo. Ele viesse, me pedisse para voltar, me prometendo tudo, ah, até nos meus pés se ajoelhava. E não viesse? Se demorasse a vir? Aí, o que era que eu ia fazer, caçar meio de vida, aturar remoque sei lá de todos, me repartir no miudinho de cada dia, tão penoso aborrecido. A bis, então, cresceu minha raiva. Tive outras lágrimas nos bobos olhos. Adramado pensei em minha mãe, com todo querer, e afirmei alto que seria só por conta dela que eu estava procedendo pelo avesso, gritei. Mas aquilo se fingia mal, espécie de minha vergonha esteve sendo maior. Como o cavalo, em rogo de misericórdia, escureceu o pêlo de todo suor. Sosseguei as esporas. Viemos a passo de marcha. Eu tinha medo por causa de minha vida, quando entramos no Curralinho.
Em casa de seo Assis Wababa, me deram trato regozijante. No que jantei, ri, conversei. Só a praga duma surpresa me declararam! a de que a Rosauarda agora estava sendo noiva, para se casar com um Salino Cúri, outro turco negociante, nos derradeiros meses para lá vindo. Assumi, em trela, tristeza e alívio ― aquele amor não seria mesmo para mim, pelos motivos pessoais. Nublo em que me vi, mas me governei! trancei as pernas, comecei cara de falar pouco, senhor-não, senhor-sim, acautelado sisudo, e indagando dos grandes preços; assim fossem cuidar que essa minha viagem era por tramar importante encargo para o meu padrinho Selorico Mendes. Seo Assis Wababa oxente se prazia, aquela noite, com o que o Vupes noticiava! que em breves tempos os comercial de todo valor. Seo Assis Wababa se engordava concordando, trouxe canjirão de vinho. Me alembro! eu entrei no que imaginei ― na ilusãozinha de que para mim também estava tudo assim resolvido, o progresso moderno! e que eu me representava ali rico, estabelecido. Mesmo vi como seria bom, se fosse verdade.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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